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Contos-->O Ventilador -- 17/06/2001 - 20:45 (ida lehner de almeida ramos) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O Ventilador


Do assoalho rangente da secretaria os pés passaram
ao cimento de côr indefinida, coberto de pó e traças. Por sorte
não desconhecia o roteiro, senão desperdício de tempo seria
a averiguação naquele inusitado monturo de trapos, sucata e pa
péis velhos. Via-os acumulados no porão, lá embaixo, enquanto
descia a escada, rompendo teias com os braços e a própria cabe
ça.
Um comichão começou a aborrecê-lo, a princípio na fronte
e em seguida no nariz, sintoma de antiga alergia que lhe provoca
vam coisas ou lugares empoeirados. Ao fim dos degraus, não va
cilou,- foi direto ao compartimento correspondente à parte ante
rior do prédio. Era baixo, sem luz e cheirava horrìvelmente a môfo
e a ratazanas. Acendeu a lanterna, sondou um instante o caos e
não tardou a descobrir o volume procurado. Estava envolto em
jornais, como exatamente o deixara, um mês atrás. Era quase dele,
agora, o precioso objeto, motivo até de inquérito judicial...
Tranquilizou-se quanto à pequena diferença no formato do
embrulho, atribuindo-a às folhas puídas que se desfaziam ao mais
sutil movimento. Auto-convencido a respeito, novo susto o fez tremer,
provocado por um camundongo que fugiu espavorido do monte de
lixo. Convenceu-se de que não havia perigo, pela qualidade e mesmo
pela quantidade ínfima que levava. -”É só um, nada mais que um”.
Arlindo agachou-se, agarrou o ventilador, louco para dar às
de vila diogo. Antes,. limpou a sujeira da roupa com o lenço trazido a propósito Em cima, a repartição dormitava, silenciosa como cata
cumba. O eco das máquinas de escrever estava paralisado, mas, ain
da assim, fitou cada escrevaninha como se o seu legítimo ocupan
te o observasse. Não sentiu medo, os corpos dos colegas eram apenas sombras, como sombras eram seus olhos. Atravessou o escritório, abriu a porta da úmida sala em que trabalhava e tirou da ga
veta uma folha de papel-manilha. Errrpacotou com cuidado o ventilador e só então, calmo como um justo, pôs-se a executar o extra
ordinário, pretexto usade para o ingresso no Ministério.
. Alguma culpa? Nenhuma. Todos os embates travados com a
consciência já eram o passado. Ela esgrimira alto, com fortes e exaus
tivos argumentos; se o mal vencera, Arlindo o atrbuía ao desespêro. Afinal, tudo revertia para o bem, - dos gemeos, de Dulcellna, do casamento de ambos. O calor estava senegalesco este ano, mas ele se amenizava um pouco, nesta saleta, com o ventilador do teto, que, ainda que perrengue, sacudia o ar pelo longo do dia.
Mas em casa...Vencimentos parcos, família numerosa, Arlindo
não tinha um canto de seu, um só pouso de recolhimento, tudo abafado, sem ar...A casa , um caixote, fôra adquirida através do Institu
to a que se filiara muitos anos antes. No quarto do casal se acomodavam ainda, além de três filhos, os gêmeos, heróis da fundação romana, Rômulo e Remo, palpite de seu chefe e padrinho dos meninos. Arlindo sofria horrores nas noites de verão. A camiseta, empapada de suor, era testemunha. A quentura lhe implodia o corpo em frangalhos. Em vão pedia a Dulcelina permissão para escancarar a janela; mas ela, que tinha verdadeiro xodó pelos gêmeos, só fazia choramingar: - “São de sete meses”, alegava. -“Se quiser abrir, abra. Mas não sou eu quem vai-se arrepender se morrerem de pneumonia”.
. O quarto não tinha veneziana. Arlindo prometera de mãos postas
aos técnicos da avaliação que, logo, logo, atenderia àquele quesito
imposto pelo Instituto. A promessa fizera o sexto aniversário na última primavera. Noites de total abafamento, que o tornavam inteiramente derreado, noites de mal-estar.
. Uma segunda-feira, trabalhando em sobretempo a fim de dar
cabo de uma montanha de processos em atraso, fato sabidamente ignorado pelos colegas, teve a deliciosa sensação de usufruir sòzinho da brisa regeneradora que vinha do teto e que lhe afagava a
sólida cabeleira - ”Engraçado, no meio de tanta gente, sempre me pareceu que esse trambolho estivesse avariado”, pensou. Por algumas horas seus dedos se multiplicaram sôbre o teclado, enchendo-o de orgulho o fato de ser chefe de si mesmo e não o reles escriturário letra inicial que sempre fôra.
Quase na hora de deixar a repartição, aterrorizou-o a idéia de enfrentar em casa mais uma tórrida noite, para a qual a previsão do tempo pelo rádio já o alertara. Lembrou-se de vasculhar os guardados no antigo porão. Anos antes, um escândalo depusera a diretoria toda do Ministério e ainda altos e baixos funcionários. Nova cúpula, nova gente. Optou-se pela reforma total e interna do prédio, pela aquisição de novo mobiliário e arquivamento de tudo o que fosse obsoleto. Que reboliço naqueles dias! Cofres de aço vindos diretamente da fábrica, substituindo os antigos, de madeira; escrevaninhas reluzentes, as mais modernas, calculadoras e máquinas de escrever, ultimo tipo. E muita coisa foi chorar no porão as glórias ultrapassadas. E muita teve sumiço, por que vias nunca se soube. O pouco que restou foi para o lixo, lá embaixo. Armado só de coragem e de apenas uma lanterna de pilha que achou nos fundos de
uma gaveta, internou-se por uma hora no fantasmagórico porão.
Lá descobriu o que queria, quase enterrado entre os bagulhos: -
um velho, enferrujado e feio ventilador.-”Logo você vai estar funcionando”, disse, superestimando seus dons de eletricista- amador. Ouviu um ruído no andar de cima, mas não se alarmou. Por via das dúvidas, escolheu com cuidado o lugar em que deixaria o motivo de sua paixão e o escondeu sob uma pilha de jornais amarelecidos. Ao deixar o Ministério, prometeu a si mesmo voltar na noite seguinte, a fim de repetir a proeza.
Todavia,seu passado honesto começou, logo de manhã, a lhe mordiscar os escrúpulos, a razão entrou em conflito com o desejo de posse. Tanto refletiu que acabou não indo fazer as horas extras.
. O verão mal tinha começado e Arlindo contava ainda com mais de três meses para a consecução do delito. Não contou a ninguém a dúvida que o atormentava, nem mesmo a Dulcelina. Com o passar dos dias e a temperatura se elevando, cada madrugada indormida era
ponto ganho em favor do mal. E só ele ficava desperto; a família dormindo a sono sôlto, sem o mínimo respeito por sua insônia.
Uma noite sonhou que se afogava no próprio suor! Erademais. Es
tava pronto para o que desse e viesse, hoje ou nunca mais. Antes
fez, com grande condescendência, auto-análise que lhe conferia o di
reito a essa trangressão da moral e da lei, - ganhava pouquíssimo,não
não tinha o décimo-terceiro salário, era elogiado com frequência pe
los companheiros e faziam-no de pau para toda obra. E mais: não
tendo jeito para bajulação, havia de permanecer até o fim dos sécu
los sob a mesma letra, apenas reajustado quando houvesse reajusta
mento geral, jamais por seu próprio mérito.
. .Mesmo agora, quando o calor lhe propiciara esse pequeno deslise,
de pretender possuir o aparelho considerado um luxo, digno sòmen
te de pessoas mais abastadas, vacilara. E. em seu favor pesara ainda a notícia transmitida por um vizinho evangélico, crítico contumaz de tu
do o que dissesse respeito ao funcionalismo público.
O fato era que um grande escândalo estava no ordem do dia. Uma poderosa autarquia, sob a gestão de um político de maus preceitos,editara uma concorrência. Pois pasmem todos! Foram adquiridos, de uma só vez e para pagamento imediato, nada menos que trinta mil ventiladores!
Mesmo angustiado com a verídica revelação, exposta ante seus olhos por um jornal idôneo, e mesmo com a sensação de um súbito e
próximo desmaio, resolveu ir em frente com o propósito de tomar por empréstimo, para uso próprio e dos seus, aquele modesto fazedor de brisa. Voltou à repartição nessa mesma noite.
Findo o ato, fechou à chave a porta principal e galgou a rua, com
o embrulho bem lhe colado ao peito. Vigiou com esmero as cercanias
cobertas pelas sombras -”Tudo azul”, murmurou. Tomaria o primeiro ônibus para seu bairro e não diria à mulher, jamais, o segredo do ventilador surrupiado. À palavra “surrupiado” julgou sentir no íntimo um estremeção; só então pecebeu que o que estremecera fôra seu ombro, ao contacto da mão pesada de alguém.
. Era um dos seguranças.do prédio, fazendo uma série de perguntas a que mal conseguia responder, tomado como sempre da maldita timidez. Balbuciando, balbuciando, as palavras lhe fugiam. Contrariando os conselhos de Dulcelina, nem a carteira funcional trazia consigo. O brutamontes já desamarrava o pacote e, expurgando todo o sarcasmo do mundo, levou-o até o pôsto policial mais próximo, dizendo, entre dentes, ao ver o seu conteúdo:- “Ladrão de galinha!”
Conclusão: - depois de absolvido pelo extenso inquérito administrativo a que respondeu, Arlindo foi pràticamente encostado, numa vexatória disponibilidade, junto ao arquivo morto da repartição.
Mas nada, nem o desprêzo acintoso de chefes e servidores, nem as lamentações da mulher, nem o frio d”alma que passou a acompanhá-lo desde então, nem mesmo os brios postos no fundo do poço, feriram-no tanto quanto uma notícia, publicada meses depois no mesmo matutino. Dizia a nova, em manchete: - “Falta de provas concludentes determina o arquivamento do processo relativo ao escândalo dos ventiladores”.


Ida Lehner de Almeida Ramos
Idalehner@bol.com.br
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