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Contos-->A Caatinga no ano em que não teve seca -- 17/12/1999 - 12:47 (Dioclécio Luz) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O vento entrou pela casa feita de madeira velha e latas enferrujadas. Veio por baixo, pelos pés da gente da casa, do barraco, sendo sincero com a história, depois trepou pelas paredes e desembestou por uma brecha no telhado. Fez barulho, um sopro, um sopro de bicho brabo, de coisa animal.
Por isso mesmo Antonio olhou para aquele barulho grave e pedroso chamado vento, e ruminou:
- Que diabo de vento duro. Batendo lá fora vai espantar o nascer das plantas que sobrou.
Lá fora era um terreno de meio palmo de chão, ou mais que isso, era, para ser quase exato, do tamanho de um plantio miúdo de milho. Mas o milho não existia. O milho era aquilo na terra, umas poucas sementes ruins e, na cabeça dele, Antonio, esperança. Mixuruca. Esperança mixuruca. E só. Porque nem galinha tinha mais e muito menos o bacuri, morto de fome naquelas caatingas.
Ruminou mais uma vez, ele, que não tinha nada de bovino, pelo contrário, era normalmente homem rápido no pensar e agir. E agiu pensando, só consigo:
- Vento que faz barulho assim tá é anunciando a seca. Mas quando é que vem a seca?
Ninguém sabia. Na cidade disseram que ela estava já chegando, no próximo ano, no mais tardar em fevereiro. Com a seca ía ter trabalho nas frentes de emergência. Mas não tinha nada certo. Seu mundo sertanejo, aliás, era cheio disso: de nadas certos. Certo mesmo era a caatinga verde e ele ali, no bucho dela. Caatinga não come gente, é sua sorte. Pois fosse o contrário ele já teria ido, devorado pela terra boa ou pelo sol guloso. Sol que espantou Josefa, sua mulher.
E Antonio cuspiu a lembrança dela no chão. Nele Joseja não existia mais. Mulher faz falta, mas aquela não, aquela se transformou em calango e desembestou pelo mundo afora. Foi, antes de se ir. Foi-se embora primeiro dele, arvoroçada, aperreada com outros horizontes, outros quereres que nem existia ali, e, imagina Antonio, em mais nenhum lugar.
Não era feito ele. Antonio gosta do lugar. Gosta assim, sem saber porque, sem motivo científico. Ali não tem nada. Só tem o vento e mesmo assim de pedaço, e dos piores, aqueles que entram nas casa sem pedir permissão, sem falar ô de casa, posso entrar, louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo. Vento malcriado, isto sim, é o que tem por lá. Mas Antonio também é teimoso. Gosta da terra mesmo sabendo que ali não é Brasil. “No Brasil de agora, no ano 2.000” - viu na televisão o presidente explicando - “está tudo ótimo; todo mundo tem água encanada, doutor de medicina, ônibus, escola, dinheiro, trabalho, assistência rural...” Aquilo não era ali.
- Talvez seja porque Deus quer assim - disse Antonio. - Uns tem e outros não tem. Eles tem e nós num tem. Ou porque o presidente e seus amigos estão juntando as riquezas para que quando ficar muito e bastante ele divida com nós, os daqui. Sei não... Destino, talvez...
Falava sem crença. Antonio não era homem de acreditar nessas coisas de destino. Acreditava na sua força de trabalho. Acreditava no que via. E o que via era todo ano a mesma miséria. Com ou sem chuva ele vivia de carências. A seca tem suas vantagens. E a mais maior é fazer chover emprego. Vem de parceira com a “frente de emergência” que dá emprego e comida pra todo mundo. Todo ano tem “frente de emergência”, todo ano é ano de emergência. O Nordeste está sob emergência há um milhão de anos, que foi quando Alguém poderoso resolveu que ali seria desse jeito, a seca fazendo parte do lugar, igualmente a ema e pedra dura. Então, por causa dessa situação de emergência, que exige medidas de emergência, e acaba dando emprego pro povo, a seca é até boa. Junto com ela, Antonio sabe, também vem os cabras das reportagens-jornalísticas, e se assombram com o jeito dela lamber o chão e a barriga do povo. E dizem lá que a seca é que faz a miséria do lugar. Bobagem. A miséria mora lá todo dia. A miséria é vive rica e farta nas caatingas.
- Eu sou a cara da miséria - pensa Antonio. - Eu sou ela cuspida e escarrada. Um homem que não tem como trabalhar é a miséria. Eu sou ela de manhezinha com sua cara mais feia. Eu sou ela porque a miséria é esperar o que não vem.
Fora da casa a caatinga quase não existe mais. A mata surge rala na frente, desértica, cortada pra fazer comida no fogão de lenha ou comida pelos bodes que não deixam o umbuzeiro crescer. A terra é sempre seca, mesmo quando chove, não nasce nem bicho de pé. É pó. É nesse lugar que o sol faz morada. Deita-se todos os dias e, muitas vezes, Antonio sente na pele, passa a noite lá, esparramado feito jacaré, se esquecido de que função de sol é acompanhar o dia.
A sua casa é feita de barro. Foi ele que fez e, dizem, é a sua cara: alegre e seca. Debaixo da cama construída com paus e couros ele guarda as enxadas inúteis e o “remédio” ensinado pelo técnico da Emater para combater as formigas. Mas não tem formigas e o “remédio”, aberto debaixo da cama, ele já usou para matar os piolhos de sua cabeça e acabar com a sarna do cachorro. O cão morreu, coitado. E Antonio só parou de usar aquele “remédio” quando viu que pipocava umas perebas nos braços cada vez que ousava brigar com os bichinhos de sua cabeça.
- Na cabeça eu não tenho mais nada - disse, saudoso de si. - Não. Ainda tenho um pouquinho. Aliás eu preferia ser doido, doido de sumir-me.
Olhou para sua roupa, sua casa, seus teréns, sua vida tão sertão quanto o mundo visto de sua porta aberta para fora, e acrescentou:
- Falando sozinho assim, contando prosa com o vento, acreditando mais em nada, eu acho que já endoidei. Isso, de ficar pensando na gente, deve de ser quando o sujeito varia, desmiola.
O vento, o mesmo vento que inda há pouco entrara alvoraçodado, maleducado, em sua casa, agora fazia pirueta no barro seco do terreiro. Rodopiava, rodopiava, e então sacudia a terra pra tudo quanto é lugar. O que caçava o vento? Caçava lugar para se esconder. Talvez noutro tempo.
E Antonio se alembrou das sementes guardadas. Tinha milho e feijão. Podia plantar. A chuva, ora, estava vindo, o céu tava ali na frente, pretado, prontinho para virar rio e riacho. Lembrou do ano passado, conversando com o agrônomo na cidade, funcionário do Governo, ali pra isso, pra ensinar a plantar e a colher de acordo com as modernosidades tecnológicas. E Antonio lhe disse:
- Essas sementes não prestam, viu? A gente planta e elas não nasce. Ou nasce tudo miúda.
- Mas o senhor já experimentou um fertilizante?
- Apois já. Fiz isso no ano passado e no retrasado e no re-retrasado. O primeiro ano foi bom, no segundo foi fulero, e agora não foi pra lugar nenhum.
O agrônomo, homem de saber, explicou que aquilo ali, entenda, é semente selecionada, é assim mesmo. O que Antonio tinha que fazer era mudar a semente e o adubo.
- E as doenças da lavoura? No ano em que foi bem a lagarta esbagaçou com o milho, mesmo botando remédio.
O agrônomo, bem se via, era um homem paciente. Sabia lidar com um camponês rude como aquele, analfabeto.
- Seu Antonio, era o caso de aumentar a dosagem do defensivo agrícola ou trocar de produto. Tudo isto é muito moderno. Por isso o senhor não compreende muito bem.
“O que eu compreendo é que devo ao banco e não tenho como pagar e como arranjar dinheiro para plantar. E tenho uma semente que não brota”, pensou Antonio. Olhou para o engenheiro e falou pra si, sabido: “desse buraco não sai tatu”. E largou o técnico no escritório, sorrindo para as paredes lisas do seu território de papéis e panfletos, cartilhas e computadores.
O vento entrou em sua casa mais uma vez, arranhando as paredes, soprando a poeira do barraco, falando rouco. Antonio largou as lembranças. Abriu os olhos e tomou um susto: “Eu pensei comigo mesmo que eu já estava de olho aberto desde muito tempo”.
Viu seus braços sem carne, as feridas tomando conta dele. Viu seu rosto negro, também só o osso. Com as mãos magras foi certificar que ainda tinha olhos. Apalpou os dois, um e depois o outro, e ficou feliz porque eles estavam lá.
Não queria se mexer porque vinha o frio. A cruviana foi morar dentro dele. E fazia Antonio tremer feito os canudos lá da beira do rio São Francisco. “Uma cachacinha aqui tirava esse frio loguinho”, pensou mais uma vez. Mas nem cachaça tinha mais. “Eu devia era parar de pensar, isso sim que atrai o frio”, cogitou.
- Talvez eu esteja morrendo? - falou alto. Tão alto que até o vento parou de roncar ao seu lado. - Mas é assim que se morre? Se é assim, me explique porque não morri antes, se antes e antes eu já tive febre e perebento assim e, acho, não morri? Ah, pabulage. A gente só morre quando morre.
E o que tinha Antonio? Varíola, dengue, esquistossomose, alcoolismo, leishmaniose, subnutrição. Até os pebas sabiam, ele morre de uma doença chamada brasil. Da tal, ao contrário do que pensa Antonio, se morre bem antes de morrer. O cabra tá morto e não sabe. Só porque come e dorme e caga e até namora feito gente viva, acha que é vivente. Mas não é. É defunto.
Mais quieto pro mundo, Antonio variava:
- Acho que se um dia morrer vou virar pedra. E vão passar por mim e nem vão saber que eu existo. Eu lá, presente, espiando pro povo, duro, paralelepípedo.
Cuspiu no chão e viu que era da cor de sangue. Se espantou-se com aquilo.
- Será que eu, eu mesmo, estou doente?
Então viu as formigas. Eram muitas no chão, em volta de sua cama, espalhadas entre pós e cusparadas. Compungidas, rezavam baixinho. Parecia que estavam num velório. Antonio viu tudo aquilo e ficou preocupado, não queria incomodar ninguém:
- Acho bom ficar quietinho para não atrapalhar as bichinhas.
Então relaxou, parou de respirar, e morreu de vez.
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Do livro de contos, inédito, "OS ALIENÍGENAS"
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