A morte fingida
A vida nunca foi fácil para mim. Desde sempre tive que me virar para sobreviver. Minha infância foi marcada pela violência e abandono. Último filho de muitos, mal cheguei a frequentar a escola. Trabalhei como ajudante de pedreiro, empacotador de supermercado, vndedor de picolé, tudo informal, tudo bico, e nunca consegui sair disso. Escola, nunca mais. Quanto mais trabalhava, mais gastos tinha, menos dinheiro sobrava. Nunca casei. Pelo menos, ter que sustentar família, nunca tive.
Um dia, numa praça qualquer, vi pela primeira vez aquele homem se fingindo de estátua. Demorei para perceber o que ele queria com aquilo. Todo pintado de prateado, esperava por uma moeda para se mexer. As pessoas pareciam gostar daquilo, ou então estavam torcendo para que ele se enchesse, se mexesse e saísse derrotado dalí.
Voltei algumas vezes e prestei atenção em quanto dinheiro ele arrecadava por dia. Tá certo que ele já punha, de cara, algumas moedas e notas num chapéu, que era para indicar que outras pessoas já tado daquilo. Isso estimulava os outro. Quando vi que a quantidade de dinheiro que depositavam alí era muito maior do que eu conseguia, decidi fazer a mesma coisa.
Não tinha a menor ideia do que fazer para começcar. Não tinha roupa, nem tinta para me disfarçar. Não sabia se tinha que ter autorização da prefeitura para ficar ali. Um dia tomei coragem e fui falar com o homem ao final do seu trabalho. No começo ele não queria me dar atenção, mas depois baixou a guarda me deu um monte de dicas e uma lata de spray verde que á estava saindo da validade. Me disse que ali era seu ponto e que eu procurasse o meu.
Minha primeira performance foi numa praça bem movimentada e não tinha personagem nenhum. Apenas vesti um terno velho que arrumei com um cunhado e pintei as mãos e o rosto com a tinta verde que ganhei. O que tinha que fazer era ficar paralisado e me mexer de alguma forma engraçada ou diferente quando alguém colocasse uma moeda ou uma nota sobre um pedaço de pano que estendi no chaão (não tinha chapéu, nem boné). No começo foi muito difícil ficar imóvel, pois era verão e o calor era insuportál. Queria tomar água o tempo todo e não podia. A chuva vinha e eu não podia me molhar, pois a tinta escorria toda. Costumava ficar de olhos fechados para não me distrair, mas o tempo não passava. Foi muito difícil, mas eu insisti naquilo, pois achava que qualquer sacrifício valia para não ter que procurar outro trabalho, trabalhar muito e ganhar pouco. Ali, pelo menos, eu nem trabalhava, e o que ganhava dava para almoçar e fazer um lanche. Só que para isso precisava ficar das 9 da manhã às 6 da tarde.
O tempo passou e fui me especializando nisso. Só que agora, com esse calo de 40 graus, não queria me fantasiar ou me pintar e ficar derretendo ali para distrair quem não tem o que fazer. Pensei um pouco e decidi fingir uma cena que não deveria ser estranha a ninguém daquela praça. Poderia ficar com a cara lavada , com roupa normal, até de bermuda, chinelos e sem camisa, se quisesse. Seria um corpo atingido por uma bala perdida. Bastaria desenhar uma perfuração de bala no peito ou nas costas e ficar deitado, imõvel. Com sorte poderia encontrar um lugar com sombra tanto de manhã quanto à tarde. O único problema era que não poderia me mexer ou levantar e depois deitar de novo. Isso iria prejudicar a performance. Resolvi tentar assim mesmo e ver quanto tempo aguentaria, e, mais ainda, quanto ia arrecadar.
Desenhei o buraco de bala nas costas e na parte da frente, parecendo ser seu trajeto, e deitei de bruços, como se tivesse caído com o impacto do tiro. Meu paninho ficou estendido, com poucas moedas, ali do meu lado. Era pouco mais de 8h da manhã e pouc gente me viu deitar ali. Os que viram eram pedestres que logo se afastaram. E assim eu fiquei.
Não demorou muito e ouvi Moço, Moço! Sabia que era comigo, mas continuei me fingindo de morto, afinal, era minha atuação naquele dia. Está morto! Foi baleado!
Epa! Não era essa a reação que eu esperava, eu era um artista, afinal. Resolvi aguardar. Resolveram não mexer comigo até que a polícia chegasse. Para que polícia? Fiquei mais curioso do que eles. Queria saber onde essa história ia dar. Quanto mais gente juntasse, mais sucesso eu fazia, mais moedas no final.
Ninguém viu de onde veio o tiro? Acho que roubaram e deixaram cair essas moedas. Não, isso tá com jeito de bala perdida. De qual morro partiu? Pela posição da bala e do corpo, deve ter sido do Santa Cruz. E essa polícia que não chega? Coitado, será que tava indo trabalhar? E agora, como a família vai saber? Por falar em família, deixa eu ir trabalhar que a minha depende de mim. Vixe, to perdendo hora do trabalho, fui!
E assim todos se afastaram antes mesmo da polícia chegar. Abri os olhos devagar e, como já não era mais observado, me lenvatei, recolhi meu paninho, já sem minhas moedas.
A arte não é mesmo valorizada nesse país.
(Janeiro 2015)
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