OS ÓCULOS
Aqueles óculos eram especiais. Demorei muito para perceber que eram eles, e não os olhos que protegiam, que tornavam misteriosa aquela mulher. Dei-me conta disso quando um dia me deparei com ela sem os óculos. Quase não a reconheci; praticamente a ignorei. E como isso era possível, já que estava obcecado por ela há tanto tempo, desde que veio trabalhar no escritório?
A partir de então, aqueles óculos tornaram-se meu objeto de fixação. Longas e torneadas pernas em madeira com desenho de pele de onça amparavam duas lentes arredondadas e contornadas por molduras acobreadas. Olhos sensuais poderiam se insinuar através dessas lentes, mas isso não fazia diferença. A peça em si, os próprios óculos, denunciavam que aquele que os usassem seria, só por isso, especial.
Repousados ora no nariz de sua dona, ora sobre sua mesa de trabalho, na pia do lavabo ou na mesa do café, aquele objeto atraía minha atenção. Cada posição parecia sinalizar um código secreto. Um vez sobre o nariz da dona, comandava todos seus atos. Reinava absoluto sobre tudo o que deveria ser visto ou ignorado. Qualquer ato em sentido contrário, reagia ora escorregando, ora embaçando, até que tudo voltasse sob seu controle. Se as lentes se acomodavam sobre as pernas cruzadas em alguma superfície, anunciavam um descanso merecido, uma observação de outros ângulos, uma oportunidade de mudança de mãos.
Talvez tivesse algo mágico nele, talvez sua dona fosse uma feiticeira que usava os óculos para atingir suas vítimas. O fato é que eles me causavam um enorme fascínio, a ponto de eu interpelar sua dona sobre o motivo de ela não os estar usando. Um dia ela me disse que iria substiuí-los por outros e eu imediatamente me ofereci para comprá-los. Nem foi preciso, ela me deu de presente. Desde então trago esses óculos comigo, no bolso da camisa, como se fossem parte de mim, como se me protegessem, enxergando, antes de mim, qualquer mal que porventura se aproximasse.
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