O Anjo
Um verdadeiro amor nunca se desgasta, quanto mais se dá, mais se tem...
Saint-Exupèry
O Pobre Homem encontrava-se quieto, à beira do gigantesco despenhadeiro das dúvidas, contemplando fixamente a imensidão vermelha do infinito mar em que navegam as lendárias caravelas do recolhimento humano. Mar onde reinam os sentimentos e a paz, o silêncio, a magia e o amor. Mar onde não há vento nem movimento algum sobre as águas. Mar de águas frias e densas, por sobre o qual paira tranqüilamente o espírito de Deus.
Sobre a cabeça do Pobre Homem, estendia-se interminavelmente o céu das emoções. Dourado, com poucas e branquíssimas nuvens, tão imóveis quanto suaves, cujos contornos acendem na alma as chamas da loucura, inspirando a natureza sonhadora, criando formas mágicas de uma serenidade encantadora. A distância do firmamento em relação ao solo, era menor do que a do céu físico na realidade terrestre, e essa proximidade celestial confundia ainda mais os sentidos do Pobre Homem. A imaginação sugeria que com um salto seria possível ao Pobre Homem sentir, invadir e atravessar as nuvens, alcançando o espaço infinito e o próprio Deus! Quem sabe, tornaria-se o próprio Deus? A humildade do Pobre Homem tolhia-lhe as ambições, e ele permaneceu imóvel...
À direita do Pobre Homem estava o Anjo, notavelmente forte e belo, imóvel, soberbo, com as asas abertas e o olhar sereno, despido de qualquer expressão, magnânimo... Sua altura descomunal permitia que seus cabelos compridos e marrons como o mais brilhoso tronco do jequitibá, tocassem levemente o céu das emoções.
A Bela Mulher estava ao seu lado direito. Linda, sorridente e afetuosa. Olhava as delicadas nuvens, cuja a beleza certamente lhe fora copiada. Vestia o mais formoso vestido, alvíssimo, tecido com o mais raro linho, pela mão das mais jeitosas ninfas. Aos pés calçava sandálias de couro avermelhado, cujos laços eram adornados com as mais extraordinárias pedras preciosas. Seus cabelos louros eram louros e compridos, tão resplandecentes que refletiam a claridade da lua. Tão encantadores que o mais talentoso dos pintores utilizando-se das mais maravilhosas tintas da natureza não seria capaz de retratá-los numa tela. O brilho dos mais lindos olhos do universo, acesos, negros como a escuridão da noite sem estrelas, davam o toque final de magia à esse fantástico ambiente.
- Ah, não seria tudo isso uma mera ilusão? Não seria toda a beleza dessa atmosfera apenas mais um devaneio de minha mente confusa? Ah, ilusão ou realidade, à Bela Mulher quero entregar minha alma! Refletiu o Pobre Homem dirigindo-se ao Anjo.
- Óh poderoso e invejado Anjo. O que me dizes? Amo a Bela Mulher! Não poderei viver, senão por ela... Dependem todos os meus desejos e minhas esperanças na proximidade com o brilho de seus negros olhos. Humildemente, creio poder ofertar todo o amor que ela bem merece e adorar e proteger pela eternidade a pureza de suas vestes! Nunca, em ocasião alguma, abandonar esta paixão que sufoca ao mesmo tempo que empolga minhas emoções... É a Bela Mulher toda a minha poesia, minha justificação e minha única ambição de felicidade...
A Bela Mulher, voltando o brilho de seus olhos negros ao pensativo Anjo, carinhosamente debruçou-se aos ombros do Pobre Homem, fazendo descansar suas lindíssimas madeixas louras sobre aquele peito apaixonado.
O Anjo, depois de alguns instantes vislumbrando a vermelhidão do horizonte, carregando na mais doce voz de todas as criaturas um tom que revelava uma sutil satisfação, dirigiu ao Pobre Homem o olhar, e discursou pausadamente, como quem tem a autoridade de ordenar ao mundo que gire em sentido contrário;
- Fui EU quem os uniu, e nem toda a potência do inferno, com os gritos agonizantes e o riso sarcástico dos seus condenados, haverá de separá-los...!