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Contos-->Salão de Beleza -- 19/12/1999 - 12:11 (Maria Abília de Andrade Pacheco) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O decote da manicura debruça-se generoso sobre a freguesa que pela primeira vez vai àquele salão. Ondulam na menina lembranças do colo dalguma mãe, envoltas num círculo de calor e presença. Longínquas horas mortas. Os salões de beleza têm um não-sei-quê dos prostíbulos, alguma breguice comovente nos olhos caídos-caiados-coloridos dos pôsteres que pendem das paredes toscas. Eta, que o coração cobre-se de forte camada de rímel, sombra roxa e batom encarnado, ao cheiro de sabonete e perfume barato!
Neusinha, suando em bicas, maneja intrépida a pedra-pomes em movimentos rap-rap-rap na meia-sola de pé grossa. "Anda descalça? Meu Deus, isso sim é que é coragem! Minha filha, ouça este conselho: ande calçadinha, pezinho fino, bonitinho, que homem anda difícil na praça!"
A menina, calada, imagine lá o que pensa, assim parturiente, entregue à destreza de mãos que ajudam a natureza a compor sua obra. Mulher, essa parideira pela vida afora. Desculpe, tirei um bife! Mas também, unha difícil, hem? A menina, silêncio. Tantas estações passarão até que unhas embutidas nas pontas dos dedos, esses botões de rosa, componham jardins inteiros. Roupas, que as quero no controle das imperfeições do corpo mais que outra coisa no mundo! Finalmente são meus os olhos que brilham diante da roupagem de unhas que me pertencem.
No salão, pouco a pouco vão-se desnudando cutículas ao viço das unhas. Besta quem pensa que a menina ainda ouve da memória algum queixume. Feita a raspagem e a lixação, hora do esmalte. Neusinha despeja no colo da menina uma variegada caixa de cores - escolha! Os olhinhos rodopiam incontáveis cirandas sobre o esplêndido arco-íris, coloridos cinco minutos. Sem coragem para o vermelho, cheia da vontade do rosa virginal! Os olhinhos olham que olham. Neusinha impaciente, os olhinhos escolhendo. Pensou? Trazer na ponta dos dedos uma galeria de obras de arte em série!
Sem nenhuma paciência, Neusinha levanta-se vou-tomar-um-café-na-cozinha, erguendo-se do tamboretinho com forragem de couro e afastando de si com certo ímpeto o lençol de chita que faz as vezes de cortina entre o salão e o resto da casa. Sem a manicura incômoda, a menina tinge-se do romantismo clarinho do tom areia e sonha, vaporosa, com o véu de renda. Finalmente, pacificada com as cores todas, ouve o grito de seu primeiro coração: vermelho-carmim, este. Com o esmalte na mão fortemente fechada, consciente de sua escolha, olha para a rua de tráfego de pernas e rodas, e espera.
Neusinha volta do café: "Logo o vermelho-carmim? Melhor eu comprasse só esmaltes vermelho-carmim! Ninguém usa outra cor! Ei, Corrinha, venha ver, mais uma que escolhe o carmim!"
E uma empregada com olhos de feijão queimado aponta uma cabeça hesitante na cortina de chita e murmura alguma coisa, ou sabe lá se ao menos terá entendido a pergunta.
"Olhe, menina, explico: lá pelas três vem a mulher do Seu Clésio e ela não usa outra cor que não seja vermelho-carmim. Longe de ser má vontade minha, veja: o esmalte está que é só uma rapinha. Não vai dar para pintar nem seu pé, quanto mais todas as vinte e tantas unhas dela! Também sou louca pelo Leonardo DiCaprio e deixo o guapo para quem de direito, alcançou? Não dá, e está decidido. Primeira vez que vem aqui, e já com essas exigências? Para seu governo, a mulher do Seu Clésio é minha freguesa de cinco anos!"
Então, tudo por tudo é cativo de hierarquias, seqüências obrigatórias, leis obscuras e arbitrárias, e eu nesta vida vou morrer testemunha! Pois passe então na senhora esse esmalte que meu coração escolheu, para eu ver como fica, já que não posso experimentar eu em mim a cor de meu enfeite.
O rosto de Neusinha readquire o rosado de horas felizes. Com um sorriso nos
lábios de batom escuro, passa uma camada generosa do esmalte na unha adunca: uma beleza!
A menina olha, olha, aperta de leve o dedo de Neusinha entre os seus, examinando-lhe a unha, e descobre que jamais conseguirá algum dia uma unha sinuosa e sensual tal qual a que mira agora. O momento da frustração da menina dura tanto quanto o minuto certo do "Oh!" esperado por Neusinha. Mas o "Oh!" não vem. E bem se sabe que basta um sopro do tempo para que viceje a dúvida. Assim é que o sorriso de Neusinha vai murchando e murchando. Ela procura algum erro. Quem tanto procura acaba encontrando nem que seja uma repulsiva bolhinha de ar estourada na unha recém-pintada. Não bastasse, o carmim assim de perto parece muito menos encarnado. Neste dia, pelo menos. "É o tempo chuvoso!" - tenta uma Neusinha sem-graça - "esse esmalte fica lindo é no verão".
A menina, por seu turno, segue matando inadvertidamente o sorriso de Neusinha. Mais e mais insultada, a manicura vocifera diante da bolhinha minusculita, que pulula da unha como a desejar voar distantes dedos e furar mundos turvos. Ensaia uma reação: "Quase três horas, acho que a mulher do seu Clésio não vem hoje. Ah, menina, vamos arriscar então no carmim mesmo? Também não sou obrigada a esperar freguesa tarda. Ora, que afinal foi você a chegar primeiro!"
A menina, olhos fixos na unha sensual de Neusinha, diz: "Desisti do carmim, vou preferir uma base hoje".
"Quê? Uma menina da sua idade, passar só base? Base é o recurso de quem não tem tempo de se enfeitar com mil cores. Você tem a eternidade da juventude dos seus... quantos anos?" (A menina olhando a unha sensual) "Tinja-se com todas as cores do arco-íris! Vermelho-carmim é só o começo".
A menina, irredutível: base, somente base, que te quero base.
Neusinha, vidro carmim nas mãos, balança-o antes de descer-lhe às camadas na unha, nesse aquecimento consabido de manicura que vai mesmo pintar as unhas com aquele seu esmalte escolhido. "A esposa do seu Clésio vem daqui a pouco, menina!" - suplica.
Desta vez a menina não entende: "Vem, pois então?"
"Daí, vai ser bom ela chegar e me ver pintando suas unhas de carmim, este o seu castigo dela".
"Não estou para nenhum castigo, só quero algo simples, por isso fico com a base".
Nada resta a Neusinha senão capitular. A contragosto, corre a abrir, presta, a tampa do vidro da tal base. O cheiro do esmalte vai tomando conta do ambiente, penetrando primeiro o nariz de Neusinha, da que não esquece a bolha, depois o da menina, da que não esquece a volúpia da unha que jamais será sua.
"Quantas demãos?"
"Só uma, bem levinha".
"Ah, isso é que não, você, tão novinha... Melhor duas".
"Uma e única".
Neusinha, num último suspiro, grita louca outro achado: "Unha francesa!"
"Outro dia".
Contrariadíssima, Neusinha vai retirando o excesso de esmalte do pincel na borda do vidro, derradeiro aquecimento para a pintura última e, num só impulso, vai vestindo a unha da menina de pinceladas perfeitas que, a pretexto de enfeitar unhas, antes acentuam-lhes o viço. Lindas as unhas ficam.
Serviço terminado, a menina levanta-se, acordando o esmalte vermelho-carmim que dormita na dobra da saia. Espatifo! Vermelho-carmim, vermelhão-encerado, vermelho-imprevisto, piso manchado. Esmalte cor de sangue, golpe de misericórdia. Para a mancha correm todos os olhos, silencia-se o secador por longo minuto. Nenhum pio. Só o murmúrio da menina à boca entreaberta de Neusinha: - Pago no fim do mês!
E assim vai embora, com as unhas rebrilhando ao sol fortíssimo de exatas três horas.

abilia@uol.com.br
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