JFS204H chegou em casa como sempre às 22h43min. Uma coisa estranha chamou sua atenção, assustando-o. Por que aquela Viatura Cinza na porta do prédio? Intuiu que algo estava errado. E era com ele. Mais ou menos esperava por isso. Criou coragem, aproximou-se, mostrou seu Cartão de Identificação aos Subalternos que bloqueavam a entrada do edifício e se preparou.
– É ele. Finalmente chegou! – gritou um dos Subalternos, dirigindo-se aos outros.
– Até que enfim! – vociferou o Oficial.
JFS204H sentiu o sangue gelar nas veias assim que avistou o Oficial. A presença deste implicava em coisa grave. Sempre que mandavam um Oficial era porque o fato era importante. Temeu pela sua sorte.
– Entra aí, já! – berrou o outro Subalterno, empurrando-o com violência para dentro da Viatura Cinza.
Obedeceu calado, conhecia bem essas coisas, sabia que era o momento de se calar. De mais a mais, de que adiantaria dizer algo em sua defesa? Não o ouviriam. Sua chance de se explicar era somente no Conselho Um.
Saíram em disparada, pelas ruas e avenidas vazias. Eram os únicos a transitarem naquele horário. Durante o percurso de quinze minutos vira somente uma Viatura Marrom, que diga-se, passou por eles em velocidade muito maior. Sim, pois aos Marrons era permitido alcançar 180 km/h e a Viatura Cinza se limitava a 120. Fora isso, o silêncio. Chovia fraco. Por isso estavam todos nervosos.
– Maldita chuva! – era o pensamento que a todos afluíam raivosamante sempre que chovia. – Quando nossos cientistas aprenderão a eliminá-la? Anos de pesquisa, milhões gastos... e nada. Era um dos poucos desafios da Natureza que não tinham conseguido vencer. Assim esse transtorno continuava. Quantos já não tinham sido mortos devido a esse fracasso. Prêmios, honras, torturas, mortes... havia-se tentado de tudo. Mas esse desafio jamais fora totalmente vencido. Tinham conseguido modificá-la, é verdade, um tipo diferente de chuva e cada vez menos, mas não sua eliminação completa. Tornara-se o desafio do século. A Sociedade assegurava que a vitória total sobre a Natureza estava próxima, diariamente frases de efeito eram veiculadas na Televisão sobre esses assuntos.
O que mantinha a confiança de todos na Ciência eram os grandes feitos já alcançados. A eliminação do choro, por exemplo consumira anos e milhões em pesquisas e desenvolvimento da vacina final. Está certo que fora necessário sacrificar algumas milhares de pessoas durante a fase de testes, mas veio a compensação. Agora ninguém mais chorava e nem se lamentava, o aspecto grave e sério passara a ser uma constante entre os habitantes do Planeta Terra. Era melhor assim. Ninguém se queixando, contestando, nada de sentimentos baixos. De difícil trato eram os recém nascidos. Assim que nasciam choravam. A solução no momento era deixá-los isolados, alimentados via sondas, até que parassem de chorar, meses depois..
Com as plantas e os animais não fora assim tão difícil. Bastaram vinte anos de pesquisas sérias e algumas centenas de milhões em gastos e por fim o sucesso. Há anos já não se viam mais animais e nem plantas. Apenas na Biblioteca Central havia farto material sobre essas coisas, com as devidas explicações de sua nocividade e fotos dos Grandes Cientistas que tinham participado de sua eliminação. Afinal as flores artificiais eram muito mais bonitas, podia-se escolher o aroma preferido e até trocá-lo quando se quisesse.
A vitória completa sobre a Natureza era próxima, prometiam diariamente na Televisão os gênios da ciência. Tornar-se um deles, pertencer a esta reduzida elite era o sonho de todo jovem. Sempre se podia comparecer à Biblioteca Central, após a devida autorização. Livros em casa foram proibidos há muito tempo. Com efeito, a leitura prejudicava a audiência da Televisão.
JFS204H mesmo, tinha bem escondido em seu apartamento um livro sobre os feitos desses homens admiráveis. Às vezes, no escuro da noite, levantava-se furtivamente, tirava-o do esconderijo e se maravilhava com as histórias sobre os feitos dos Grandes Cientistas. Sonhava tornar-se um deles algum dia. Nesses sonhos imaginava-se no cume da glória, sendo aclamado pelas multidões quando desfilasse pelas ruas na Data Nacional. Sabia o quanto se arriscara por ter furtado o livro da Biblioteca Central, relembrava sempr a angústia que passara na ocasião, o medo de ser descoberto. Por fim conseguira chegar no apartamento com o livro. Foi uma vitória sua e vangloriava-se dela. A única vez nos seus 26 anos que tinha conseguido desobedecer o Sistema. Sentira na época uma emoção tão ou mais forte de quando tinham eliminado seus pais. Mais forte ainda, dado que não lhe fora difícil se convencer da culpa dos dois velhos.
Agora um novo desafio se lhe apresentava. Do que seria acusado? Não se lembrava de nenhuma desobediência ao Código. Procurava alguma coisa que explicasse sua presença na Viatura Cinza, mas nada! O que teria feito? Tratou de relembrar como era seu dia a dia, talvez pudesse encontrar alguma falha.
Levantava-se exatamente às 6h42min, tomava as pílulas, saía às 7h22min, sempre de acordo com o Regulamento. Caminhava até a Universidade, passava o Cartão de Identificação na leitora, recebia o sinal verde... o que teria feito de errado? Tomava as pílulas do almoço, comparecia sistematicamente às aulas... nunca discutira com os Mestres... as conversas com os outros alunos giravam sempre em torno de coisas sérias, como “As Fábulas Sobre as Religiões do Passado”... ou “Como Viver Bem Seguindo as Normas do Sistema”... o que estaria errado? Nos prazos devidos e até com boa antecedência levava seu Cinto Individual para checamento na Oficina. Estava tudo em ordem com ele.
O medo que o possuía desde a adolescência e que às vezes se manifestava de forma mais intensa devido a uma doença logo curada surgiu nele durante a viagem até o Conselho Um. Nada conseguiu imaginar do que pudesse estar errado. Resolveu tomar uma pílula para matar a fome e esperar. Afinal a Sociedade se dedicava ao bem estar das pessoas, nunca percebera nada que não fosse orientado no sentido de fazer o bem a todos. Tinha fé nos Representantes Maiores, passava horas à frente da Televisão vendo os desfiles e ouvindo os discursos.
Finalmente o prédio de 30 andares. Entraram pelo subsolo e em instantes achavam-se no elevador. O Subalterno que batera nele apertou o botão do 26º andar.
À saída do elevador vira um suspeito sendo interrogado numa das salas próximas. Notou o sangue escorrendo de suas faces e as ferramentas de tortura pregadas na parede. Sentiu medo. Seria este seu destino? Gelou.
Um novo pensamento ocorreu-lhe. Estava sentindo aquela coisa ignominiosa. Medo. Não diria nada pra ninguém pra não ser punido, mas prometeu a si mesmo redobrar a atenção e tomaria providências para eliminar tão odiosa sensação.
No Salão das Audiências teve que esperar que terminasse a sessão em andamento. Para sua sorte, percebeu que outro acusado saía sorrindo, acompanhado de dois Subalternos.
– Bom presságio – pensou, sem muita convicção.
Sentou-se na cadeira indicada e, em silêncio preparou-se para ouvir o Juiz.
Demorou a entender, mas ficou um pouco mais aliviado quando soube que o problema era com sua Televisão. Defendeu-se argumentando que fizera a requisição para checamento dos circuitos, escrevera nela que volta e meia as luzes amarela e azul piscavam. Não soubera consertá-la e por isso pedira que fosse verificada. Felizmente levava sempre consigo uma cópia da requisição, por medida de segurança e apresentou-a de pronto ao Juiz. Argumentou que, estando ela com defeito no marcador de tempo, não pudera controlar com perfeição as horas obrigatórias dedicadas a assistir à Programação.
Aproveitou, para demonstrar de modo firme sua crença no Sistema, que jamais atrasara o envio do Questionário Semanal, devidamente preenchido e sempre com as respostas corretas. Acrescentou o que pode juntar no momento para reforçar sua defesa. Que era feliz, que não chorava nunca, nem visitava ninguém, etc. Mas foi a prova de que tinha comunicado imediatamente o problema com a Televisão que o livrou do castigo. Percebeu o ar de severidade desaparecendo da cara do Juiz.
– Ufa! que susto levei – respirou mais confiante.
Enquanto aguardava a decisão do Juiz, veio-lhe à mente o que lhe aconteceria se fosse condenado. Seis meses de reclusão na Cela Escura, sem ver nem falar com ninguém e com a dose de Comprimidos de Alimentação reduzida. Além de por dois anos ostentar o emblema vermelho na manga da camisa, para que todos marcassem bem quem era ele.
Três horas mais tarde estava na Viatura Cinza novamente, de volta para o apartamento. E contente por ter respondido a contento as trinta e cinco perguntas de praxe formuladas pelo Juiz. Até tinha gostado do incidente. Tivera a oportunidade raríssima de poder falar, colocar para fora as coisas criadas por ele em sua defesa. Ficou surpreso consigo mesmo por tal procedimento. Jamais se julgaria capaz de raciocinar tanto. O defeito na Televisão era o culpado de toda a confusão. Sim, era isso mesmo. Sem controle sobre o tempo de exposição aos Raios Televisivos, julgara durante alguns dias que tinha assistido a Programação de acordo com o Regulamento. Mas não, ficara em frente à Televisão por menos tempo, e isso o levara a pensar, enquanto aguardava o sono.
O Juiz o despedira com um ar de satisfação, acrescentando cordialmente:
– Bom!... muito bom! Muito bom menino!
Assim que entrou no apartamento, notou que haviam trazido uma Televisão nova. Ligou-a mais que depressa e ainda que um pouco alterado, abriu a caixinha de pílulas.