Alfredo era um menino tímido. E sua timidez tornava-o calado. E seu silêncio tornava-o sisudo. E sua sisudez tornava-o só. E sua solidão tornava-o triste. E sua tristeza espantava o amor.
Assim era e assim continuou a ser quando se tornou adulto.
O xadrez passou a dar-lhe os melhores momentos de sua existência. Era bom jogador, tendo obtido em competições muitas medalhas de bronze e algumas de prata. Nenhuma de ouro.
As leituras também preenchiam grande parte de seu tempo, quando não estava trabalhando. Tornou-se um consumidor de livros, sem nunca ter tentado escrever um só artigo, um só poema.
No escritório era bom funcionário, reconhecido por todos pela dedicação e honestidade demonstradas. Os cargos melhores e mais bem remunerados eram, contudo, destinados a outros servidores, talvez não tão competentes, mas certamente mais simpáticos e confiantes.
Sem mudanças, o tempo passava e a idade avançava. Reduzia-se, cada vez mais, o número de parceiros no xadrez. Outros passatempos apareceram em sua vida: o baralho, para a paciência, e as palavras cruzadas.
De vez em quando, Alfredo dava um passeio por Copacabana, bairro onde residia. Diariamente, sentava em banco de praça próxima ao seu edifício para ali mergulhar nas revistas de palavras cruzadas.
Vocês, caros leitores, já tomaram conhecimento, pelo acima colocado, do que era a vida de nosso personagem: trabalho, apartamento, leituras, jogo de paciência, palavras cruzadas e, algumas vezes, um passeio solitário pelo bairro e uma partida de xadrez. Tirando o atendimento das necessidades fisiológicas, nada teríamos a acrescentar.
Na Praça Serzedelo Correia, em uma manhã de sábado, chamou-lhe a atenção um homem de cerca de quarenta anos que, como ele, aparecia no logradouro, diariamente, com revista de palavras cruzadas na mão, passando a preencher com sofreguidão os quadradinhos apresentados à sua frente.
O encontro diário levou os dois, inicialmente, a um seco cumprimento e, decorridas algumas semanas, a comentários sobre o tempo e fatos corriqueiros.
Apareceram, então, trocas de informações sobre as palavras cruzadas. A iniciativa foi de Flávio, o novo companheiro, ao perguntar-lhe qual era o nome do átomo com carga negativa que se iniciava com um A e era formado por cinco letras. Foi com grande alegria que Alfredo respondeu, envaidecido, que a palavra era ANION.
Daí para diante, a amizade entre os dois foi crescendo. Alfredo não via a hora de encontrar Flávio, primeiro na praça e depois em seus apartamentos, não muito distantes um do outro.
Passaram a ser rotineiros os telefonemas para a solução de uma ou outra questão apresentada nas palavras cruzadas.
- Como é? Time de futebol italiano que tem oito letras e começa com J? - Só pode ser o Juventus.
Foi com tristeza, portanto, que Alfredo ouviu de Flávio a notícia de sua mudança para Irajá. O chefe do amigo não o apreciava e resolveu rebaixá-lo no emprego, reduzindo substancialmente seu salário. Diante disso não mais poderia arcar com o aluguel do quarto e sala na Domingos Ferreira.
Os dias seguintes foram difíceis para Alfredo, que não podia imaginar-se sem a companhia do amigo. Até que uma noite de insônia trouxe-lhe a idéia: os dois poderiam morar juntos em seu apartamento.
Na manhã seguinte, no encontro de sempre, a idéia foi levantada e discutida. Inicialmente, Flávio ficou desconsertado com a proposta, retrucando com a afirmação de que não desejava dar trabalho e nem abusar da camaradagem demonstrada pelo companheiro. Bastaram alguns minutos, no entanto, para deixar-se convencer a transportar suas coisas para o imóvel de Alfredo.
Grande mudança, e para melhor, ocorreu na vida dos dois a partir da convivência. Solteirões convictos, não esperavam dar-se tão bem.
Começaram, então, a freqüentar juntos restaurantes, supermercados, lojas, cinemas e teatros da Zona Sul. Até a praia, que nunca lhes atraíra, passou a ser ponto de lazer dos felizes moços. As palavras cruzadas tinham ficado para trás.
Meses depois, Flávio apareceu eufórico. A nova chefe valorizava seu trabalho e havia lhe dado um belo aumento de proventos. A felicidade estava estampada em sua face, para alegria de seu companheiro de apartamento.
A partir daí, Alfredo passou a sentir-se só como antes. O companheiro havia começado a largar o trabalho cada vez mais tarde. Isso não mais lhes permitia as longas conversas à noite, antes de se entregarem aos braços de Morfeu.
Só ficou sabendo do motivo do afastamento de Flávio quando ouviu o amigo dizer que se apaixonara por sua chefe e estava sendo correspondido. Tentou mostrar-se alegre com a notícia, mas sentiu ter aberto a boca artificialmente, quase com dor, para revelar felicidade que na verdade não existia.
O casamento de Flávio ocorreu poucas semanas depois e o amigo, como não podia deixar de ser, foi padrinho. Muitas fotos com os noivos e o primeiro pedaço do bolo revelaram o carinho que lhe demonstrava o companheiro.
Alfredo, após o casório, retornou ao seu apartamento na Hilário de Gouveia. Procurou revistas de palavras cruzadas e não as encontrou. Só achou uma tristeza imensurável que, pensou, certamente o acompanharia pelo resto de sua vida.
Fechou-se no banheiro. Abriu a torneira de gás calmamente, impressionando-se com sua coragem e segurança. Esperou, então, o fim de sua timidez, de sua sisudez, de sua solidão e de sua tristeza. O último pensamento foi a procura de sinônimo para a palavra afeição: quatro letras, começando com A, ... .