A CASA BRANCA NO FINAL DA RUA PERNAMBUCO
Andamos nas cidades tão ocupados que não percebemos que estamos cercados de estórias. Muitas delas tão próximas a nós, que se soubéssemos disso, pararíamos um pouco, e prestaríamos atenção a alguma coisa ou a alguém que está passando na nossa estrada. Foi isso que aconteceu com Gracinez. Gracinez era uma gracinha de menina. Uma moça muito esperta e inteligente; criou-se na roça e depois, por volta de 1985, foi morar em Aracaju. Naquela época Aracaju dava sinais de crescimento e ninguém tinha tempo de parar e prestar atenção a alguma coisa fora da rotina. Todos estavam em harmonia com o ritmo do progresso. Contudo, as cidades têm bueiros e esgotos, ruas velhas e novas, sangue aqui e ali. Aracaju seguia o rumo de todas as filhas do Brasil.
A jovem de Monte Alegre estava um dia à tarde caminhando perto dos trilhos da Leste. A Leste é a ferrovia Sul Atlântico, uma ferrovia que sai de Aracaju e cruza boa parte do estado. A moça estava tão desatenta que pisou em falso e machucou o tornozelo. A dor foi tão grande que a menina mal conseguia andar. Um senhor de idade um tanto avançada percebe o ocorrido e aproxima-se da moça.
- O que houve menina? Machucou-se?
- Sim. Pisei em falso e parece que torci o tornozelo.
- É bom pôr gelo. Passa logo. Chegue à frente! Aqui é minha casa! “Maria!” Gritou o senhor em busca de ajuda. Dona Maria veio logo e com Deus na boca disse:
- Valha-me meu Deus! O que houve Tião?
- Foi a menina que machucou o pé.
- Vixe minha fia, tá com a cara cheia de dor. Chega pra cá! Seu Tião trouxe um banco de madeira e dona Maria pôs gelo no machucado de Gracinez. Eles moravam no final da Rua Pernambuco já avistando os trilhos da Leste. Dizem que as aranhas caranguejeiras invadiram as casas daquela quadra. Foi um sofrimento para o povo do lugar. Mas, fazer o que? Seu Tião dizia que as coitadas não tinham mais onde ficarem.
- Tá mió, minha filha?
- Tô. Dói um pouco, mas, acho que dá para andar.
- Dá mesmo? Num quer ficar mais um pouco? Olha lá hein! Seu Tião pegou outro banquinho e sentou-se ao lado de Gracinez e iniciou uma prosa com a menina.
- Sabe moça, aqui já foi bom de morar. Não tinha bandido; nem droga, nem gente sem futuro. Todo mundo vivia como Deus quer; bem contente com o que podia ter. Tinham muitas mangueiras, havia muitos sítios; as casas eram mais distantes umas das outras, mas, nem por isso o povo não se falava. O Aribé era um lugar bom de morada e para aqui vieram muitos de todos os cantos de Sergipe. Lembro-me de uma moça cujo nome é o seu. Dona Gracinez. Ela veio de Monte Alegre com suas filhas e por aqui ficou até Deus a levar. O povo todo da rua contava que Gracinez teve um grande amor antes de casar-se com seu Feliciano. Esse tal Feliciano era um homem bom, embora, muito rigoroso na educação das filhas. Ele conheceu uns homens do bando de Lampião quando morava em Monte Alegre na época em que o cangaceiro levou dona Gracinez para ser mulher de um soldado de Curísco. Naquela época as mulheres tinham muito medo que Lampião roubasse suas filhas. Dona Gracinez foi uma das vítimas do cangaço. A jovem menina se interessou pela estória do velho e esqueceu-se da dor de seu pé.
- Conte seu Tião como foi a estória de Gracinez no cangaço! Disse a menina Gracinez com curiosidade.
- Minha filha essa estória me arrepia todo. Eu tive que tomar banho de arruda para parar de sonhar com o bode preto.
- Bode preto, que bode preto? Perguntou a moça Gracinez.
Gracinez era filha de um pequeno agricultor e vivia uma vida de rainha no seio de sua amada família. Todos os dias ela ia com seu pai pegar leite no curral da roça deles. Eles saíam antes do sol subir. Gracinez estava noiva de um soldado da polícia que havia sido promovido a sargento por méritos. O homem era dedicado ao que fazia. Quando o rei do cangaço cercou Monte Alegre, o Sargento Cupertino se prontificou a chefiar a tropa de resistência e captura do delinquente. Tentou muitas vezes, mas, o danado escapuliu de todas. Lampião gostava de forró e por isso as pessoas davam festa para ele e seus homens. O problema é que moça direita não andava nesses lugares. Um dia saindo do curral de sua fazenda, Gracinez e seu pai se depararam com os homens do bando de Curísco. Um deles olhou para a pequena e se apaixonou por ela. O bando seguiu destino assim como Gracinez e seu pai.
- Como era o amor dela com o Sargento seu Tião? Perguntou Gracinez.
- Cupertino era um rapaz correto e queria casar-se com ela. Todas as noites quando não estava de serviço jantava com a família dela. Era uma pessoa de casa. Os dois se amavam de verdade. Gracinez dizia: “Sem Cupertino, num vivo mais”. Eles se entendiam muito bem e as diferenças eram resolvidas na conversa como deve sempre ser, num é minha filha? Pois bem, Monte Alegre fazia tempo que tinha visto um amor daquele. Contudo o rapaz de Curísco ficou com a imagem do rosto de Gracinez em sua cabeça. Ele teve um surto de amor inesperado e sua face caiu desde então. Curísco dizia para ele: “Tá choco macho? Levanta a cabeça!” o rapaz respondia: “Choco não, mas a moça do curral me quebrou o gosto de viver, sem ela não dá. Vamos atrás dela seu Curísco!” O caso durou semanas, até que em uma tarde de sol muito quente encontraram o rapaz caído na beira do tanque. Ele estava com febre e delirava: “Gracinez minha linda onde está você?” Curísco teve muita pena do rapaz. Seu nome era Raimundo.
- Mande três homens buscar essa rapariga da peste! Ordenou o grande Curísco do sertão.
Os homens de Curísco varreram a cidade e acharam a dona Gracinez fazendo o que sempre fazia quase todas as noites. Ela e seu sargento conversavam à porta de sua casa. Os dois estavam combinando como seria a lua de mel. Falavam da serra de Itabaiana e da roça de seu Jucelino no pé da serra. “Ali nascem flores que encantam a todos que passam”.
- Moço, num dê uma de macho! Passe a arma! Disse um homem caboclo com um fuzil apontado para Cupertino. Dois outros homens pegaram Gracinez, vendaram-lhe os olhos e a levaram a cavalo sumindo na escuridão da estrada. O caboclo de fuzil na mão mandou Cupertino virar as costas. Nesse momento o rapaz pensou: “Vão me matar”. Mal parou seu pensamento e a coronhada o jogou no chão inconsciente.
-Cupertino! Cupertino!
Cupertino levantou-se, pôs a mão na cabeça, e viu sangue em suas mãos. Os pais de Gracinez choraram o sequestro de sua filha por muito tempo. Cupertino não se consolava e alimentava o sonho de reavê-la. Tentou por vezes entrar no arraial dos cangaceiros, mas, nunca conseguiu chegar perto de seu amor. Uma manhã de fevereiro, às dez do dia, ele e três elementos fortemente armados tentaram entrar no arraial pelo acampamento das putas que ficava um pouco mais afastado do de Curísco. Foram percebidos logo na primeira barraca e levaram tiros até perto do pasto de Miguel do Amarante uma légua distante do lugar. Cupertino definhava desde então e abandonou a farda. Sua triste vida passou a ser vivida no pé da mesa de sinuca e perto de uma garrafa de pinga. Pobre Manoel Cupertino.
- Seu Tião, e Gracinez? Como ela viveu no arraial? Perguntou a moça bonita do tornozelo doído.
- Bem, minha filha, Gracinez virou mulher de Raimundo. Ou deitava com ele ou morria, mas, o jovem cangaceiro não a tratava mal, seu amor era tão forte que ele sentia seu débito para com a moça e procurava agradá-la. No entanto, por mais que tentasse nada obtinha de sucesso. Raimundo e Gracinez caminharam pelas caatingas do sertão até voltarem a Monte Alegre em um verão quente de Sergipe. A terra gemia como mulher agoniada na hora de parir. A caatinga se veste de cinza com pontos verdes aqui e ali graças à força do juazeiro.
- Cupertino! Cupertino! Chamou dona Josefa, mãe de Gracinez. O rapaz estava deitado no banco da praça da matriz. Os pardais se assustaram quando Cupertino se levanta para atender sua sogra.
- Como? Perguntou ainda grogue o valente soldado.
- Lampião esta de volta, homem, vamos ver se a gente livra Gracinez! Seja macho rapaz, junte uns homens e volte lá!
Han? Cupertino retornou ao banco vencido pelo efeito etílico de sua noite anterior. Era meio dia quando o sol passou as folhas do cajueiro e incidiu seus raios no rosto de Cupertino. O calor era intenso. Quem olhasse para o chão via sombras trêmulas desfilarem ante seus olhos. Cupertino levanta-se, espreguiça-se, abre a boca, coça a barriga e caminha em direção a casa de seu sogro.
- Meu filho! Graças a Deus que você veio. Lampião está em Poço Redondo e amanhã ou depois estará aqui. Disse dona Josefa com muita fé.
- Não tenho mais farda. Vocês não lembram? Como é que vou arranjar gente para ir comigo? Disse Cupertino sem nenhuma fé. Seu Honorato, pai de Gracinez vai até seu quarto, apanha um saco de algodão, e retorna a sala.
- Está aqui tudo que juntei em toda minha vida. Pôs o homem o saco sobre a mesa com muita tristeza. Agora Cupertino sabia que podia reaver sua amada e estava disposto a tudo por esse amor.
- Não se preocupe seu Honorato, amanhã mesmo estarei com os homens aqui. Cupertino saiu da casa de seu sogro mais animado. Passou pela matriz, fez o sinal da cruz, e rumou na direção de Glória para ver se conseguia alguns homens corajosos. Na estrada de Glória, na baixada de um riacho, Cupertino desmonta de seu cavalo para aliviar o ventre. Após o serviço, percebe o moço que não estava só naquela baixada.
- Quem está aí? Sou o sargento Cupertino! Identifique-se! Nenhuma voz veio do mato.
- Será o diabo? Fale logo rapaz antes que eu atire! Berrou o sargento com muita arrogância. Saiu do mato, do lado de uma pedra enorme, um rapaz branco da cabeça grande. Seus olhos eram bem claros, nem azuis, nem castanhos, eram, na verdade, uma mistura de tudo isso. Seu cabelo era castanho escuro. As feições finas, mas a boca estava cheia de dente podre, e o bafo era o legítimo bafo de onça. O rapaz levava consigo um livro enrolado num pano cinza.
- Que é isso que você carrega? É roubo, moço? Você é do bando de Lampião? Cupertino fez as perguntas de práxis intimidando o moço como se ele ainda fosse alguma autoridade.
- É só um livro que sempre carrego comigo e eu desço aqui para lê-lo e praticá-lo quase sempre. Disse Cristovão, o bruxo de Glória.
- Deixe-me ver este livro! Disse Cupertino dando-lhe uma ordem. Cupertino folheou o livro. Este estava cheio de rezas e de encantamentos. Havia muitas figuras e símbolos mágicos. Era um autêntico Capa Preta. Cupertino interessou-se muito pelo trecho que diz: “Fazendo com fé a oração da cabra preta você se tornará invisível e só uma pessoa que te ame de verdade poderá te ver”. Naquele instante estava diante de seus olhos a solução da vida de Gracinez: “Entrarei no arraial de Lampião sem ser visto e a trarei de volta”. Sua vontade de ver sua amada era tão grande que ele se esqueceu do resto da oração.
- Moço, você quer quanto pelo livro? Perguntou Cupertino.
- Num vendo não moço. Esse livro meu pai trousse de São Paulo.
- Moço meu caso é urgente e preciso me tornar invisível para libertar uma pessoa que está nas garras de Lampião.
- Mas eu num vendo não. Repetiu o rapaz.
- Tenha piedade moço. Insistiu Cupertino.
- Eu rezo por você. Na verdade nunca testei este encantamento, mas acho que para uma causa nobre como essa os espíritos vão nos ajudar. Feche os olhos!
- E pode rezar aqui? Perguntou o bravo soldado do sertão.
- Num se preocupe! Aqui é o local certo de magia deste tipo, feche bem os olhos e se concentre na cabra preta.
“Pelo galo que cantou;
Pela cabra que berrou;
Pelo sol que levantou;
Pela noite que chegou;
Eu chamo as forças da jurema, do Imbuzeiro, e do cruzeiro;
este moço será um bode invisível e salvará sua amada”. Na mesma hora, em plena luz do dia, caiu um raio que torrou um pé de mandacaru que estava faceiro perto dos homens. Cupertino desapareceu, o rapaz era agora um bode preto do sertão.
- E agora seu Tião, como vai terminar esta estória. Esquisito! Perguntou assustada a pequena Gracinez. “Maria, pega um cafezinho para nós”. Dona Maria levantou-se do banco e foi à cozinha buscar café. Ao retornar ela diz: “Faz vinte anos que ouço esta estória e é nessa parte que Sebastião pede um cafezinho. Conte logo homem já, já, escurece, a menina tem que ir para casa”.
O bode preto inicia sua caminhada pelo sertão em busca de sua amada. Por onde passava berrava e o povo ouvia seu berro, mas, não sabia de onde vinha. A população que morava no beiço das estradas estava apavorada com aquele berro triste de partir o coração. O sogro e sogra de Cupertino nunca souberam o motivo do rapaz não ter mais aparecido. Cupertino agora pertencia à outra estória. O bode preto avistou o arraial de Lampião na manhã do dia 29 do mês de Santana. O bode preto andou em círculos berrando sem cessar até que os cangaceiros incomodados com zoada indagaram sobre o que estava acontecendo. Ninguém tinha resposta. Era um som de bode que os acompanha pelas estradas do sertão, fosse dia ou noite, manhã ou tarde, o berro do bode estava no ouvido do povo. O próprio lampião já não suportava mais aquele berro triste.
- Curísco vá chamar dona Florisbela para rezar. Ordenou o rei do cangaço. Curísco pegou a estrada da tapera e foi em busca da benzedeira. A mulher ao chegar aos limites do arraial gritou em alto e bom som: “Salve o bode preto!”
- Que é isso dona? Perguntou Curísco a benzedeira.
- É o bode preto que está no encalço de vocês. Conta a lenda que ele não pode ser visto. Somente a pessoa que o ama pode fazê-lo tornar-se visível.
- E a tua reza não pode expulsar este animal de perto de nós?
- Não, ele está aqui porque ele está em busca de sua amada. Deve haver alguém aqui que o bode deseja.
- Há três anos um de nossos homens teve uma febre de fricote por causa de uma moça de Monte Alegre, e nós roubamos a moça de casa. Não sabíamos que a coisa era tão séria assim. “E agora o que fazer?” Perguntou Curísco preocupado. Raimundo estava na espreita ouvindo a estória da rezadeira. O rapaz amava muito Gracinez e não queria perdê-la. Raimundo gritou: “Faça um feitiço para o bode aparecer e nós mandamos chumbo nele”.
- Num é tão fácil assim, não. O bode preto é um encantado e as forças da Jurema estão com ele. Você nem imagina a força de um bode preto. O jeito é levá-lo até a moça e quando ele vê-la ele ficará visível por causa do amor que está dentro dele. E será nesta hora que vocês vão rezar a oração do desmanche antes de pegá-lo:
“Sapo cururu;
Coruja encantada;
Serpente alada;
Pela força da calunga;
Pela força do cruzeiro sagrado;
O bode ficará visível”.
- Rezem, depois ele será visto, e façam com ele o que quiserem. Mas é bom sangrá-lo na garganta com uma faca virgem. O bode era grande, uns dois metros de bode. Ele tinha chifres afiados e uma barba de bode muito atraente, na verdade; o bode preto era um bode de lei. Depois disso Curísco e seus homens tomaram Gracinez numa conversa muito astuciosa:
- Moça, vá buscar água no tanque. Volte logo, seu Virgulino está esperando. A água do tanque era quase verde, mas, era única que tinha, e dela o povo bebia, cozinhava, e tomava banho. Quando a moça Gracinez foi buscar água, o bode veio ao seu encontro. À proporção que ele berrava, ele se aproximava, e seus berros deixavam o tom de tristeza para ser tom de alegria. A moça nada entendia até que viu uma forma trêmula de bode se formando na miragem do sol quente da caatinga sergipana. “É um bode preto!” Pensou a moça consigo. O bode aproximou-se dela e ajoelhou-se aos seus pés e berrou como que fosse um choro, misturado de alegria e sentimento. Cupertino, finalmente, encontrara seu amor. A pobre Gracinez em sua inocência passa a mão na cabeça do bode com muito cuidado para não tocar-lhe os chifres. Este se deita aos seus pés e põe como um cachorrinho a barrica para cima. A moça passa a mão na barriga do bode. Raimundo estava à espreita por entre as moitas de macambira. Ele e seus jagunços. Todos correm e amarram o bode pelas pernas.
- Mulher, estás me chifrando com o chifrudo preto? Perguntou Raimundo com o rosto transtornado.
- Não! Você não vê? É só um bode perdido. Respondeu-lhe a moça de Monte Alegre.
- Esse é o bode fantasma que andava assombrando todos os povoados desse sertão. Esteja preso bode maldito! Levaram o Cupertino para o arraial. Deram tiros no chão e o bode pinotava para todos os lados enquanto isso os homens de lampião davam gargalhadas. Gracinez não sabia o motivo, mas sua alma chorava ao ver o sofrimento do pobre bicho.
- Seu Tião, o que houve depois disso? Os dois ficaram juntos? Perguntou a pequena Gracinez do Aribé.
- Minha filha, juro por Deus, mas conta o povo que o bode...
- Parem de atirar! Ordenou o rei do cangaço.
- Isso é coisa de macho? Zombar de um pobre bicho? Continuou seu Virgulino.
- Deixem o bode quieto. De hoje em diante o bode anda conosco. Daquela hora para frente Cupertino deixou de berrar e só andava com Gracinez. Para onde a moça ia, o bode ia atrás. Muitas foram as noites e dias juntos. E Raimundo sempre cismado com o coitado do bode. Ele nunca mais ficara invisível, agora, seria um bode de estimação do cangaço.
- Mas, minha filha a vida num é sempre rosas. Essa estória parece não ter um fim, mas teve.
Era noite de lua. Esta estava imponente no céu do sertão de Monte Alegre. As serras vistas a distância não mais encobriam a orgulhosa senhora da noite. É tempo dos bichos darem seus uivos, ou gritos, e no caso do bode, berros. O bode berrava de alegria e pulava para todos os lados como que dançasse a luz do luar. Desse jeito foi se aproximando da barraca de Raimundo onde Gracinez estava. O casal estava fazendo amor, ou melhor, Raimundo fazia amor e Gracinez pensava em Cupertino. A moça nunca esquecera seu homem. As mulheres são assim, quando amam, amam até fim. O bode entrou na barraca do casal e deu um berro assustado quando viu sua amada naquela situação. “Bérrrrrrr!” Estas foram as últimas palavras de Cupertino. Raimundo saltou de onde estava e tomou a faca virgem por ele guardada em segredo e tomou o bode pelos chifres e o levou para a beira do tanque sob os gritos de Gracinez apavorada. “Não mate o bichinho, não, Raimundo”. Raimundo passou a vaca no pescoço do bode cortando-lhe a artéria. O animal se estrebuchava em uma poça de sangue que escorria para dentro do tanque. Lentamente o bode se transforma em figura de homem e de homem conhecido. Gracinez reconhecera que era o seu amor. Correu e o abraçou dando-lhe beijos no rosto e fazendo-lhe juras de amor eterno. Com isso Raimundo enfraqueceu o juízo. Quando amanheceu o dia, todos do arraial sabiam do ocorrido e como Raimundo havia assassinado o bode preto. Lampião ordenou seus homens que enterrassem Cupertino e ao lado de sua sepultura enterrasse Raimundo até o pescoço e lhe jogasse mel na cara. A cara do cangaceiro foi comida pelas formigas e Gracinez foi mandada de volta para seus pais. Todo o povo do sertão chorou a morte de Cupertino – amor como esse é coisa rara. Gracinez voltou para Monte Alegre, conheceu seu Feliciano, casou-se com ele. Depois da Segunda Guerra vieram morar no Aribé, em Aracaju, em uma casa branca no final da Rua Pernambuco. Ali criaram suas filhas que devem estar vivas até hoje.
- E Gracinez, seu Tião? Está ainda viva?
- Não minha filha. A pobre mulher fez de tudo para amar Feliciano, contudo, sempre Cupertino estava em seus pensamentos. Morreu e foi enterrada aqui no cemitério perto da Leste.
- E na casa que eles moravam mora gente lá? Perguntou curiosa a menina Gracinez.
- A casa fica logo ali, é só seguir em frente e você a verá.
Gracinez despediu-se do velho e de dona Maria. Agradeceu-lhes os cuidados e o bom dedo de prosa. A moça seguiu seu destino caminhando com dificuldade. A curiosidade é coisa natural de todos os homens. E quando falamos do sexo feminino parece que ela é bem maior. A moça foi ver a casa da finada Gracinez. Era uma casa branca que estava toda descascada com o tempo. O portão quebrado com um lado caído. As pessoas entravam ali para fazerem tudo que queriam. Havia fezes pelo antigo jardim. As pessoas aproveitavam o muro alto da propriedade para usarem de tudo. Gracinez entrou pelo portão, e caminhou na direção do hall que estava cheio de folhas secas e papel velho. Tentou abrir a porta da frente, mas, não teve sucesso. Então, disse ela consigo: “Onde vai dar este beco?” Ela seguiu o bequinho na lateral esquerda da casa, e mais adiante avista uma goiabeira e nela amarrado um bode, o bode era preto. “Um bode preto?” Pensou ela. “Deve ser coincidência”. Naquele instante, ela rever a estória que o velho preto da leste tinha contado. “Será o mesmo bode?” Enquanto a moça está tentando situar-se no tempo e espaço, pois, sua mente procurava respostas. Atrás dela surge uma voz que ela já conhecia.
- Minha filha, a vida é cheia de sentidos assim como as cidades são cheias de casas. Em todas elas moram estórias nunca contadas. Os homens transitam entre elas como sonâmbulos acordados pelo o urgir das necessidades.
- Mas, o senhor não é seu Tião? Perguntou Gracinez confusa e assustada.
- Tião é um contador de estórias como eu. E você quem é? Perguntou-lhe o velho de Aruanda.
O bode que estava preso deu um berro e a corda quebrou-se sozinha sem força de mão de homem. O bode veio até Gracinez, ajoelhou-se ante seus pés e chorou amargamente. Depois se deitou como um cãozinho de estimação com a barrica para cima. Gracinez passou a mão em sua barriga peluda, e sentiu uma ternura profunda. Olhou para trás e lá estava um preto velho sentado com as costas encurvada observando tudo. A fumaça de seu cachimbo subia ao céu como a oração dos justos.
- Gracinez, acorde! Disse o velho de Aruanda.
Gracinez cresceu, casou-se, e foi morar no Santo Antônio. Todas as tardes quando chegava do trabalho ela ia até o oitão da igreja olhar a vista da cidade princesa do Brasil. E era nessa hora que seu peito ardia de saudades da cidade de Monte Alegre onde vivera sua infância e nunca ninguém lhe contara sobre Cupertino e o bode preto...
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