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Contos-->PARDAIS -- 03/06/2024 - 08:37 (Roosevelt Vieira Leite) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

PARDAIS

POR ROOSEVELT VIEIRA LEITE

 

Os pardais estão por toda parte. A cidade de Campos está cheia dessas aves agourentas. Minha casa está repleta de ninhos. Logo cedo, de manhã, elas fazem um barulho ensurdecedor. Dizem que os pardais vieram para o Brasil nas caravelas portuguesas. Mas apesar do desconforto elas me fazem companhia, moro com os pardais há anos. De certa forma me acostumei com eles. Quando aparece um predador eles somem por um tempo, depois voltam com a barulheira. Moro em Campos desde os anos oitenta. Na verdade, envelheci aqui e tudo indica que vou me enterrar nestas terras. Todo mundo se foi. Meu único filho morreu de covid e minha companheira se foi devido a uma cirrose. Ela não bebia muito, mas, Deus a quis levar com isso, que Deus a tenha. E eu fiquei só nesta casa grande cheia de lembranças. Os netos não aparecem muito. Só no meu aniversário e natal que a mãe os traz para ver este avô rabugento. Meus netos são minha alegria nesta vida, no entanto, eles são uma presença ausente, pois, não os tenho quando quero. Às vezes eu vou visitá-los, mas nunca é como eu queria.

A casa onde moro é antiga. Nela já morou outras famílias. As marcas estão por toda parte. É uma casa grande. A comprei por um preço bem em conta. Eu não queria comprá-la, todavia, minha mulher gostava de casa espaçosa. Viemos para cá em oitenta e dois. A casa tem três quartos sociais e um de empregada com banheiro separado. Sala de estar e visita, um corredor que atravessa toda a casa da sala a cozinha. Dois banheiros, um social e um suíte. No quintal temos uma área coberta onde nos dias felizes fazíamos churrasco. O quintal tem uma goiabeira e um pé de aroeira. Na frente um jardim de grama verde com algumas roseiras que ocupam meu tempo pela manhã. O muro é baixo com uma grade branca que me dá a visão da rua. O hall de entrada é todo na cerâmica e paredes pintadas de cinza chumbo. Um dos quartos eu fiz minha sala de estudos e o lugar onde ouço minhas músicas. Adoro a música boa brasileira e, também, a clássica. Fico por horas na minha sala de estudos como a chamo. Ali tem meus livros e álbuns de recordações. Tenho fotos de muitos anos atrás. Fotos de meus pais, meus irmãos, gente que já se foi. Mas, as da minha família são as preferidas.

Apesar da solidão, eu sinto que esta casa está viva. Tão viva como os pardais. Muitas são as vezes que tenho a impressão de não está só. Juro por Deus! Tem dias que eu sinto que está todo mundo aqui. Quando os pardais estão agitados na goiabeira ou na aroeira é o momento que percebo que minha amada esposa está no quintal. Já senti muito isto. Quando eles dão o chirip, um som comum a espécie, eu vou para o quintal e fico um tempinho lá. Aí sinto a presença de Claudenice. É tão real que às vezes eu converso com ela. Sei que não ouço resposta alguma, mas, meu coração se alivia misteriosamente. Eu a digo o quanto eu sinto falta dela. A vida é difícil, as pessoas vão embora e nos deixam para traz. Certo dia eu arrumava as coisas no antigo quarto de meu filho Fabrício. Eu o deixo do mesmo jeito que ele o deixou quando se casou e foi morar na Avenida Sete de Junho. Bem, eu estava a arrumar as coisas, passando o pano, varrendo quando, de repente, eu senti aquela presença jovem dentro do quarto. De longe ouvi os pardais agitados voando de um lado para outro. Alguns até batiam na janela do quarto. Fechei os olhos e mentalmente disse: “Bom dia, Fabrício!” A presença ela tão viva que os pelos do meu corpo se arrepiaram. Não ouvi nada em resposta, mas, eu tinha certeza de que ele estava ali naquele quarto. Coloquei tudo no seu devido lugar, sai, e fechei a porta. Os pardais se aquietaram novamente. Assim vivo minha vida nesta casa grande cheia de lembranças.

Minha rotina é a mesma todos os dias. Acordo, vou ao banheiro para os cuidados higiênicos, depois preparo o café e como ouvindo rádio. Gosto muito do rádio ele me mantem informado sobre o mundo externo uma vez que raramente saiu de casa. Não tenho amigos, a maioria já fez a passagem, somente o Mateus vem aqui saber como ando. Mateus é estranho, vem sempre no mesmo horário. Quando ele bate no portão eu já sei que são seis horas. A gente conversa sobre o passado, os amigos que partiram, e sobre as expectativas do futuro. É, aí, que eu não gosto, pois, que futuro mais me reserva a vida? Com oitenta e três anos de idade não vejo muita coisa boa pela frente. Mateus tem setenta e seis. Gosta de dizer que ainda tem muita coisa boa pela frente. Eu pergunto-lhe se estas coisas boas são reais. Ele ri, e diz: “Deixa disso homem”. Bem, como dizia, a minha rotina é a mesma sempre. No almoço, eu gosto de pôr os três pratos sobre mesa. Faço de conta que eles estão aqui. Os pardais ficam deveras agitados nesta hora. Como, finjo que eles estão aqui. Mato um pouco a saudade que é muita. Na hora do jantar, às sete horas, faço uma oração antes de comer. Ligo a televisão e assisto até pegar no sono. Muitas foram as vezes que eu dormi na poltrona da sala. Certa feita, sonolento na poltrona tive a impressão de que Claudenice ajeitava as coisas na cozinha, até ouvi sua voz: “Messias”. Cheio de esperanças fui até lá, mas, a cozinha estava vazia. Nesta noite aconteceu algo incomum. Os pardais se agitaram durante a noite. Coisa muito rara.

Viver só na minha idade não é fácil. As pessoas não se interessam por gente de minha idade. Saio de casa e ando pela rua; pouca gente me cumprimenta, e quando o faz diz: “Como vai seu Messias?” Não passa disso. Não param nem para um pequeno dedo de prosa. Certo dia, na fila da lotérica eu estava quieto aguardando a minha vez. Uma criança se aproximou e disse: “Mãe, olha o velho!” A mãe o repreendeu, mas, não pediu desculpas. Parece que ser velho é doença. Aqui e ali encontro alguém da minha idade. Ai a conversa flui, mas, geralmente todos dizem as mesmas coisas: Os filhos, os netos, as doenças. O que eu gosto mesmo é sentar-se no hall de minha casa e ver o movimento.

Um dia sentado no hall os pardais se agitaram e revoaram na minha frente. Era uma nuvem de pássaros fazendo acrobacias na minha frente. De repente, senti o perfume de Claudenice e outras pessoas. Tive a impressão de que o portão abriu. Olhei de novo e ele estava de fato aberto. “Mas, meu Deus quem abriu este portão?” Pensei comigo mesmo. Levantei-me e fui fechá-lo, contudo, o cheiro de família enchia o jardim. Sentei-me e relaxei de olhos fechados. Os pardais se aquietaram. Essas aves são conhecidas como as aves que cuidam da passagem, elas fazem a ligação entre os dois mundos. É o que me disseram uma vez. Passei o resto da tarde todo feliz. Foi como tivesse recebido uma visita da família inteira. Fabrício e Claudenice estiveram aqui era o que eu imaginava.

Hoje eu acordei um pouco mais tarde. Não fui ao banheiro porque me sentia um pouco preguiçoso. Nem fiz comida, pois não senti fome. O desejo era o de andar pela casa. Os pardais estavam muito agitados. Pensei até que eles iam quebrar as portas e as janelas da casa. Fui ao quintal ver o que se passava. Havia uma nuvem imensa de pardais que cobria toda a casa. As aves cantavam e se mexiam em todas as direções. Então fui ver se havia algo errado com a casa. Tomei o corredor da cozinha até a sala. Fui de quarto em quarto. Parecia tudo bem, no entanto, os pardais não se aquietavam. Cheguei à sala de visitas depois a de estar e nada diferente. A casa parecia a mesma de sempre. Solitária e grande como sempre. Por fim, fui até o hall. Para minha surpresa havia a figura de um homem velho sentado exatamente onde eu costumo sentar-se. A princípio tive muito medo. Pois quem seria aquela pessoa naquela hora dentro de minha casa na minha cadeira. Ele vestia minhas roupas. Isto me deixou confuso: “Não, são minhas essas roupas!”. Pensei. “Ou são?” Pensei novamente. Arrumei coragem e fui ver o rosto do homem que estava imóvel. Olhei para ele, fitei seus olhos, e finalmente eu vi: “Sou eu!” Sim, meus amigos eu estava ali. Os pardais se aquietaram, o silêncio tomou conta da casa. Eu estava ali, ou melhor, meu corpo estava ali. Continuei a morar na casa. Agora estou com minha família. Todos nós estamos juntos aqui...

  

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