A CAVEIRA
POR ROOSEVELT VIEIRA LEITE
Pedrosa era um campense que tinha Deus no coração. O homem não faltava a missa das oito e participava de todos os encontros da Paróquia de Nossa Senhora Imperatriz. Quando criança fez a primeira comunhão. Sua mãe, dona Ernestina deu uma festa no povoado Borda da Mata. Dizem que até o prefeito foi. Pedrosa fez o concurso da prefeitura e foi trabalhar como coveiro no cemitério municipal. O cemitério municipal é uma quadra em Campos. Cem metros de frente e cem metros nas laterais. Lá estão enterradas pessoas ilustres como o senador Vieira. Pedrosa trabalhava com outro rapaz, o Carlinhos. Este era um bom rapaz, mas, tinha um vício – tomar pinga. Carlinhos levava a garrafa para o cemitério e Pedrosa não gostava, como dizia “Trabalho é trabalho!”
O dia a dia no cemitério era difícil. Pedrosa limpava os canteiros e covas. Fazia exumações e quando tinha um morto enterrava. Carlinhos ajudava, mas, a demanda era muita. Das sete às seis da tarde Pedrosa e Carlinhos labutavam no cemitério municipal. As vezes ele fazia serviço de pedreiro. Reparava carneiras e fazia canteiros. Ele ganhava um dinheiro aparte quando se envolvia nos serviços extras.
Certo dia, Pedrosa foi enterrar um comerciante conhecido em Campos. Seu Augusto Cesar, dono da loja Bordados e Companhia. O homem era muito gordo e a cova ficou estreita. A família disse a Pedrosa que alargasse a cova. Na verdade, esta foi uma manhã muito constrangedora para o coveiro de Campos. Pedrosa alargou a cova até sobrar espaço para uma pessoa transitar dentro. No serviço, Pedrosa encontrou um crânio enterrado na parede da cova. O crânio foi guardado para ser levado para o ossário. Terminado o serviço, Pedrosa se dirige para o ossário. Ele queria guardar o crânio. Pedrosa o pôs no meio dos ossos sem dono e bateu à porta se retirando do lugar. Pedrosa continua suas atividades no cemitério com seu colega Carlinhos. Aquele parecia ser um dia como os outros. Carlinhos com sua pinga e Pedrosa com seu fumo de rolo que ele gostava de fumar quando estava sem fazer nada. Os dois se sentaram defronte ao ossário perto do meio-dia. Maria, sua esposa, trazia o almoço meio-dia. De repente, os dois ouvem um assobio vindo do ossário. Carlinhos mais afoito grita: “Vixe Maria, é o coisa ruim!” Pedrosa mais calmo diz: “Minha Nossa Senhora!” O assobio se repete várias vezes até Pedrosa abrir a porta do ossário. Quando ele a abre o assobio cessa, a dita caveira que Pedrosa achou estava sobre uma mesinha que ficava no fundo do ossário. Pedrosa disse para si mesmo: “Eu não a pus aí, como ela foi parar aí?” Pedrosa não disse nada ao colega, mas, ficou com a pulga atrás da orelha. O almoço chegou. Os dois homens foram comer e Pedrosa esqueceu-se da caveira.
A tarde no cemitério foi tranquila, pouca coisa fizeram os dois homens. Por volta das quatro e meia Pedrosa escuta um assobio vindo do ossário. Ele parou o que estava fazendo e prestou atenção para ter certeza de que era do ossário mesmo. O assobio com certeza vinha da casa dos ossos. Pedrosa chama Carlinhos e os dois vão investigar o ocorrido. À proporção que os dois se aproximam do ossário o assobio aumenta. Carlinhos com medo disse que era coisa do demônio e Pedrosa curioso foi abrir a porta:
- Rapaz, não abra esta porta não! Disse Carlinhos com temor na voz.
- Preciso ver o que é isso. Pode ser rato. Disse Pedrosa cheio de dúvidas.
- Onde já se viu rato assobiar, rapaz! Tem coisa aí dentro!
- Sei não, mas se está chamando então eu vou abrir a porta. Pedrosa abre a porta do ossário. A caveira estava em cima de um banco velho de madeira. Pedrosa viu a caveira e sabia que ela não fora deixada ali:
- Veja Carlinhos! A caveira velha que eu deixei entre os ossos está em cima de um banco. Será que entrou alguém aqui?
- Mas a gente não viu ninguém passar. Qualquer pessoa teria que passar pela gente.
- Então como este troço veio parar aqui? Perguntou Pedrosa ao seu colega.
- Sei não! Tem coisa estranha neste cemitério. Primeiro assobio, depois uma caveira que anda. Pedrosa decide lavar a caveira e levar para casa. Seu colega pediu pelo amor de Deus que ele não fizesse isso, mas, Pedrosa decidiu pôr a caveira no seu quarto de oração em sua casa. Pedrosa tinha um quartinho de oração nos fundos de sua casa. Este era um lugar que ele frequentava. Nem sua mulher entrava, nem mesmo para limpar, Pedrosa dizia que era o seu sagrado. Pedrosa pôs a caveira sobre a pedra de mármore do oratório. Quando ele ia rezar ele pedia pelo dono daquela cabeça. Certo dia antes do horário da missa Pedrosa rezava o terço quando a caveira ficou iluminada. Parecia que ela tinha luz por dentro. Os olhos da caveira emanavam luz. Pedrosa ficou maravilhado com isso. No outro dia, ele conta ao seu amigo de trabalho:
- Carlinhos, ontem quando eu rezava a caveira ficou iluminada. Rapaz eu queria que você visse, os olhos dela tinham luz!
- Rapaz, joga essa caveira fora! Ela tem parte com o demo.
- Que nada rapaz, parece que ela está gostando das orações. Pedrosa rezou com a caveira um ano. Todos os dias de oração ela acendia os olhos como que participasse das preces. Certo dia, a mãe de Maria adoeceu. A velha senhora morava com o casal que não tinha filhos. Maria pede a Pedrosa para rezar por sua mãe. Pedrosa põe a mulher no quarto de oração e reza por ela. A caveira iluminou-se com a prece, a velha se assustou um pouco, mas, depois se aquietou. No outro dia, ela estava sã:
- Maria, a reza de Pedrosa é forte. Até a caveira que ele tem lá dentro acendeu a luz. Eu estou boazinha, graças a Deus!
- E é mãe. Eu sabia disso não. Ele reza todo dia antes de ir para missa. Graças a Deus. Maria não fez questão com a caveira do marido e deixou o barco andar.
A velha aparecida gosta de ficar na calçada às cinco da tarde. Isso ela faz todos os dias. Ela contou para as amigas da reza do genro. Não demorou muito para o povo procurar Pedrosa para pedir uma reza: “Seu Pedrosa, meu filho está com a barriga inchada, o senhor pode rezar por ele”. “Traga ele aqui às sete horas”. Pedrosa rezava, a caveira acendia os olhos e o povo era curado. Não demorou muito o povo chamar Pedrosa de rezador. De repente, Campos comentava sobre o homem da caveira e sua reza milagrosa.
O tempo passou, anos se foram e Pedrosa rezando pelo povo. O padre da Paróquia de Campos Gidelberto soube que tinha um homem rezador na igreja e que ele rezava com uma caveira:
- Uma caveira? Isto não pode ser. É um sacrilégio. Quem te contou isso, Mocinha? Dona Mocinha, uma beata da casa disse que todo mundo já sabe do homem que reza com uma caveira:
- Padre Gidelberto, todo mundo em Campos já tem ciência de disso. Disse a beata com tom de preocupação.
- Mande alguém chamar esse moço aqui!
- Está certo. Mocinha foi, pessoalmente, chamar Pedrosa para falar com o padre. Pedrosa estava no cemitério quando avista a beata de longe. Ela vinha como uma embaixadora da fé. Mocinha contou a Pedrosa que o padre queria vê-lo e foi logo alertando-o que a conversa não seria boa:
- Como assim, Dona Mocinha? O que eu fiz de errado? Vou a missa todo dia, comungo e faço o bem a todos. O que é que o padre quer comigo?
- É sobre a caveira que o senhor tem. Ele não gostou de saber que o senhor reza no povo com uma caveira. Quando Pedrosa ouviu a palavra caveira se aquietou. Ele sentiu que o povo da igreja ia se escandalizar com a caveira. Pedrosa preparou o espírito e foi ter com o padre depois do expediente:
- Boa noite sua santidade! Queria uma prosa comigo?
- Boa noite seu Pedrosa. Estou sabendo que o senhor tem um oratório em sua casa e que o senhor ora pelo povo. Quanto a isso eu não vejo problema, mas, a caveira é coisa do diabo. Gostaria que o senhor se livrasse dessa caveira e ficasse somente na oração.
- Olha seu padre, a caveira eu não deixo não. Ela tem muito me ajudado e curado o povo. Para que esta preocupação? É só uma caveira!
- O senhor então ora com os poderes do demônio. O senhor não pode mais comungar na igreja até que se arrependa de suas atitudes. Passar bem seu Pedrosa. O padre enfurecido despediu Pedrosa friamente. Pedrosa com os ombros caídos voltou para casa.
Mais anos se passaram. Pedrosa deixou a missa e se dedicou as rezas em casa. Mais gente chegava e mais milagres aconteciam. Um menino com paralisia foi curado. Isso se espalhou por Campos e o povo começou a fazer fila na porta de Pedrosa. A radio local todos os dias falava do homem da caveira santa. O Padre Gidelberto proibiu o povo de ir a casa de Pedrosa, mas não adiantava. Às sete da noite já estavam de plantão na porta de Pedrosa. O lugar estava apertado para todo mundo. Um comerciante rico que fora curado de catarata construí uma capela para Pedrosa. Pedrosa foi atender na capela cujo nome era Santuário da Caveira. Não demorou o povo encher de gente o lugar. No altar de Pedrosa tinha os santos e a caveira numa caixa de vidro. Quando a ladainha começava a caveira acendia os olhos, isso fazia o povo ir ao delírio.
Mas, nem tudo foi glória. No dia 27 de junho de 1998, às seis e trinta, um senhor de meia idade bate na porta de Pedrosa. O homem carregava uma pistola na cintura. Ele se apresentou dizendo que seu nome era Olegário e puxou a prosa com o homem da caveira:
- Moço, já vi todo tipo de blasfêmia, mas essa sua é demais. Onde já se viu orar com uma caveira. Você está fazendo o povo da igreja pecar. Seus caminhos são do chifrudo e quem vem aqui faz um pacto com ele. Pare de fazer isso, senão eu meto bala em você!
- Eu não tenho parte com o demônio como senhor diz. Minha caveira é do Deus Todo Poderoso. O amigo não me mete medo não. Eu não vou parar de rezar por nada neste mundo. Disse Pedrosa com muita coragem. O homem mostrou a pistola e saiu dizendo: “Então, vamos ver!”
A comunidade de Campos, todas as pessoas que receberam graças resolveram prestar uma homenagem a Pedrosa e sua caveira. Então organizaram uma procissão que aconteceu no dia 7 de agosto de 1998. A procissão aconteceu as quatro da tarde com o carro principal saindo do posto serrano na avenida principal de Campos. Eram na verdade três carros. Um para o som, o outro carregava a caveira exposta para todos verem e o terceiro que levava Pedrosa. Um mar de gente participou. Hinos religiosos eram tocados e o povo embaixo rezando fizeram o percurso da avenida até voltar ao posto serrano. Foguetes estalavam no céu. E o povo gritava salve a caveira sagrada. O padre foi para a avenida ver o desfile. A ira do homem santo foi tanta que ele trincou os dentes. Esta foi uma tarde memorável. Depois levaram a caveira para a capela. Pedrosa ficou muito satisfeito com a homenagem.
A rotina sagrada continuava, as pessoas frequentavam a capela religiosamente. O número só crescia. A televisão de Aracaju veio entrevistar o médium da caveira. Pedrosa era de fato um homem bem-quisto e famoso. Cada dia que passava mais milagres aconteciam.
O padre Gidelberto organizou um protesto contra o culto da caveira. O protesto atraiu os fiéis da paróquia e alguns simpatizantes. Um carro de som foi contrato para fazer barulho na Avenida Sete de Junho, a mais importante da cidade. O padre dizia que o culto a caveira era abominável e que os católicos de Campos não deviam frequentar a capela de Pedrosa. Algumas pessoas vaiaram o padre outras aplaudiram. Todos os dias na missa o padre citava o caso da caveira e alertava o povo que não fosse na capela de Pedrosa: “Meus irmãos, eu vos afirmo, estamos nos fins do tempo. Onde já viu orar para uma caveira, a cabeça de um pobre coitado enterrado no cemitério que a família abandonou. Quam a benção que isso pode trazer para vida de alguém? Este culto é do demônio!” Assim eram os dias em Campos, um lado falava bem outro lado falava mal.
Certo dia, Pedrosa estava só na capela e fazia orações quando a caveira começou a piscar sucessivamente. Pedrosa entrou em transe e foi a um lugar distante. Era uma colônia espiritual. Ele chegou de frente ao portão, era na verdade, um grande portão e encontrou um ser na forma de esqueleto. O ser estava em pé, bem na entrada. O ser não tinha cabeça, mas, podia falar como se fosse pelo pensamento:
- Pedrosa, eu sou o dono da caveira que você encontrou. Quando eu estava entre os vivos eu tina cabeça. Mas, cortaram minha cabeça por questões religiosas. A santa inquisição me decapitou. Fui acusado de feitiçaria pela santa igreja. Quando você começou a orar por mim mesmo sem me conhecer ou saber meu nome eu fiquei muito tocado. Pedi permissão a meu superior para fazer os milagres que você viu. É uma benção trabalhar com você.
- Obrigado por achar graça em mim. Faço muito gosto de trabalhar por amor ao próximo. Sabe, eu sou um coveiro. Ainda trabalho no cemitério municipal, porém, todas as noites a partir de oito horas eu dedico meu tempo a Deus. Eu vi a potente mão de Deus em ação. Agora sei que essa graça veio de sua intercessão. Obrigado!
- Pedrosa, entre na cidade e conheça a nossa colônia. Quando você descansar você vem para cá. Pedrosa entrou na colônia espiritual. Ele seguiu a avenida principal. Pedrosa viu as pessoas sorrindo defronte suas casas. Pedrosa viu as repartições que administram a colônia e Pedrosa viu o lugar onde as pessoas adoram a Deus. Era um lugar mágico, cheio de luz. Pedrosa não queria mais voltar para terra tamanha era a paz que sentiu, mas, uma força o puxou e ele voltou a capela.
Durante mais sete anos Pedrosa rezou com a caveira. Quando foi no dia dezoito de outubro de 2007 Olegário visita o pobre homem. Pedrosa leva um tiro de escopeta no peito e falece na capela. A caveira foi levada e sumiu, nunca mais as pessoas ouviram falar dela...
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