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Contos-->O ESTUDANTE DE HISTÓRIA -- 31/03/2025 - 08:06 (Roosevelt Vieira Leite) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

O ESTUDANTE DE HISTÓRIA

 

 

O Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe há décadas atrai pessoas de todo o estado para pesquisas e estudos do passado dessa terra abençoada por Deus. Ali se encontram documentos raríssimos sobre a memória do povo sergipano. Poucas não foram as vezes que minha humilde pessoa passou por lá para dar uma olhada no pequeno museu e nos periódicos do arquivo Mor do povo de Sergipe. No segundo andar, no auditório do centro histórico, podemos ver fotos e pinturas das principais autoridades do estado. Um passado de suor, lutas, conflitos, contradições, progresso, e muitas conquistas dessa gente que fez de sua terra o melhor lugar do mundo.

Estava minha humilde pessoa na Praça da Matriz a ver o movimento às dez da manhã do dia 14 de abril de 2013. Os pardais se espalhavam por toda a praça; as aves francesas se comportavam como se fossem donas do lugar. As pessoas iam e vinham; alguns carregavam consigo suas preocupações que eram exaladas na atmosfera do lugar; outros como eu, exibiam apenas o olhar de curiosidade, de alguém que passava por lá para dar uma olhadinha. Uma senhora vendia churros a um real, um rapaz vendia toalhas de renda a preço de banana; lembrei-me da finada Hortência, que Deus a tenha, a mulher não resistia o bordado de Campos. A praça estava tão viva quanto às pessoas que andavam por ela. Por volta das 10h30min o povo correu para o Instituto, o pipoqueiro me disse que acharam um morto no Instituto de História. Com a notícia fiquei curioso e cruzei a rua na direção do instituto que distava apenas duas quadras da praça. A polícia havia chegado; o local havia sido isolado. O povo de um lado a falar e inquirir, e os técnicos do necrotério a examinar o cadáver sentado numa cadeira. O individuo estava ali para examinar periódicos sobre um assassinato em Campos ocorrido no início do século vinte. Sobre a mesa onde sentava a vítima, havia um jornal dos primeiros anos do século passado: “Morto a facadas o Peba Assunção deixa uma lacuna considerável na política de Campos”. Detive-me um pouco para ver no que ia dar aquilo, mas, logo os curiosos foram repelidos e o lugar ficou cheio de fardas azul escuro.

 

Voltei para meu quarto na Avenida Maruim. O dia ensolarado da capital permitiu uma caminhada sem o distúrbio das chuvas litorâneas de Aracaju. Liguei a tevê para assistir o noticiário do meio dia. Sentei-me no sofá enquanto o feijão esquentava no microondas, em seguida, pus dois pedaços de carne de sol cozida para esquentar por um minuto e meio, e aguardei os quatros bipes costumeiros. A televisão dizia: “Homem encontrado morto no Instituto Histórico de Sergipe”. “Polícia desconfia que foi  uma queima de arquivo, pois, nada havia sido subtraído da vítima”. Mudei de estação, o jornal da outra emissora não havia iniciado. Voltei para o canal anterior. Entre garfadas de feijão com arroz e goladas de suco de mangaba, minha pessoa levantava a cabeça para ver melhor a tela. “Últimas notícias”. “O delegado Peixoto, responsável pelo caso do Instituto, descobriu que a vítima era natural de Campos, na região centro sul do estado”.

 

Minha pessoa cansada de tanto caminhar pela cidade foi adormecendo com o peso da refeição nordestina. A carne de sol ficou na minha boca até a hora em que fui despertado pela vizinha que estava a me chamar. Abri a janelinha da porta da frente, pus o rosto à vista e cumprimentei a senhora que estava em pé com alguns papéis na mão. “Passou um senhor aqui e deixou isso para você”. A mulher estendeu a mão esquerda em minha direção que timidamente abria a porta deixando-a entre aberta. “Obrigado, senhora”. “O senhor está bem”. Perguntou a senhora com um sorriso apertado. “Estou”. Respondi com um sorriso de sono e voltei à cama, mas, não consegui mais dormir, ora ou outra, eu via o rosto da mulher perguntando-me: “O senhor está bem”. Levantei-me, lavei as coisas do almoço e fui para a televisão novamente. O jornal do estado 2ª edição comentava o assassinato no Instituto Histórico de Sergipe:

 

Hoje, misteriosamente, ocorreu um homicídio no Instituto Histórico Geográfico de Sergipe, no centro da capital. Os funcionários da casa afirmam que não viram nenhuma movimentação estranha. O prédio dispõe de serviço interno de câmeras. O sistema não registrou nenhuma imagem suspeita. A polícia trabalha a hipótese de um caso de vingança, pois, a vítima não apresentava evidências de subtrações de dinheiro ou objetos. Segundo o delegado Peixoto, até o notebook importado permaneceu com a vítima. Agora a polícia investiga as ligações telefônicas do estudante de história. Outro mistério é a identidade do docente, segundo os registros do Instituto, a vítima se apresentou como professor pesquisador de história de Sergipe, contudo, o corpo não tinha nenhum documento, e até agora 6 horas após o crime, ninguém compareceu ao necrotério municipal para reclamar o corpo.

 

Não sei por que a história desse moço prendeu tanto minha atenção. Tanta gente morre todos os dias nas capitais brasileiras. Esse caso é apenas mais um entre os 50 mil assassinados anuais. Ademais, pra que se preocupar com alguém que eu nem conhecia. Tentei, então, parar de pensar no homem do Instituto Histórico e prosseguir com a minha vida solitária. Desde a morte de Lenilda que não faço outra coisa, exceto, caminhar pela cidade e pensar nos dias felizes ao lado da pessoa que me encheu o mundo de brilho. Lenilda não era uma mulher rica, nem esplendorosa como muitos homens esperam ter um dia. Ela era uma presença cuja ausência dava ânsias de morte. Acredito que meu mundo ficou menor depois de sua partida.

 

- Meu bem. Vamos para Campos amanhã? Norberto nos convida para uma buchada na Boiadeira. Seu Antônio matou dois carneiros para festejar o casamento de Nininha. Por um momento, pensei em não ir. A idade estava chegando, um dia inteiro fora de casa e depois viajar mais cento e vinte e sete quilômetros num era uma coisa muito boa para alguém de minha idade.

- Vamos meu amor. A que horas saímos? Apesar dos empecilhos, minha alma queria agradar a mulher que me fez crer novamente que vale a pena viver.

 

As lembranças do passado se misturavam aos comentários que eu ouvia no dia a dia pelas praças da cidade mais bonita do mundo. Aracaju, ou o antigo tabuleiro de Pirro me encantava e surpreendia a cada descoberta que eu fazia. Suas ruas e avenidas guardam segredos de seus admiradores; para desvenda-los é preciso ser um aposentado como eu. De fato, alguém decidido a descobrir sua terra.

 

- Bom dia, Teixeira!

- Bom dia Cardoso. O café quente me subia às narinas logo que entrei na lanchonete de seu Cardoso na Rodoviária Velha. O céu estava limpo e azul, e a brisa que vem da Rua da frente me soprou o rosto despertando-me dos pensamentos.

- Traga-me um quentinho e preto. Cardoso se retira de minha presença e em segundos está de volta com uma xícara de café preto no ponto.

- Como vai Teixeira. Está mais conformado?

- Estou levando como posso. Cardoso olha para a televisão de parede atrás de sua pessoa. O jornal matutino trazia mais notícias sobre o caso do Instituto:

 

O exame cadavérico provou que o homem morto no Instituto Histórico teve o pescoço quebrado. Essa foi a causa de sua morte. O exame datiloscópico revelou a identidade da vítima. Seu nome é Caetano, natural de Campos. Nesse exato momento, uma equipe da Secretária de Segurança encontra-se em Campos.

 

O caso do Instituto estava me intrigando. Quem entraria no Instituto sem ser visto, ou pelo menos, notado por alguém? E como se quebra o pescoço de alguém sem uma reação da pessoa? Tudo aquilo estava me doendo a cabeça.

- Seu Cardoso o que você acha desse crime?

- Teixeira eu acredito que o cidadão morreu porque sabia muito e quem o matou foi um profissional.

- É isso que penso também. Essa não foi uma morte qualquer. Minha esposa e a família dela são de Campos. Andei por lá muitas vezes, mas, nunca ouvi falar ou vi esse cidadão em algum lugar.

- Talvez ele não morasse mais lá. Como eu, sou de Moita Bonita, mas, moro aqui há trinta anos. Tomei meu café e continuei meu passeio solitário pela a Aracaju antiga. As cercanias do Mercado Central nos dizem muito da cidade que nasceu às margens do Rio Sergipe.  Próximo à hidroviária parei novamente para comprar um jornal. Sentei-me num banco para folheá-lo um pouco. Enquanto eu lia o matutino a vida corria pra lá e pra cá. As pessoas desciam apressadas as escadas de acesso ao terminal hidroviário. Seus destinos eram o mesmo, a Ilha de Santa Luzia, no outro lado do rio que dá nome ao estado. O jornal me prendeu. Acho que nem percebi o tempo passar. A morte no instituto não era mais notícia de capa. Ela agora estava na coluna policial. Até aquela data as autoridades não sabiam nada sobre o assassino. O caso continuava um mistério.

 

(...). O corpo não foi reclamado. Nem a polícia encontrou parentes dele em Campos. Agora o delegado Peixoto entende que o nome do rapaz pode ser falso. (...)

 

Confesso que fiquei ainda mais intrigado. Mas, que coisa estranha? Eu num sabia que aqui em Sergipe acontecia essas coisas não! O assassinato do falso Caetano voltou a incomodar meus pensamentos. Tive, até, o desejo de ser investigador. Decidi dar uma passada rápida no Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

A cena do crime estava limpa, mesmo assim, como um inspetor de policia, entrei na sala de pesquisa onde estava o moço. Olhei a cadeira onde ele foi encontrado, a mesa onde ele trabalhava no dia de sua morte. Olhei para todos os lados. Havia quadros espalhados por todo canto. O Instituto é muito rico em pinturas e retratos de personalidades sergipanas. Havia um retrato tamanho natural de Fausto Cardoso. O retrato estava na parede atrás de quem sentasse naquela cadeira. Aproximei-me do mesmo, e contra meus princípios toquei com as mãos no retrato do ilustre sergipano. Algo me dizia alguma coisa que eu não sabia o que era. Obedeci à compulsão e continuei minha investigação. Um senhor calvo desperta-me: “O senhor deseja alguma coisa?” Tomei um susto, pois, minha pessoa estava a imaginar o que poderia haver por trás daquele retrato. “Será somente a parede?” Pensava eu. “É eu gostaria de ler o mesmo material daquele rapaz que foi morto aqui”. “O senhor é da polícia?” “Não, eu pesquiso história de Sergipe”. Em cinco minutos, o homem estava de volta com os papeis. Sentei-me na mesma cadeira em que a vítima estava no dia de sua morte. E comecei a leitura do primeiro documento. “O Clarim sergipano” noticiava a morte de um Peba em Campos.

 

“O tiroteio se deu na Rua da Aurora em Campos. Faleceu no lugar o senhor José Nogueira dos Santos. Um forte aliado dos Menezes”.

 

Pensei por um instante sobre o que esse trágico momento da política campense tinha a ver com a morte de Caetano ou sei lá o seu verdadeiro nome. Continuei minhas pesquisas.

 

“José Nogueira era empresário forte em Sergipe. Além de grande pecuarista, Nogueira se deu muito bem no transporte hidroviário entre Aracaju e a Ilha de Santa Luzia. A morte do empresário deixou muitas mágoas na classe empresarial e na própria família”.

 

Li todos os textos desse passado recente de Sergipe, mas, não vi nenhuma conexão com o assassinato do Instituto. A única maneira de encontra-la seria, segundo meu tirocínio, descobrir a verdadeira identidade do estudante de história. “Mas como?” arrazoei comigo mesmo. “Como um velho aposentado descobriria isso?” “O que eu tenho a ver com isso?” Ergui-me da cadeira estofada onde Caetano viveu seus últimos segundos e me dirigi novamente para o quadro pintado do grande sergipano Fausto Cardoso. Confesso: “Algo me atraiu para aquele senhor imóvel na parede pintada com tinta plástica cinza lavável”.  Os documentos ficaram sobre a mesa. A janela de madeira de jacarandá tinha suas venezianas abertas o que fazia o vento fresco da Rua da Frente refrescar o ambiente com a brisa do Atlântico. Pus minhas duas mãos como que segurasse o quadro e tentei tirá-lo da parede. Meu coração acelerou ao pensar que o que fazia era loucura. Ninguém veio; ninguém apareceu. Senti, novamente, o mesmo impulso, e desta vez ouvi um clique como o gatilho de uma arma. A parede ao lado do retrato abriu-se ao som do clique. Havia uma escada que dava para um lugar escuro que não podia ser visto, exceto, se minha pessoa tomasse coragem e descesse até chegar a algum destino. Um rato grande do tipo guabiru saiu de dentro e escondeu-se por entre as estantes de livros e pastas que ocupavam a sala de pesquisa. Um vento com cheiro de papeis velhos saia de dentro do lugar sinistro. “E agora, será que eu devo descer?” “Mas, o que eu vou fazer lá?” Apesar de minhas conjecturas e temores, desci as escadas até o fim. À proporção que eu descia a escada, a luz me vinha aos olhos, e eu ia me acostumando; a visibilidade ficava cada vez melhor. O lugar fedia a livros velhos e esgoto. Os ratos faziam a festa. O compartimento subterrâneo, certamente, era centenário, pois sua alvenaria tinha fragmentos de crustáceos e não havia cimento. A massa era de cal e terra vermelha. Havia umidade por todo o recinto, teias de aranha se estendiam aqui e acolá. Quase não havia mobília, uma cama de casal no canto norte, uma mesa deitada com duas pilhas enormes de livros comidos por traças e cupins. Andei pelo lugar a procura de algo que justificasse o meu esforço até que vi pegadas humanas. Marcas nítidas de sapato de homem saiam de dentro da parede que dava para o oeste do lugar. Era lama da maré do Rio Sergipe, a mesma estava endurecida, mas, era recente. “Mas, por que lá em cima não tem estas marcas?” “O assassino passou por aqui”. Procurei uma forma de abri a passagem, contudo, meu esforço foi em vão. Eu ouvi passadas lá em cima, certamente, era o funcionário do instituto a me procurar. Alguns minutos depois, o silêncio voltou.

 

Como não consegui descobrir o segredo da passagem misteriosa, fui ver os papeis que estavam no lugar. A maioria deles não podia ser mais lida, no entanto, havia alguns que estavam ainda intactos, dentre eles, um mapa detalhado do estuário do Rio Sergipe. O mapa mostrava a passagem secreta que nascia no instituto e seguia até a Rua da Frente, no estuário do Rio Sergipe. Essa passagem foi feita pelos holandeses na época da ocupação das terras dos Tupinambás. O túnel cortava três quadras no centro da cidade e entrava na maré atravessando a Ilha de Santa Luzia. O túnel era feito de pedras e alvenaria holandesa com madeira forte e armações de ferro puro.

 

Por todo o percurso pude ver evidências da presença desse povo europeu. Alguns esqueletos estavam inertes há séculos, seus bacamartes ainda estavam lá enferrujados com a maresia trazida pelo vento oceânico que penetrava no túnel por claraboias espelhadas na sua parte continental. Com muito esforço alcancei o oceano; pude ver isso porque ouvi o barulho das ondas que quebravam a beira mar. Mas, que coisa estranha? Por tanto tempo essa coisa escondida e ninguém sabia? Mal fiz a indagação e avistei objetos que não pertenciam a paisagem colonial, eram colecionadores e pastas com documentos datados do ano passado. Então quer dizer que em 2012 andou alguém aqui? Certamente. Disse criticando a mim mesmo pela falta de inteligência. Se aquelas coisas estavam ali, alguém as levou. Mas quem? Afinal pra que servia aquele lugar. O calor ficou mais acentuado na parte oceânica. O oxigênio estava raro. O túnel parecia terminar numa pequena praia submersa. O ar ficou ali comprimido pela massa de água. Aquilo não foi feito pelos homens. Na verdade, o túnel terminava num porto, que com o tempo e a mudança da maré fora engolido em algum tempo do passado recente pela força das águas do Atlântico. Afinal, é sabido que Sergipe está bem abaixo do nível do mar e sua plataforma continental tem se alterado de tempos em tempos e o mar avança para o continente. Parei minha peregrinação naquele porto estranho. Sentei-me sobre restos de uma nau holandesa que descansava há séculos no lugar. Observei os documentos que trazia comigo. “O que aquele mapa velho fazia no instituto?” Perguntei ao tempo. Minha cansada e velha pessoa não suportava mais o calor. O sono me pegou, e eu adormeci.

 

Não sei quanto tempo dormi no túnel submarino. Voltei com muito esforço ao Instituto, e para minha tristeza, a porta estava fechada, ou melhor, pregada. As claraboias também. A pessoa que fez o serviço queria ter certeza que eu jamais sairia do recinto. Na sala inicial, onde tudo começou havia tochas de estopa com gordura de baleia. Acendi algumas e fui explorar o lugar novamente. O quarto inicial tinha vários esqueletos que datavam, sem dúvida, de épocas diferentes. A maioria deles havia morrido ou de fome ou de sede, pois, não havia marcas de bala ou faca nos ossos, fiz o que pude com meus poucos conhecimentos. Formulei uma primeira teoria: O túnel no inicio serviu aos propósitos de piratas holandeses, depois, dos portugueses, pois, havia bandeiras lusitanas. Mas, com o tempo, o lugar serviu de abrigo para criminosos. Isso era o que eu pensei naqueles primeiros momentos. Minha humilde pessoa sabia que se não descobrisse uma nova saída eu pereceria no lugar como os demais.

 

Minha esperança era encontrar alguma abertura para o mar ou arrombar a entrada com algum pedaço grande de madeira, mas, os ombros doidos e cansados não prestavam mais para isso. Procurei pelas duas coisas e o serviço foi em vão. O cansaço aumentou e em pouco tempo se tornou em fome, e fome canina. “E agora meu Deus?” Pensei em minha mulher e nos dias em que vivemos juntos e felizes. Vi-a em minha mente e revivi tudo por um minuto. “Ah, meu Deus nós não valorizamos os momentos felizes da vida”. “Tanto tempo perdido?” As horas no lugar misterioso corriam e com elas iam minhas energias. Um velho como eu não aguenta muito. Minha pessoa sabia que em dois ou três dias sem água meus rins parariam. Meu açúcar cairia para níveis que eu não os suportaria.

 

Os documentos foram lidos, mas, não os pude entender, pois, os mesmos falavam dos herdeiros “dos Nogueiras”. De alguma forma, os Nogueiras estavam ligados àquele túnel sinistro. O patriarca da família nos idos anos 20 possuía uma frota de embarcações que trafegavam pelo Rio Sergipe e pela Ilha de Santa Luzia, a atual Barra dos Coqueiros. Parece que o homem se envolveu com contrabando de bebidas e armas. As embarcações eram usadas para o transporte da muamba, e o túnel para esconder a mercadoria. Isso explica as armas que encontrei na parte oceânica do mesmo. Caixas e caixas deixadas para trás. O tempo não as conservou muito, porém, eram caixas de armas, e podiam ser identificadas. Uma delas tinha uma inscrição em baixo relevo: “Para Antônio Conselheiro em Canudos”. “Os Nogueiras” fizeram fortuna, mas, onde está todo esse dinheiro? Os documentos estudados por minha pessoa no instituto não falavam da fortuna atual da família. E o que o estudante Caetano queria saber? A resposta está lá em cima. E como voltar lá? Minha pessoa a cada hora passada no ventre do mar sabia que minha morte era questão de tempo. A não ser que alguma coisa acontecesse.

 

Peguei no sono novamente, a fome, a sede e o cansaço tomaram conta de mim. Não sei se dormi por minutos ou horas. Quando acordei, encontrei um revolver calibre trinta e oito do tipo ‘tauros’, posto sobre uma lata velha de solvente. A arma letal estava carregada com seis balas do tipo dundum. A visão da arma me espantou, muito mais ainda foi a chama da tocha que se tornava miúda. O oxigênio do lugar devia estar se acabando. Então decidi voltar para o lado continental do túnel sinistro. Para minha surpresa, a porta estava selada e todas as entradas de ar também. Alguém queria me matar, mas, que no momento do desespero eu usasse a arma para encurtar a dor. Quem sabe fosse um ato de misericórdia? Sentei novamente, meu velho corpo precisava de mais descanso. Adormeci novamente.

 

Sonhei com minha linda mulher. Lenilda e eu estávamos em Campos na festa da Padroeira local. Em Campos, na época da festa da padroeira, o povo se cinge de espírito cristão. Embora a cidade apresente uma sociedade muito arraigada aos bens materiais, em Campos, a festa da santa local modifica a aura dos fiéis.

- Meu bem. Esse ano padre Frederico quer que a gente dê uma rês, pode ser macho ou fêmea.

- Sim, meu amor, seja como quiseres. Naquele tempo, quando jovem eu tinha forças para correr, andar a cavalo, e uma saúde de ferro para comer os pratos culinários da terra do poeta de Campos. A gastronomia local é espetacular. Lenilda dizia que meus cabelos eram cacheados com fios dourados. Não sei se isso era verdade, contudo, nada como a beleza da mulher de Campos. Minha amada Lenilda trazia o melhor fenótipo do sertão sergipano. Morena clara, estatura média, cintura de índia, e olhos de amêndoa. Suas feições me faziam me lembrar das morenas de França ou de alguma parte do sul da Europa. Lenilda dizia: “Meu amor quando a calvície chegar, seu rosto vai ficar mais bonito, você é um tipo de homem que combina com pouco cabelo”. Acho que ela fazia referência a minha cabeça que é do povo de Glória, uma cabeça grande para a média sergipana. Mas, minha altura era considerável para as populações nordestinas, segunda ela, compensava e fazia um equilíbrio estético.

 

No mês de agosto, o mês da santa. Campos está fria, tão fria como qualquer cidade do sudeste brasileiro. Essa é uma época boa para os casais que se amam andarem pelas praças e ruas do município. Sonhei com tudo isso, então, meu espírito descansou um pouco. A causa maior dessa paz interior era minha amada mulher Lenilda. Deus a tenha em um bom lugar. Acordei novamente sem saber quanto tempo dormi. Talvez algumas horas a mais, pois, a chama da tocha estava menor. O oxigênio do lugar dava sinais de falência, isso significava que eu tinha de fazer alguma coisa para sair daquele lugar, ademais, a fome e a sede começaram a apertar com mais arrogância. Levantei-me, olhei ao redor para ver se havia alguma coisa que eu não tivesse visto ainda. No canto esquerdo da sala onde me encontrava, havia uma pá. Pensei que com ela eu pudesse forçar o caminho de volta ou arrombar a porta de entrada. A arma estava no mesmo lugar; tratei-a com total indiferença, nem inquiri sobre sua origem.

 

O barulho do mar era grande naquela parte do túnel sinistro. Entendi que se eu cavasse eu poderia encontrar alguma passagem. Trabalhei por algum tempo, depois compreendi que cavava do lado errado. Decidi, então, voltar para a entrada e tentar arrombar a porta Parei um pouco e pensei novamente: “Será que estou devaneando?” “Por que não tentei a porta primeiro?” Caminhei com dificuldade, meu corpo sentia dificuldade para respirar; os primeiros sintomas de falta de oxigênio apareciam. Subi as escadas com mais dificuldade ainda. Peguei a pá e com ela golpeie a porta sucessivamente e nada. Tentei novamente depois de uma pausa de cinco minutos. Minha respiração ficou mais cansada. Eu me sentia exausto e faminto. Não tive, definitivamente, sucesso com a porta. “E agora vou voltar para a parte oceânica?” A tocha daquele lugar estava acesa embora, aqui e ali dando evidência de sua falência. “Meu Deus!” “Mas que burrada a minha?” “O que a curiosidade nos faz?” A tocha estava ainda mais ofegante como eu. Desci as escadas e me sentei perto de uma mesa. De repente, toco minha mão em algo de metal, aos poucos percebo que era o revolver que havia sido posto na parte oceânica do túnel maldito. “Mas, como ele veio parar aqui?” “Quem sabe eu o tenha trazido e não me lembre; falta de oxigênio e fome pode dar amnésia”. Deixei a arma onde a encontrei e procurei analisar o lugar para ver se havia uma saída. Depois de algum tempo me sentei novamente mais cansado que antes. Minha mente foi novamente para a festa da padroeira em Campo. Lenilda estava linda. Nós dois assistimos a missa e depois fomos passear pela cidade. A Praça do Cruzeiro e a Avenida Sete estavam tomadas de gente. Gente de todos os povoados campenses. Na Praça da Bandeira, o Parque Mundial fazia a festa para a criançada. A roda gigante iluminada fazia a fantasia mágica das futuras personalidades de Campos. O sertão se renovava naquela época, a alegria e a prosperidade estavam em todo lugar. À medida que minha mente revivia os momentos vividos em Campos, ela ganhava mais ânimo para ver ainda mais como a vida anda por aqueles sertões. Sertões abençoados por Deus. Lembrei-me de Zé Bacateiro e do picolé mais gostoso do mundo. Senti o gosto do abacate derretendo na minha boca com prótese em cima e em baixo. O gosto de tamarindo, o azedinho mais gostoso da terra. Meus olhos cansados de ver tanta coisa feia nesse mundo voltaram a brilhar na penumbra de um túnel que eu nem sabia que existia. Meus olhos continuaram vendo, e desta feita as partidas de futebol no estádio da cidade e as vezes que me deixaram fazer o gol: “Vá professor, vá, chute mestre, chute!” A solidariedade no sertão ensina as cidades grandes que assim é muito melhor do que o “mãos ao alto é um assalto”. Meus olhos viram Lenilda no dia de nosso casamento. Seu vestido branco de Queen Mary e o perfume que seu corpo deixou pela nave da Matriz de Campos. O buquê caindo sobre mãos ávidas para conquistarem um noivo com a sorte do mesmo, a festa no clube social; a lua de mel na pousada da Serra do Macaco, as caminhadas até a cachoeira e ao minador de água mineral legítima; eu vi como o sertão é mágico e como ele é economicamente viável. Lembrei-me das fofocas das meninas da Rua Itabaianinha:

 

- Até que fim o professor Teixeira vai casar.

- Nem assentava mais esse coroa sozinho.

- Pois, eu achava que ele era, ..., era....

- Não, meninas, Teixeira é estranho, só isso!

- Só mesmo Lenilda para amarrar o homem.

- Mulher o que é que nós sergipanas não fazemos? Há,há,há!

- É verdade Cosminha, nós arrasamos! Há,há,há! Nunca me esqueci das gargalhadas das meninas quando a fofoca chegava. “Eita, sertão que mexe comigo!” De súbito voltei à penumbra e ao barulho das ondas arrebentando na praia.

 

A tocha dava sinais de adeus, e eu cansado procurei gastar menos energia. Para isso deitei-me com o rosto virado pra cima. Imaginei que em vez da escuridão do lugar havia um céu estrelado. As constelações se tornaram nítidas como numa noite sem lua. O cruzeiro do sul reluzia lá no alto e meus olhos pesados cediam espaço à letargia do sono, mas, de repente, escuto um grunhido, depois outro, e outro; eles eram grunhidos de ratos, sim, daquele tipo que vi perto do quadro do Dr. Fausto Cardoso. Os guabirus começaram a chegar um a um, e o som de grunhido que pouco a pouco se tornava mais forte. Tentei me mover levantado a cabeça e tronco, no entanto cai da metade para baixo o que me feriu a testa um pouco quando a bati no piso sujo do lugar infestado de roedores. O primeiro a me morder o fez sem piedade na minha testa, bem no lugar da ferida. O ferimento ficou maior, o sangue com gosto de ferro escorreu pelo canto de minha face, a dor fina incomodou um pouco. Tentei afasta-lo de mim, contudo, seus amigos moderam minha mão esquerda melada de sangue fresco. O lugar ficava cada vez mais escuro. O céu imaginário desaparecera. Senti um peso grande em minha barriga, mas, de tão fraco, nem levantei a cabeça. Eram os guabirus despertados pelo cheiro de sangue. A minha orelha esquerda tornou-se a refeição de um grupo de ratazanas; no início as mordidas doíam, mas, com o tempo a dor não era mais percebida. Meu ventre parecia aberto e minhas vísceras expostas. O escuro do lugar sinistro não me dava uma chance. Minhas narinas não conseguiam mais puxar o ar para os pulmões; senti convulsões; meu coração se tornava cada vez mais fraco. Procurei ver Lenilda, minha amada mulher. Vi-a como no dia em que nos encontramos. Ela estava magnífica. A moça era vida pura; era a promessa de um futuro feliz depois de todas as tempestades que passei por esses sertões. Finalmente, eu tinha encontrado a mulher certa.

 

- O senhor é o professor Teixeira?

- Sim, moça, diga-me e eu verei o que posso fazer! A menina sorriu em resposta a brincadeira.

- Bem, o trabalho de português deve ser entregue quando?

- Você não estava na sala?

- Eu faltei. Meu nome é Lenilda. Sou nova na cidade. Eu morava na Boiadeira. Lenilda estudava no turno noturno onde os alunos fora da idade podiam estudar. A moça de trinta anos conquistou o meu coração de 50. Os anos passaram ao lado dela e nem percebi a calvície, nem as mãos enrugadas. Em pouco tempo enterrei o passado que muito me feriu. Lenilda foi um lenitivo divino para um cinquentão solitário como eu.

 

O silêncio do lugar era quebrado pelo assobio do vento que vinha da Praia de Atalaia na Barra dos Coqueiros. Pensei, então, que alguém tinha aberto as claraboias. Levantei-me disposto; nunca me senti tão bem. Os ratos formavam uma enorme montanha num canto do quarto. As criaturas estavam ocupadas, faziam um barulho assustador. O cheiro de sangue era muito forte. Todo o lugar parecia mais claro, o escuro cedera lugar a uma penumbra que me possibilitava uma melhor visão. Caminhei de volta a escada e dela a porta que se abrira sem meu toque de mão, até, pensei: “Talvez estivesse só encostada, esquecida por alguém. Entrei na sala de onde saíra de maneira muito fácil; mas, quem sabe alguém a deixou aberta de propósito? A sala de pesquisa do Instituto estava vazia. Caminhei pelas suas salas e a ninguém encontrei. Sai do prédio, e logo tomei a direção da Rua da Frente que ficava a três quadras na direção do mar. A maré arrebentava nas pedras próximas a mureta da Avenida Ivo do Prado. Aracaju é linda à noite. Estranhei não ver ninguém. Decidi sentar na mureta e comtemplar o mar que tinha cor prata pelo clarão de uma lua cheia que apareceu sem ser convidada. “Será noite de lua cheia mesmo?” “Ontem, não foi?” “Ou será que foi?” O vento sopra mais forte, e depois mais forte ainda. Temi ser arrastado pela força eólica e sai da mureta. Uma luz surge na lâmina prateada das águas do Rio Sergipe. No perímetro do disco lunar refletido na água do Rio Sergipe, as águas se movem para trás formando um túnel de luz amarela muito forte. O túnel tinha o piso de flores brancas, amarelas e rosas. Um cheiro de essência de alfazema e perfumes silvestres enche os pulmões desse filho de Moita Bonita. Os peixes saiam das águas pulando de um lado para outro daquela estrada de água e flores. Meus olhos minaram água como um olho de água doce. A voz que minha pessoa ouviu e que depois foi seguida por um canto de sereia, me seduziu a entrar no mar. Caminhei por sobre as águas. Eu não sentia mais o vento, nem meu velho corpo o cansaço. Este velho caminhou até a senhora de amarelo que apareceu dentro do túnel de água e flores. A senhora estava cercada de crianças, e tinha a lua sobre sua cabeça. Suas mãos destilavam mel, o mais puro mel da terra. As mordidas dos ratos não mais me incomodavam; a mulher enxugou-me os olhos com pétalas de rosas amarelas e depois me deu água, água doce e limpa. Nós dois seguimos pelo túnel e lá dentro encontrei Lenilda; a amada de meus sonhos me aguardava tão linda e bela como nos nossos primeiros dias nos sertões de Campos...

 

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