Olá, eu poderia tomar um pouco do seu tempo? Ah sim, creio que o que tenho é uma boa história. Obrigada. Antes de tudo, eu me chamo Donna, Donna Catarina. Eu nasci na cidade de Évora em 1322. Sim, pode parecer estranho a princípio mas deixe-me continuar e você descobrirá. Como ia dizendo, nasci na cidade de Évora, naquela época tal região pertencia ao assim chamado "Condado Portucalense", hoje conhecido como Portugal.
Era filha de um dos homens mais ricos da região, meu bisavô havia ganho grande parte daquelas terras diretamente do rei, como recompensa por ter expulsado os muçulmanos que lá viviam. Terras essas que passaram entre a gerações, com ainda alguns acréscimos.
Tive uma infância curta e desinteressante, mas ficou bem pior depois. Por ser filha de quem era, quase todos os homens solteiros da região cobiçavam-me, e quando tinha eu 14 anos, o filho de um nobre da província Badajoz (seu nome era Augusto de Badajoz) casou-se com meu dote, e infelizmente me levou de brinde.
Foi a época mais negra de minha história aquela em que vivi em Badajoz; como não dei-lhe nenhum herdeiro fui considerada indigna por meu marido, que procurou nas amantes o filho que tanto queria. Nunca o teve. Desprezada pelos que viviam ao meu lado, consolava-me com Deus e nas raras vezes em que ia visitar meu pai e irmãos. Busquei uma forma de aliviar a dor e descobri meu talento para pintar, o que fazia às escondidas, sem aprovação de meu marido. Ainda lembro-me quando uma vez ele descobriu minhas pinturas; nunca fui tão surrada em toda minha longa vida. Chorei oceanos mas nem tanto pela dor e sim por ver o que pintei em chamas.
Entretanto não tardei a ficar viúva, no inverno de 1346, (quando tinha 24 anos) Augusto contraiu a tuberculose e no inverno seguinte faleceu. Por não ter herdeiros ou parentes próximos, minha família englobou também as terras de Augusto, indo um de meus irmãos lá morar. Eu voltei para junto de meu pai em Évora, lugar onde tive um pouco mais de liberdade para recomeçar a pintar. Lembro-me da felicidade que tive ao terminar uma pintura no altar da capela de lá (capela essa que nem existe mais). Aquela pintura mudou minha vida.
Fato é que não estava só na decoração da capela, existia também um homem intrigante que somente quando era noite pintava. Por curiosidade tentei aproximar-me dele, que demonstrou resistência no início, mas que com o tempo aceitou conversar comigo. Eu passei a retardar minha volta para casa para ficar a conversar com sua pessoa. Desenvolvemos uma grande amizade e mesmo depois que terminamos o trabalho com a capela ele passou a me fazer visitas regulares em casa. Com o tempo descobri que sentia algo mais que amizade por aquela pessoa deslumbrante e intrigante ao mesmo tempo. Aquele homem foi o responsável pela minha nova vida.
Com uma clareza estonteante eu me recordo daquela noite, 22 de Dezembro de 1350. Recebi um bilhete cedo da noite que dizia: "Estejas preparada, na hora em que todos se recolherem baterei em tua janela". O bilhete não tinha identificação, mas intuí de quem seria. Era algo em torno das dez da noite quando ouvi as pisadas dos cavalos e em seguida do bater em minha janela, chovia um pouco, estava frio e bastante escuro. Ao abri-la me deparei com o seu rosto e o convite para subir à sua carroça. Achei extremamente excitante aquela situação! Saímos com o máximo de discrição possível e demos voltas ao redor da cidade enquanto conversávamos. Foi quando ele disse: "Ofereço-lhe a chance de passar a eternidade ao meu lado, viverás apenas à noite como eu, mas te libertarás das correntes que te prendem a tua família e poderemos viajar juntos por todo o mundo!" Respondi com nada mais que o olhar, palavras apenas maculariam aquele momento.
Os cento e cinqüenta anos que se seguiram, passaram como um raio! Estava admirada com as novas sensações, as novas possibilidades, por ter conhecido o que era liberdade! Ironicamente, aquele foi o período de minha existência no qual me senti mais viva, eu tive de "morrer" para começar a viver! Viajei por várias partes da Europa e dediquei muito tempo à pintura. Meu senhor também ajudou bastante no amadurecimento de minha arte.
Recordo-me com orgulho quando fui chamada pelo papa Júlio II para continuar o trabalho no seu túmulo na catedral de São Pedro, trabalho este que tinha sido abandonado por Michelangelo meses antes, isso aconteceu em no início de 1507. Porém, em 1508, Michelangelo e o papa se reconciliaram e ele voltou para continuar o trabalho que tinha iniciado, pena que Michelangelo se recusou a trabalhar em conjunto comigo e poucos meses depois de sua volta eu achei melhor deixar que ele mesmo terminasse se pudesse. Não pôde. Claro que meu trabalho lá, assim como em vários outros lugares, não foi reconhecido: eu era mulher! Aliás, foi este o mesmo motivo que fez com que Michelangelo não aceitasse pintar comigo.
Infelizmente não pude continuar com meu senhor. A organização do conhecimento proposta por Francis Bacon, os princípios astronômicos lançados por Kepler, a máquina tomando o lugar do trabalhador homem, as idéias de Voltaire, as revoltas ocorridas em Paris, além de outras coisas, causaram mudanças rápidas e radicais demais na Europa, meu senhor não conseguiu se adaptar. 1792 foi o ano em ele se afastou de mim, disse que precisava se recolher e meditar, pensar sobre os novos acontecimentos... e que quando se recuperasse me encontraria novamente. Ele estava realmente transtornado! Sua mente antiga não conseguiu acompanhar as mudanças.
Passei muito tempo sozinha, e após percorrer quase toda Europa, decidi voltar à terra em que nasci. Não demorei muito por lá, as lembranças boas daquele lugar me eram escassas, mas resolvi estabelecer-me em uma cidade de Portugal. Escolhi Lisboa, tinha cansado de viajar. É deprimente poder viver para todo o sempre e não ter ninguém para que se possa compartilhar a pequenez e as alegrias de cada noite... então solidão me fez criar outra criatura noturna, como eu, para fazer-me companhia. Escolhi uma jovem chamada Maria Helena, não tinha nenhum talento em especial mas, como era bela! No entanto, ela aproveitou pouco sua nova existência, ignorando meus pedidos e avisos ela queria viajar, sozinha. Quando dei por mim, ela não estava mais lá: seguiu o rio Tejo acima, encontrei seu corpo (se é que se podia chamar aquilo de corpo) a menos de 30 Km da cidade, próximo a uma mata. Logo descobri os autores daquilo: garous, um pequeno grupo de três. Aqueles cães desgraçados! Como os odeio! Porém já estava alertada de quão perigosos eram. Tratei de voltar discretamente para Lisboa e de espalhar notícias sobre os "cães-demônio" que habitavam a mata próxima ao Tejo. Depois de alguns homens serem mortos ao irem investigar, os habitantes das proximidades fizeram um grande grupo para caçá-los, levando armas-de-fogo, para as quais os cães malditos não estavam preparados. Não acredito que todos tenham morrido, acho até improvável que mesmo um deles tenha morrido, mas pelo menos tenho certeza de que eles foram expulsos daquela região! E bastante feridos, no mínimo! Balas de prata devem doer...
Depois desse episódio, criei apenas mais um como eu. Foi no início deste século, Rantero, um italiano. Ótimo escultor. Pena que sua personalidade fosse tão explosiva... Não sei onde ele está hoje, aprendeu o que tinha de aprender e partiu... Realmente não sei se sinto falta dele.
Uma vez, no verão de 1987, vi um homem bastante interessante. Satúrnio era seu nome, canadense. Na minha opinião um ótimo escritor. Achei-o fascinante, mesmo sem ter feito nenhum contato direto com ele. Um ano após ele voltou à Portugal e eu me aproximei dele. Seu otimismo era tudo que eu precisava para continuar vivendo, decidi tomá-lo como meu parceiro, meu amigo, meu amante (já estava apaixonada por ele). Perguntei se era isso que ele queria e dei-lhe o tempo necessário para fazer sua escolha. Mas ele não teve tal tempo. Maximiliano, um forasteiro desgraçado que aprendi a odiar, tomou Satúrnio para si e o levou para longe de mim. Acredito que tenha sido vingança por causa de nossas desavenças anteriores, mas nada tinha a ver com isso Satúrnio! Em toda minha vida eu apenas matei duas pessoas, ambas acidentalmente e me arrependi imensamente depois, nunca cheguei a matar ninguém de minha própria espécie, mas se existe alguém a quem eu mataria sem piedade ou remorso, esse alguém seria Maximiliano! O desgraçado usou a única pessoa a quem tinha realmente me aproximado, desde meu senhor, contra mim.
Felizmente meu amado conseguiu voltar para perto de mim, após três meses. Três meses sem saber seu paradeiro! Foi incrivelmente horrível! E quando recebi Satúrnio de volta, meu ódio por Maximiliano tinha aumentado ainda mais! Ele quase tinha destruído a bondade e ingenuidade do meu amado. Felizmente eu consegui reparar, pelo menos em parte, as atrocidades cometidas por aquele miserável (ah como gostaria de encontrá-lo novamente!).
Porém, há pouco mais de um mês, Satúrnio resolveu viajar... disse-me que ia em busca de algo do seu passado do qual não poderia mais fugir. Sei bem aonde ele foi e fazer o que. Mas permito isso apenas por causa do seu belo sorriso e do, mais belo ainda, poema que me deixou como promessa de retorno. Por enquanto ele pode permanecer por lá... mas estou começando a ficar com saudades demais (talvez seja medo de que ele me abandone como os outros). Quem sabe eu não deveria ir vê-lo? Bem, algo a se pensar...
Pois é... minha história acaba por aqui. Como? Faltou o nome do meu misterioso senhor? Ele pediu-me que seu nome fosse conservado em segredo. Pediu-me para nunca revelá-lo a ninguém, até seu retorno. Como sei que ele está vivo? Que vai retornar? Bem, eu apenas sinto... alguma coisa dentro do meu íntimo diz que ele está vivo. Em algum lugar... se recuperando do tempo e esperando para ressurgir! O que acontecerá quando isso ocorrer não sei, mas cada coisa a seu tempo...