Pedro Maritaca nasceu e mora numa capoeira lá em São João Velho, a seis quilômetros da parada do trem - onde só o primeiro vagão atraca - em São Paulo.
Vive de cortar lenha e vender bananas aos donos das chácaras das redondezas. O advento das lareiras nas casas de campo dos almofadinhas da cidade garante-lhe um troco extra.
Cozinha num fogão a lenha e cria galinhas no pequeno sítio, alimentadas com folhas de couve e de caruru, que brotam preguiçosamente no terreiro. É adepto da filosofia "em se cuspindo nesta terra, nasce um pé de couve". Plantar mesmo, só um ralo milharal e duas arrobas de mandiocas. Não tem dentes e ostenta um sorriso de goiaba vermelha, madura e com bicho de pé.
Usa um surrado chapéu da Casa Prado, com dois furos de bala. Não tem nenhuma cicatriz na cabeça - os tiros foram de raspão, ou o dito era de algum defunto - é um mistério. A pele tem um cheiro defumado de café em bule de ferro e arroz feito com banha de porco.
É bom no machado, derruba e desbasta três metros de lenha em uma hora. Tem sempre um garrafão com boa caninha de alambique, que vai buscar lá no engenho de nhô Lima, que além de pinga, cria abelha e colhe mel de assa-peixe.
Nhô Lima tem dois filhos, Bira e Juraci. Bira tem uma marca de ferradura na cabeça, fruto de um coice de mula braba. Juraci perdeu dois dedos na correia do engenho. Se morassem em Barretos, estariam andando em caminhonetes de cabine dupla, com dois quilos de ouro pendendo no pescoço, e alguma falsa loira com banda larga a tiracolo. Mas optaram por manter a tradição - são matutos, como o pai.
Naquele dia, Pedro Maritaca levantou-se no horário de sempre, acordou com o galo das quatro. Botou lenha no fogão e água para o café. Fritou um bago de lingüiça na chapa, e comeu com mandioca cozida de véspera. Bebeu uma talagada de cachaça e se pôs a caminho. Tinha que ir até a cidade e renovar o cartão de aposentado - recebia um salário-mínimo por idade, já beirava os setenta. Quem lhe arrumou o benefício público foi um tal de Zé Bigode, um advogado que fazia loteamentos clandestinos na região.
Selou o alazão e foi trotando entre baforadas no cigarro de palha. Apeou em frente do armazém do Leôncio - de pai pra filho desde 1930. Tomou café com broa, e foi até a estação de São João Novo. Lá a estação era completa, cabia o trem inteiro, podia até escolher vagão. Ajeitou o chapéu, deu uma cusparada nos trilhos. O apito da locomotiva já apontava na curva.
Foram 50 minutos até a Estação Júlio Prestes. Dali foi a pé até a Praça da República. No percurso, quase foi asfixiado por excesso de monóxido de carbono, o lenço ficou preto de fuligem. Ia amaldiçoando cada buzina que ouvia. Na avenida Ipiranga, um moleque pardo enfiou a mão em seu bolso. Saiu levando um pedaço de fumo de corda como fruto do roubo. Caiu sentado no chão e se lembrou da mãe que dizia: - Cidade é coisa de gente doida, filho. Fica longe de lá.
Aos trancos e barrancos, com o bolso rasgado, o chapéu mais amassado que jornal, ele chegou até a porta do banco.
Deparou-se com uma porta em asas de "barboleta". - Uai, mas que coisa é essa, sô? - pensou, olhando o gira-gira da soleira.
- Cumé que eu vou passá nesse quebra-corpo? Inda se fosse um mata-burro!
Tentou entrar naquele circulo vicioso e deu de nariz no vidro. A coisa empacou feito mula velha.
O vigia mandou que tirasse tudo que tinha nos bolsos. Chaves, objetos metálicos, celular, e assemelhados.
- Chave? Ara, e lá eu tenho chave na minha palhoça? Cumé que os vizinho vai entrá pra mó de pitá um cigarrim de paia cumigo? Tenho isso não, seu moço!
Diante da insistência do favelado segurança, expôs os bolsos à visitação pública: tinha um deles furado, e no outro, um canivete enferrujado.
Foi a conta. O vigia sacou o 38 do coldre, e apontou o trabuco direto para seu nariz.
Pedro Maritaca, já coçando a orelha, deu uma fungada, limpou o muco na manga da camisa, armou o canivete, e bravejou: