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Contos-->Indiferença e Poesia -- 17/09/2001 - 13:57 (Anderson Borba Ciola) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Hoje eu acordei de mal com a humanidade. Vivo um desses dias em que todas as razões de felicidade se tombam diante do mais poderoso fenômeno da natureza humana: a tristeza. Enfim, dobro meus joelhos e admito que esta manhã está para a depressão, como a noite passada esteve para a insônia.
Pois bem, posta acima do bem e do mal, a tristeza é uma sensação nobre, serena. Pelo menos a considero assim. Já a depressão é dissimulada e metódica - como um ácido que corrói dissimuladamente os tecidos desprevenidos do bem estar. Ah! Caros amigos! Esta última não prima pela elegância. Pelo contrário, adota sempre os mesmos adornos repulsivos - boca amarga, pele sebosa e olheiras suplicantes - em rostos sempre desfigurados pela apatia. Entre outras coisinhas, a depressão também aprecia despedidas melancólicas e lamuriantes:
- Adeus esperança de triunfo! Adeus auto-estima e - não menos importante – adeus sentimento de amor recíproco para com os seres vivos em volta de si!
No entanto, salvo esses detalhes meramente estéticos, não há tanta distinção entre uma e outra, ou seja, a depressão e a tristeza. São, naturalmente, farinhas do mesmo saco!
No entanto, sequer almejo conhecer a natureza dos meus sentimentos e, no final das contas, isso e me é indiferente! Hoje eu poderia mandar o mundo às favas, seria ótimo não? Mas, devo confessar, não tenho motivo, nunca tive, e ainda se tivesse, preferiria ver o circo pegando fogo de longe, muito longe. Mas por quê cogitar essa possibilidade? Afinal sou um ser racional e, por isso mesmo, tento a todo custo ver uma razão para tudo o que se passa em minha volta. Mas o que dizer então dessa tristeza, ela é racional? Uma vez que me considero tão privilegiado, tão afortunado e, sobretudo, tão feliz!
Há quem diga que a felicidade jamais se materializa de forma realmente plena, ou seja, de acordo com os conceitos preestabelecidos pela racionalidade. Ah! A felicidade... Esse tosco foguinho de palha na noite gelada da existência! Alguma vez, sua presença, assim como a da tristeza, se deu com anuncio prévio? Tão pouco com o mais remoto motivo aparente? Acredito que ambas não apreciam os racionalismos...
Enfim, a felicidade dificilmente leva em conta os verdadeiros triunfos ou os insucessos no jogo ou no amor. De natureza autótrofa, ela simplesmente aparece sem cerimônias, de camisolas e tamancas levantando poeira para nossos débeis olhinhos de homo sapiens. Então, se tanto a tristeza, como a felicidade são sentimentos aleatórios e dispersos, como podemos definir este estado de espírito indiferente em que vivemos a maior parte do tempo? Será que é a indiferença o nosso semblante natural? E mais! Por quê, de tempos em tempos, caprichosamente e ironicamente, ela nos empresta essa discrepante dupla de fenômenos à alma? Ou seja, a depressão e o orgasmo.
A bem da verdade, hoje eu acordei mais cedo que o de costume. Talvez jamais tenha adormecido realmente. Então será esse o motivo do mau humor, por que não? Acredito também que meu espírito seja um tanto susceptível aos estímulos materiais. Não seria exagerada a afirmativa de que passo a maior parte do tempo fazendo coisas que não aprecio, como se, a partir delas, o mundo me abençoasse com as verdades que realmente me dão prazer.
E assim, nos intervalos dessa luta vazia, dou ao luxo de sentir-me excitado ou deprimido - isso quando estou por demais saturado desse estado de espírito indiferente.
Hoje vejo claramente que só a indiferença e a ignorância constroem. De resto, há somente obtusa neblina e carros atracados adiante dos bois - fora o tumultuo, o caos e, enfim, a poesia.

* * *

Estava passando pela mesma rua YY com o costumeiro e descontínuo passo de quem não tem e não sabe onde quer chegar. É claro que isso já fazia parte da minha rotina, afinal quem era eu para chegar em algum lugar ou fazer qualquer coisa que não fosse a entrega deliberada e insana aos mais débeis e pouco construtivos pensamentos?
Na verdade a idéia da ação, seja qual fosse sua natureza, me aterrorizava. Até o amarrar de sapatos ao longo da caminhada, quase sempre entre um beco inútil e uma esquina sem propósito, já acelerava meus batimentos cardíacos. Como se aquela tarefa fosse algo que colocasse minha existência à prova.
E desse modo a inércia consumia meus dias, a totalidade deles, ainda que passasse a maior parte do tempo caminhando. Com o passar do tempo comecei a perceber que os transeuntes aos quais eu cruzava no caminho não me dirigiam senão um olhar de indulgência.
Acostumado à indiferença do mundo, comecei a me sentir ferido por aqueles estranhos que, aparentemente, julgavam-se em condição superior a minha. Isso me irritava, afinal considerava-me o mais superior, o mais inteligente e o mais correto ser humano a habitar o vilarejo de XPP.
E passaram-se algumas noites, algumas de insônia, outras de sonhos leves como a bruma. Não posso dizer que a natureza do meu espírito tenha mudado muito ao longo desse tempo. Somente digo que as coisas ao meu redor mudaram. Hoje em dia, a oscilação natural entre a indiferença, a tristeza e a felicidade passam por minha ótica com a sutileza de uma canção de bossa-nova, ou seja, tão naturais quanto complexas. Não que eu tenha adquirido total conhecimento da ordem musical que rege os acordes de minha existência, muito pelo contrário, digo que a desconheço mais ainda. No entanto, admito que passei a encarar os fatos como as variações do tempo e as pessoas como as pombas. Ou seja, neblina de manhã é sinal de sol pela tarde e, por mais tentação que sofra, jamais passo embaixo de um fio de alta tensão em que haja pombas dormitando.
Também cheguei a conclusão de que o pragmatismo nada mais é do que recurso ultra-utópico usado pelos românticos depois de inúmeras vezes, algumas conscientemente (!), lançarem seus burros n’água. Enfim, a alma pragmática já tem seu burro premeditada e antecipadamente lançado às margens do rio do fracasso. Sendo que todo o conjunto de seus raciocínios e ações não representa mais do que mero esforço de retaliação à realidade, ainda que eles estejam utilizando a própria realidade para tal!
Enfim, naquela noite eu não dormi realmente. O barulho da cidade – ranger de motocicletas e gritos agudos de adolescentes histéricos – me imprimia a sensação de que eu realmente não pertencia àquele lugar, tão pouco gostava dali e, pior ainda, que lá estaria irremediável e completamente sozinho.
Não que a solidão seja a coisa mais enervante que um ser humano possa suportar. Existem coisas bem piores, tais como indiferença. No entanto a indiferença é muitas vezes provida pela própria solidão. Sendo assim, posso dizer que minha existência parecia estar em queda livre e, o que é pior, eu torcia para chegar logo ao fundo do poço. Talvez eu estivesse a fim de nadar um pouco, afinal, a queda estava sendo longa e cansativa. Mas por uma razão que desafiou profundamente meu pragmatismo, eu levantei, abri os olhos e, estupefato, me deparei com sua imagem. Você sorria para mim...

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