ASAS QUEBRADAS
Memórias de um arcanjo enlouquecido
I
O cheiro forte de carniça me entorpecia. Quando abri os olhos, não a vi ao meu lado. Não me lembrava mas novamente havia sonhado. Continuava no mesmo lugar como sempre. O mesmo sonho, o mesmo olhar e num instante aquele fedor do inferno. Sou um louco, como disseram. Em meu prontuário, constavam práticas de religiões ocultas e pregações indevidas em locais santos. O que significa isso? Simples, eu pregava para os outros sobre o Deus que eu conhecia. Muitos não gostavam do que dizia. Blasfêmia, eles gritavam. E eu, olhava para eles com piedade. Essa é minha loucura. Sou um anjo enviado por Deus para preparar o caminho dos Céus. Ninguém acreditou em mim e me enterraram nesse lixão.
Sou uma divindade diferente, meus poderes são relativos e quase humanos por isso não posso simplesmente sumir e meu Deus me abandonou. Não sei onde errei mas Ele não fala mais comigo. E lá se vão 20 anos. Meus sonhos se repetem e há cores neles. Um olhar distante de alguém que me amava e não me lembro, não me lembro... meu corpo dói e meus pecados se acumulam no canto do chiqueiro em que durmo.
Comigo estão 15 doentes mentais. Há um Papa, um ator, um craque do futebol e até um louco que jura não ser, como todos os outros. Inofensivos, eles são e até felizes, também. Minha missão era importante, Ele acreditava em minha fé e sabia que eu poderia preparar o caminho para os escolhidos. Tropecei em minha soberba. Caí no Inferno. Mas Ele sabia que eu era quase um humano. Ele sabia que eu podia errar. Por que não me disse nada?
"Ei, Anjo!, Tá fazendo o quê acordado de madrugada? Ei, Anjo! Tô falando com você, caralho!"
Às vezes, é melhor ignorá-lo. Sansão é o mais velho doente desta casa de recuperação. Deixaram ele aqui no começo da década de 60. O velho nunca mais saiu. É boa pessoa mas quando enchem sua cabeça de Lexotan fica um saco. Não deixa ninguém em paz. E o pior é que ele não dorme mesmo drogado. Cansei de olhar para o teto. Preciso descansar do nada que tenho feito. Aquela música começa a tocar em meus ouvidos. Talvez, durma. Ela está chegando como todas as noites. É o único momento em que me liberto dessa prisão. Eu posso voar quando fecho meus olhos. A melodia está mais clara, mas alta. Por que não me disse nada?
"Venha comigo. Venha para casa. Sinto sua falta. Não quero perdê-lo por toda a eternidade. Venha...Estou aqui...."
"Ele está ardendo em febre! Rápido, pro chuveiro".
Sansão me conhecia como ninguém. Nesta noite quase não acordei. Aquela voz pedia para eu voltar. Para onde? Por que não me deixaram ir? Não é a primeira vez que Sansão me acorda. Ele se preocupa comigo. Minha cabeça explode. A água gelada em meu corpo cai como uma lâmina. É boa a sensação da morte. Estive próximo dela tantas vezes.
"Agora você está bem. Há muito trabalho pra ser feito, Anjo".
Nunca entendi o que significa esse trabalho que tanto Sansão insistia em
dizer quando me trazia de volta. O dia chega com temporal. A chuva é tão
forte que parece o fim dos tempos. Eu gosto. Ela me acalenta. Hora do
remédio.
II
Quatro comprimidos e estou pronto para mais um dia. Os médicos têm
certeza disso. Eu pelo menos não levo em conta. Uma passada rápida no
banheiro e lá se vão os quatro comprimidos descarga abaixo.
"Anjo, preciso de cigarro. Tô devendo pro Máscara, e ele falou que vai me apagar".
"Não tenho"
"Baseado, eu sei que você tem como arrumar. Quebra o galho, o cara vai acabar comigo".
"Não tenho!"
"Porra, eu tô devendo. Me ajuda...
"Não posso fazer nada".
Dado era o malaco do hospício. Todo mundo sabia que ele não é louco mas foi internado pela família pra ver se davam um jeito nele. Herdeiro de uma puta fortuna adorava sacanear a molecada na rua. Aqui dentro sempre quis dar uma de esperto. Várias vezes, o vi abusando da ingenuidade de Sansão. Não gostava daquilo. Lições devem ser aprendidas. Dado teve a sua. Na manhã seguinte, seu corpo foi encontrado jogado no latão de lixo. Nada mais apropriado. Sou apenas um anjo, não possuo o dom de perdoar. Ah! Tinha um maço novinho no bolso.
III
Me lembro do meu primeiro dia na terra. O frescor de um liberdade quase
incondicional até me fazia esquecer meu trabalho que era claro. Abrir
caminho para a chegada de Deus. O cinza da metrópole não me assustou tamanha era a minha felicidade. Andava em meio aos mortais, não era apenas uma espectador, eu podia agora interferir diretamente no futuro da humanidade. Que poder tinha eu! Viver, de verdade!
"Pode me dar licença?"
Fátima. Não me lembro de seu rosto mas foi o primeiro mortal que falou
comigo.
"O senhor está atrapalhando o trânsito, sai da rua!"
Ela foi de gentil. Obedeci. Nunca mais a encontrei. Como também nunca mais vi Karina, Custódio, Silva, Jamelli, Kazu, Maria, Bia...Vaguei o dia inteiro, deslumbrado com a imensidão daquele novo mundo. A noite caiu e provei pela primeira vez o que os humanos chamavam de solidão.
IV
"Cara, o doutor falou que eu tenho um vírus. Um tal de HIV e que eu vou
morrer. Não tenho ninguém. Onde é que vão me enterrar?"
Sansão era doido. Levou tanta pancada na cabeça nesses 30 anos de clausura que nunca mais voltou a ser gente. Às vezes parecia uma criança de cinco anos. Era a bunda preferida do sanatório. Nessa noite ele estava deprimido. Nunca a proximidade da morte lhe pareceu digamos, próxima. Sansão era doido, não era burro.
"Dói morrer, Anjo?"
"Não"
"Como é?"
"Sua alma sai do corpo e segue para o julgamento final onde Deus dirá se
você vai para o Inferno ou para o Céu"
"Eu vou para onde?"
"Céu, Sansão, Céu"
Naquela noite, ele dormiu em silêncio e não acordou de madrugada. Sentiu-se em paz. Eu gostava dele. Foi o único que acreditou que eu era um anjo. Vou sentir sua falta quando partir. Talvez encontre sua família. Talvez saiba porque foi trancafiado. Talvez descubra porque enlouqueceu. Talvez, apenas morra.
V
Conheci Lúcifer quando completava meu primeiro ano na Terra. Lá em cima,
colegas de asas diziam que eu me parecia muito com o Primeiro Caído.
Principalmente, na prepotência. Acho que eles exageravam. Jamais trairia meu Deus e Ele sabia disso. Mas a oposição gostava de me criticar. Quando souberam, então, que eu fôra o escolhido para a mais importante missão do Céu, foi um tormento. Anjos mais próximos de Deus, delatavam minhas fraquezas. Vigiavam meus passos, contavam meus sonhos. Eu era tão jovem.
Eles não precisavam agir dessa forma. A vaidade é o pior dos pecados.
Lúcifer lembrou-me dos amigos alados. De suas insinuações. De minha solidão. Deus, realmente, parecia ter se esquecido de mim. O frio era tão intenso, quase caí em tentação.
"Sente-se ao meu lado. Ele brincou com seus desejos. Como sempre faz. Onde está o seu Deus? Quantas vezes ele conversou contigo nesse ano? Que missão tão importante é essa onde seu principal artífice foge sem maiores explicações! Como os romanos, Ele jogou-lhe aos leões, jovem arcanjo".
"Sempre disseram que eu era seu irmão mais novo. Comparavam minhas atitudes infantis aos atos mais cruéis que Vossa Excelência cometera. Nunca liguei para isso. Sua voz é tão doce. Seu cheiro é tão suave. E mais ainda. Ninguém é tão mau ou tão bom assim".
"Gabriel deve estar enlouquecendo se estiver ouvindo sua palavras, jovem
arcanjo".
"Ele nunca foi com a minha cara. Na verdade, eu sempre achei Gabriel
parecido como Vossa Excelência".
"Tamanha heresia, jovem arcanjo. Eu não sou hipócrita como ele. Venha, há um lugar especial para você em minha casa".
"Não, obrigado. Ele confiou em mim, não posso desapontá-lo".
"Você se arrrependerá. Deus o esqueceu, jovem arcanjo".
Lúcifer sabia ser profético.