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Contos-->estupro -- 26/10/2001 - 09:35 (MIGUEL ANGEL FERNANDEZ) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
ESTUPRO

Bebeu o último gole de cachaça, bateu o copo no balcão, pegou o embrulho que o dono do bar lhe estendia e, cambaleando, parou na porta: Porra! Vai chover de novo!. Saiu sem se importar com a lama que lhe cobria as sandálias. Apertou o gargalo dentro do embrulho, iniciando a marcha pelo meio da rua. Trouxa, tinha ficado um tempão no papo com o cara do boteco. Gordo enxerido fez perguntas demais.
Mas ele demonstrou nada, doutor. Imaginar coisa dessas, nem a coitadinha, com certeza, que quando veio morar com a gente foi porque a mãe num tava dando mais pra agüentar de sustentar, leva tua irmã com você, aqui ela vai ficar aprontando, disse, a velha tava doente, precisando internar. Podia negar, doutor? Então falei pro Josias, minha irmãzinha vem passar uns tempos com a gente. E fazia mais de mês que ela tava em casa que a nossa mãe morreu no hospital mesmo, que Deus a tenha.
O pé esquerdo perdeu o chinelo arrancado pela lama. Teve que voltar alguns passos à procura dele. Mais chuva e isto vira açude. Remexeu na lama, procurando o chinelo escondido; ao abaixar-se, arrotou cachaça com mortadela.
Emprenhada, nosso primeiro filho, Josias não gostou, não. Mas enganei ele, já era tarde pra tirar. Fazer o que, não ia deixar de outro jeito. Me virando de doméstica, a irmã cuidava da casa, trabalhadeira como eu, modéstia à parte. Sabe, como ia imaginar, com nove aninhos!
Pela rua deserta e enlameada, Josias precisava chegar antes de escurecer. Não conhecia direito aquele lugar; medo de se perder. Um refugio até que a poeira assentasse, a gritaria por causa daquela safada. O que não podia era ficar sem a cachaça. Quando acabou, arriscou sair até o bar.
Três quarteirões do barraco emprestado por velho amigo viajando. Só mais três dias, pouco mais, depois o perdão de Ivone. Mulher grávida de primeira vez é mole. A coisa acabaria logo, ninguém liga por muito tempo pra negrinha como aquela. Mormente depois de ouvir sua versão do acontecido.
Um vizinho telefonou pra casa da patroa.
Tinha bebido demais na tarde que aconteceu. Vazia, a garrafa caíra debaixo da cama. Pode ouvir vindo da cozinha: -To indo, mana. O Josias vai dormir até de noite, não perturba ele. Inté. Porta da rua batendo. Na cozinha, barulho de pratos e panelas, a cunhadinha fazendo faxina. Nove anos, seria mais bonita que a Ivone. Já era, aliás: sempre de shortinho apertado, gostosinha. Sentou-se na cama, meio tonto de tão excitado; ficou de pé e com fúria, arrancou a cueca; nu, abriu a porta, espiou: lá estava ela, de costas para ele. Deu tempo para se perguntar se aqueles olhares que ela lhe dava desde que se mudara, seriam mesmo de criança e parente.
A patroa me disse que tinha acontecido alguma coisa lá no meu barraco.
O coração dele disparou, mais parecia estar entre suas pernas, junto com o sexo, exigindo vida própria. A gostosinha. É só chamar que ela vem.
Minha patroa é gente fina, sabe? Ela disse, pode ir Ivone, amanhã terminas o serviço, e eu fui, adivinhando mil coisas ruins. Até incêndio. Quando cheguei perto do barraco tinha monte de gente na porta.
Sentiu nas pernas o vento frio. A bermuda curta demais. Tirou do embrulho a garrafa e abriu com os dentes, bebeu longo gole. Arrepiado fechou os olhos, sentindo queimar por dentro.
(Se abertos, teria percebido que pouco mais adiante alguns homens o observavam fazendo sinais entre si.) Merda, lá vem água - olhando para o alto quando os abriu.
A cunhadinha se virou, chocou-se ao vê-lo nu; um prato escorregou, o barulho a assustou ainda mais; instintivamente abaixou para recolher os pedaços. Ele deu três passos e já estava colado atrás dela. Foi se erguendo devagar, sem olhar para ele, sem falar, deixou os cacos do prato caírem ao sentir a mão amassando sua boca; sentiu-se erguida do chão. A levou assim para o quarto; arrancou-lhe o short, empurrou-a na cama, se jogou encima. Abriu-lhe as pernas. Gozou nela até gritar. De repente, ela disse vou te foder, cara, e no descuido do relaxo, saiu feito louca pra rua, nuinha e gritando! Depois todo mundo caindo encima dele. Nem de se vestir direito. Pinote! Devia era tê-la estrangulado naquela hora. Mas acreditou?.
Olhai o chinelo sujo dessa merda. Sentiu vontade de fumar e os homens apareceram na sua frente, em silêncio. Olharam para ele calmamente. Divisou até um sorriso: Vou descolar cigarro daqueles caras. Abriu a boca para pedir: o primeiro golpe lhe quebrou alguns dentes. Antes de desabar na lama, um pontapé na barriga o equilibrou por alguns segundos. Vomitou sangue. Sentiu-se arrastado, a garrafa ainda na mão. Os olhos enlameados se abriram para só ver as nuvens negras antes que se fechasse sobre ele a tampa barulhenta de um porta-malas. A garrafa sumiu.
Nem soube quanto tempo se passou até que aquela tampa se abrisse novamente. Arrancado com violência é jogado no chão. Noite. Só a luz dos faróis de um carro o ilumina, a ele e à chuva fina que cai. Levantam-no pelos braços. Em cima do capô de outro carro, vê pedaço de papelão, em sua mão aparece grossa caneta e em seu ouvido a ordem: Escreve aí, filha da puta: "Não estupro mais menor" Vai, escreve!. Por uns momentos a imagem de Ivone, do filho que não teve ainda e, principalmente dela, a cunhada, apareceram como em fotos de documento diante de si. Pensa: negrinha rampeira e traiçoeira, cabaço coisa nenhuma, até jogou na sua cara: já fizera bem mais gostoso. Vou te foder, cara. Devia ter acreditado. Escreve! Depois lhe arrancam a caneta, as mãos amarradas para trás, é posto de joelhos. Abre a boca e só sai: Vou te foder, cara. Ouve o primeiro disparo e sua garganta se parte. Os outros tiros apenas o sacodem. As balas já não acham sentido nele, apenas o grudam no chão encharcado e frio. O sangue esvaindo de vinte e seis furos aumenta a lamaceira daquele descampado.

(Inspirado em nota de jornal/1999)

Autor do romance: "A CENA MUDA"
Mais info: http://br.geocities.com/mangel_arlt
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