“Não te quero ter porque em meu ser
tudo estaria terminado
Quero só que surjas em mim
como a fé nos desesperados”
Ausência / Vinícius de Moraes
É no Cais da Sagração, perto do Coração de Deus, à vista do Oceano da Temperança, que se reúnem as almas dos artistas quando é chegado o fim da experimentação terrena. Elas, que são os anjos de prata imortais com que Deus contempla e aperfeiçoa a própria criação, chegam de todas as partes do mundo.
Ali há um último mister a cumprir: reconhecer o chamamento ideal para ingressar na eternidade levando consigo o quinhão da arte, do amor ou da desventura que nesta vida coube a cada uma desfrutar.
Assim é que, despidas de toda sorte de pudor e de todo bem material, as almas ficam espalhadas pela orla oceânica, permitindo-se tocar pela areia, ou pairando acima dela, porque agora novamente dotadas de asas. Braços abertos, em silêncio, a meditar, a esperar. Esperar a voz do chamamento, que não tarda.
“É chegada a tua hora, ó anjo barroco! Sê perfeito novamente como perfeitas são as figuras dos meus filhos, as figuras dos Doze Profetas que esculpiste em pedra-sabão no adro da Igreja de Bom Jesus de Matosinhos. Leva para a eternidade o teu nobre engenho, mas deixa para os mortais a via sacra de tua lembrança mais presente: Ouro Preto, Sabará, Caeté, Catas Altas, Santa Rita Durão, São João Del Rei, Tiradentes, Nova Lima, Mariana, Congonhas do Campo... Minas Gerais.”
Na dimensão atemporal do Cais da Sagração, agora liberto do martelo e do cinzel que outrora foram amarrados aos seus punhos, em função da chaga que lhe inutilizara as mãos e também os pés, ergueu-se Aleijadinho. Em silêncio e ostentando a perfeição do ser, caminhou sobranceiro rumo à eternidade, passando ao lado das almas de Beethoven, Monet, Dante, Tarsila do Amaral, Cecília Meireles e Clarice Lispector, que não contiveram o choro. A razão desta comoção foi que Antônio Francisco Lisboa, em seu último gesto, deixou para trás, esculpida em um solitário cedro que ali havia, a mais perfeita imagem de Deus.
“É chegada a tua hora, ó negro anjo, ó alma pura! Tu, que extrapolaste os limites da perfeição, harmoniza agora teus passos rumo à eternidade. Leva contigo a tua nobre arte, mas deixa para os mortais os arpejos de tua sensibilidade. Deixa teu legado mais presente plantado em seus corações. Colhe mais esta rosa, e vai vivendo. Fala baixinho dos teus lamentos. Inscreve-os em uma página de dor. Sê carinhoso e, ainda que te sintas ingênuo, crê em um mundo melhor. Lembra sempre aos desventurados tua sábia lição: sofres porque queres!”
O homem sabia das coisas boas desta vida. Até a última hora, sempre o mesmo. O carcomido linho branco S-120, o velho sapato com salto carrapeta, os longos dedos a envolver o alabastro de um copo de uísque, os habituais cem cruzeiros, desta vez atirados ao ar, em pagamento à última dose e o mesmo sorriso maroto. Disse que haveria de levar consigo, junto ao peito, seu saxofone prateado, ressaltando que não se tratava de um bem material, mas sim do instrumento ao qual confiara sua alma. Sempre o mesmo! Sempre improvisando! Sempre indo além do que determina a partitura. A benção, Pixinguinha, tu que choraste na flauta as mágoas de amor do Poetinha e as nossas também! Caminhava ele rumo à eternidade e recebia as merecidas reverências de Villa Lobos, Tom Jobim, Orlando Silva, Grande Otelo, Vinícius de Moraes e, entre tantos outros, Jacob do Bandolim que, ao fundo, executava o hino Carinhoso.
“Se queres ir, poeta de sentimentos avassaladores, vai! Mas creio não ser chegada a tua hora. Poetizaste a infausta vida que te foi dada. Poetizaste as dores, as venturas, as fomes de teu povo. Testemunhaste o momento mesmo em que o Amor fora levado à Corte Criminal do Reino das Universais Paixões Humanas e o defendeste com tua nobre arte, porque indicado por ele próprio a realizar tão honroso mister. É precoce tua chegada ao Cais da Sagração. Outra vez tiveste o coração invadido pela eterna flama do amor que opera milagres entre os mortais. Acompanhou-te, porém, a desilusão e junto a ela um infortúnio que não te será fatal. Mas se queres ir, vai! Leva tua arte; deixa-te solto nas lembranças dos mortais!”
“De fato não estou preparado e ainda não me fiz merecedor de principiar esta jornada. Ainda sinto quão à mercê da paixão está minha alma. Como poderia partir se a esperança ainda encontra farto alimento em meu peito? Como poderia partir se meu maior anseio é ainda lançar um demorado olhar para trás? Sei que um dia isso tudo passará porque se é verdade que o amor opera milagres entre as gentes, tanto ou mais verdade é que o tempo, lenta mas eficazmente, apaga seus enganos, cura as feridas e aponta para aurora de cada novo dia como a sugerir o prelúdio de um novo e significativo milagre. Por ora, levar para a eternidade as notas dolentes que emanam das cordas do coração é martírio demais. Mais, talvez, do que possa uma alma suportar... sozinha.”
Eu, que estava em coma, despertei no sétimo dia. Não recordava o motivo por que me encontrava naquela cama de hospital. Porém, o que vi acontecer na dimensão do Cais da Sagração, perto do Coração de Deus, não me fugiu à memória. Renunciei à eternidade em prol de me fazer herdeiro de Pixinguinha, de Aleijadinho, de tantos outros. Renunciei à eternidade com esperança de, ainda que uma única vez, poder contemplar aqueles olhos verdes. Não foi em vão. Lá estavam eles, em lágrimas! Fecharam-se em mim, enquanto os lábios deste mesmo anjo aqueciam meu rosto com um beijo. Um beijo que só a melhor das amigas pode ofertar. Nessas circunstâncias é que se me revelou uma verdade que não se move a rogos:
O infortúnio de perder um amor ou deixar de conquistá-lo é coisa fácil de se suportar se comparado à perda de uma amiga. Na escala dos valores sentimentais a amizade, frente ao amor, é tão mais valiosa!