O QUE O DOUTOR NADA DISSE:
Sou um fodedor. Afinal, era um dever meu dar continuidade a tudo aquilo que tanto nos perseguia, mas estávamos juntos e não somos amantes, não somos poéticos nem lavamos nossas almas na escória do moralismo porque simplesmente não precisaremos jamais de nada. Não estamos presos, sobretudo não nos importamos com a trama. E lá estava eu em mais um dos dias melhores.
O figurão ia me visitar no meio da tarde, mas ligou de noite e marcou para o outro dia no mesmo horário, filho da puta. Chegou três horas atrasado, conforme combinado, na minha clínica clandestina; eu tinha um aborto por fazer por volta das onze e meia e teríamos todo o tempo do mundo para discutir. Cherry, a minha cherry, provavelmente vagava pela cidade, como sempre fazia, gastando seu dia com besteiras, vitrines e promoções chiques, coisa de mulher.
- E então, para que o senhor está precisando de mim? - fui logo direto ao assunto, sem frescura. Estávamos na saleta que havia ao lado da entrada, um buraco com dois sofás e uma televisão pequena. Está certo que a clínica era uma espelunca, mas não se pode chamar atenção nesse ramo. - dependendo do que for, pode até sair caro.
O cara puxou um charuto e acendeu. Nem pediu licença e começou a tragar aquela coisa fedorenta na cara-de-pau com o seu Armani reluzindo discretamente. Devia ter uns cinqüenta, já estava ficando com cara de sapo e papada, escondendo o suor por trás daquela silhueta deprimente. Mas tudo bem, tudo bem, era só ver o que diabos ele tanto queria comigo.
- Dinheiro não é problema, garoto. Mas olha lá, o negócio aqui é sério, uns amigos meus me recomendaram você, disseram que é competente e que não tem besteira com nada. Quanto tempo você tem de formado?
Para que ele queria saber aquilo? Palhaçada.
- Cinco. Três de residência.
- Novo heim? Mas vamos lá - tragava sem parar o charuto - a algum tempo eu montei um negócio diferente certo de que ia ter um retorno interessante, tipo uma boate ou casa de lazer, mas menos entediante e mais divertido, se é que você está me entendendo. Você sabe, caras da minha idade não podem se estressar demais, tem a porcaria da próstata para verificar todo ano, o coração falhando e um bocado de burocracia nos negócios. Acredita que tentaram me seqüestrar a uns seis anos atrás?
Levantei a sobrancelha como quem pedia para ele falar mais sobre o assunto; não que eu desejasse, mas o desgraçado já estava enrolando e visivelmente gostava de falar muito.
- Pois é, tentaram. Bem, e de um tempo para cá, eu estive pensando nos puteiros que tem por aqui, nas garotas e garotos de programa e vi o quanto tudo isso é enjoativo. Depois de um tempo gastando dinheiro com prostituta de luxo, a coisa vai perdendo a graça, um negócio horroroso, brochante mesmo. Foi daí que tive a idéia de organizar um lugar para pessoas de nível social elevado cansadas, como eu estou, dessa mesmice no ramo das diversões. Você nem acredita, mas tem muita gente, filho, muita gente mesmo. De desembargador à doutor renomado, de bicheiro à empresário e banqueiro, todos cheios de dinheiro, que nem eu, querendo curtir sem achar mais graça em nada.
- Continue. - aquilo estava ficando divertido.
- E a menos de um mês, já estou com o lugar funcionando, uma casa maravilhosa na praia, discretíssima. Ninguém vê ninguém entrar. Tudo fino, o cara vai lá, bebe Johnny Walker azul, fode e se limpa com toalha de cetim. É caro, mas é para quem pode, heheheh. O sucesso está tão grande que até o secretário de segurança do Estado foi lá essa semana, acredita? O próprio. Chegou lá, se divertiu a beça e estou garantido na proteção. Polícia quando chega lá é para desfrutar das minhas atrações. Classe A.
E aonde eu entrava nessa besteira?
- E aonde eu entro?
Ele riu, acabou o charuto e apagou com força contra o meu cinzeiro, provavelmente marcando-o. O ar da sala estava preto, empestado com aquele aroma medonho.
- Bem, como eu já disse, é um lugar para quem está cansado do comum, do feijão com arroz. Mesmo a moda do sadomasoquismo não atrai tanto... cá entre nós, é coisa mais para jovens como você. Eu te proponho um salário mensal, mais adicionais e tudo, de inicialmente cinqüenta mil e você vai ficar fazendo duas coisas para mim. Ah, conseqüentemente vou precisar que trabalhe em tempo integral, mas duvido muito que o que você ganha aqui e nos plantões chegue a comprometer minha proposta.
Putz, cinqüenta mil livres e virgens. E eu me ferrando com tráfico de órgãos, chantagens e outras coisas no nível. O que me deixava meio puto era a cara de sacana dele, com um sarcasmo e ares de empresário desafiando minha condição de doutorzinho Nada suburbano e mal pago. Mas nem tinha muito o que pensar, eu vivia escondido mesmo e a cherry ia adorar quando ficasse sabendo.
- E quais são essas duas coisas que eu vou ter que fazer? - sorri para ele, tão cínico quando seu olhar gorduroso sobre mim.
Ele riu mais alto, bem alto.
- Garoto esperto, bem que me disseram que com você é tiro e queda. É o seguinte, a parte um é que você vai fazer cirurgia para travesti.
O que??
- Transexuais? - eu não fui bom aluno em cirurgia urológica, ia ter que desenrolar e estudar.
- Isso. A maioria é bem jovem, coisa de dez, doze anos. Não dão muito trabalho porque tiro da rua e adestro direitinho; tem uns que de perto parecem mulher mesmo, um negócio impressionante. Estão sendo muito solicitados pela clientela, só falta operar.
Ouvi dizer que esses idiotas que fodiam com travesti levavam era no rabo. Mas vá lá, problema sexual deles.
- Eu vou precisar dar uma estudada pois não estou tão habituado - mentira, nunca tirei o pau de ninguém - a esse procedimento, mas nem se preocupe que eu garanto qualidade.
- Eu sei, eu sei - e ria como um porco gordo. - a parte dois é que você vai trabalhar no IML para mim durante a semana, nem se preocupe que já está tudo arrumado, só falta um médico, e despachar os corpos que eu solicitar. Tudo bonitinho, sigilo total, garantia absoluta.
Hahahahaha, que coisa horrível.
- Cadáver? Estou sacando. Mas como assim, despachar? Quer dizer, você quer os corpos, é isso?
Ele parou um pouco, diminuiu a intensidade respiratória, como se estivesse mais à vontade ainda comigo.
- Isso, estou cheio de clientes interessados. Mas não pode ser de qualquer um, tem que ser mulher bonita, gente bonita.
- Ih, a coisa vai ser difícil. O que mais vai para lá é indigente, tudo banguela, feio e fedorento, sei como são as coisas. E raramente quem tem boa aparência e bate as botas vai parar por lá, só em caso de morte por violência.
Foi ai que ele olhou para mim com uma cara esquisita que me arrepiou todo. Deu até para notar a sombra da barba no rosto corado.
- Justamente. Mas eu pensei em tudo, garoto. Tenho uma equipe de primeira, pronta para agir por aí. Tem um cara que eu conheço que trabalha com filme pornográfico que me deu a idéia, é mais ou menos o que eles estão fazendo nos seus filmes. A equipe escolheria algumas garotas, tipo caça-talentos, inclusive tem um fotógrafo da Ford que largou seu emprego só para trabalhar comigo; depois de selecionar essas maravilhas secretamente, a outra equipe se encarrega de apagar, sem deixar marca nenhuma, muito menos rastro, tudo muito discreto e rápido. Eu não quero que ninguém sofra. Vamos ter que trabalhar com classe média principalmente, para não levantar muito atenções. Qualquer coisa, eu aciono a imprensa e criam alguma estória mirabolante, esse pessoal é pervertido mesmo.
Puta que pariu. Puta que pariu.
- Deixa eu deduzir o resto. Equipe um acha, equipe dois mata ou forja uma morte violenta para o presunto parar no IML. E a equipe três, que sou eu, se encarrega de passar o corpo para você.
Ele balançou a cabeça, acendendo outro charuto.
- Isso, isso. Não há riscos nenhum para você, eu te garanto. Risco é coisa para idiota, coisa de pobre e incompetente. Eu sou um perfeccionista.
- Engenhoso...realmente, pelo que o senhor fala, o negócio funciona mesmo.
- Eu construi umas geladeiras na casa, só para colocar esses corpos, tudo importado. Periodicamente, trocaremos o estoque todo por novos. O cliente chega, escolhe, tiramos do freezer e ele faz o que quer, só não leva para casa, hehehe. Eu vou colocar um incinerador em algum canto, para não ter que enterrar. Ossada é o que mais acham por aí.
Eu gostaria de ter vontade de vomitar mas não era o caso. E cinqüenta paus era o céu.
- Quando eu começo?
Ele ria, tragava. Apertou minha mão e falou semana que vem com o canto da boca.
O QUE A CHERRY DISSE:
Quando entrei na sala, ele estava com um babaca engravatado que fumava e empestava o lugar; lembrei-me dos filmes noir e de cenas de chiqueiros, com porcos vivendo na merda. Como menina bem comportada e cúmplice de meu amor, fui discreta.
- Boa noite, espero não ter interrompido nada.
Ambos olharam para mim, o homem arrumado já de pé e soltando a mão do meu docinho. Tirou o charuto da boca, fitou minhas pernas, corpo e rosto, sorriu com um ar de coito e respondeu boa noite, já estou de saída.
- O senhor me liga, então. Está tudo certo - o doutor me envolveu em seus braços - essa é a minha noiva.
Houveram mais algumas cerimônias dispensáveis e o homem foi embora; o carrão importado que estava lá fora com dois gorilas dentro só poderia ser dele. O meu doutor Nada tinha um sorriso esquisito na cara e não era preciso muito para saber que tinha sacanagem na jogada; as olheiras dele estavam mais escuras e seus dentes, brancos como nunca.
- Vai me contar?
Ele sorriu e me beijou no pescoço.
- Você nem vai acreditar, cherry.
Eu acreditava em tudo, na medida do possível. Era só ele dizer.
- Fala então.
Ele contou tudo, descreveu direitinho. Não mentia para mim, era uma gracinha. Com a cabeça no meu colo, parecia um moleque deslumbrado e assustado com o primeiro dia de aula; era incrível como nem uma baixaria grossa daquelas parecia não o afetar, apesar de eu jurar que tinha um traço de desespero escondido por trás de sua fachada. Quanto a mim, não sou alguém confiável para opiniões desse porte; não somos amantes, não somos poéticos nem lavamos nossas almas na escória do moralismo porque simplesmente não precisaremos jamais de nada.
- Cinqüenta mil, quem diria heim? - eu sorria para ele, massageava sua cabeça enquanto o observava morder os nós dos dedos da minha outra mão, bem de leve, com os lábios, me deixando excitada. - Acho que agora não vou mais precisar trabalhar em loja de shopping center.
- Nunca mais. - ele mordia as articulações, delicadamente.
- E o apartamento? Vamos sair daquele lixo. Quero um lugar chique, bem chique, que nem eu sou.
- Vai ser a primeira coisa que vamos fazer. E tem mais, vou mandar derrubar essa porra dessa clínica, sem deixar rastro. Chega de viver me metendo em fria por aí, chega de plantão em hospital também. Agora só trabalho nesse esquema.
Eu queria chorar com ele nossas conquistas porque vi seus olhos brilhando no meio do escuro. Éramos desertos, canceres sem salvação e aquilo parecia um conforto de tranqüilidade e satisfação. Ele jamais choraria na minha frente porque não existem lágrimas em desertos. Nem jardins, nem ilusões compulsórias e arbitrárias.
- Nem acredito. Com toda essa porcaria, finalmente vamos nos dar bem...mas esse cara é rico mesmo? O perfume que ele usava, apesar do cheiro podre do charuto, custa mais de duzentos.
- Não reparou na cara dele? É aquele que vive na coluna social, que aluga a orquestra sinfônica todo ano para tocar no reveillon em sua mansão. O cara é podre de rico e um pervertido de lascar, quem diria. Vai me pagar o primeiro salário logo no começo dessa semana; esquema grande meu amor, esquema grande. Uma dessas, só uma vez na vida mesmo.
Eu lembrei dele. O homem era rico mesmo, muito rico.
- E você vai fazer aquele aborto as onze e meia?
- Nem devia, né? Mas é sacanagem. O enfermeiro já está aqui, deve estar arrumando a sala. E assim eu fico quite com meus antigos patrões, não custa nada, é uma cega de dezoito anos.
- Aquela que já vez bem uns quatro abortos? Que vem com uma nissei que usa Channel?
- A própria. Nem me pergunte aonde ela arruma tanta gravidez, já deveria estar estéril, mas parece que também é putaria grossa...e a japa é atriz, pelo que ouvi dizer. Ah, esquece, vamos comemorar depois. Temos o que para beber lá no apê?
Nada. Já havíamos bebido quase tudo na semana passada.
- Nada...só chantilly spray, mas esse eu vou usar em você mais tarde.
- Safadinha. Pega, vai na loja de conveniência, sei lá, e compra comida para a gente. Só do melhor. Traz daquele petisco que eu gosto.
- É claro que eu só vou comprar do melhor. Eu sou chique.
- Você é chique, gostosa, linda, linda, linda, maravilhosa.
Eu adorava quando ele falava daquele jeito.
- Hahahahahahah
- Que foi?
- Tem até graça! Você operando travesti. Que coisa horrorosa.
- Eu sei, eu sei. É o jeito. Esses ricaços além de andarem muito dopados, estão virando um bando de bichas de quinta categoria...hahahah
Rimos juntos.
- Vem cá.
Beijos, beijos, beijos. Ele nem tirou a cabeça do meu colo, talvez nem me deixasse ir enquanto não consumássemos aquilo. Tranquei as portas da sala e subi a saia, completamente desesperada mas mantendo o controle sobre a relação. Foi gentil mas agressivo, generoso mas prático. Eu queria que ele tirasse sangue, queria uma foda e não só “fazer amor” porque éramos bom demais nessas coisas. Porém, guardei a ânsia para mais tarde, apenas fazendo uma manutenção de todo aquele desejo e satisfação que transbordava de nossos poros. Não foi sempre assim? Como bichos.
Quando finalmente sai, deixei marcas de dentes nos braços e ombros do meu amor, que pareciam exaltar sua energia; eu já deixara algumas cicatrizes de mordidas permanentes em seu corpo, mas estava me habituando a torna-las temporárias. Afinal, eram eternas enquanto não sumissem dele.
O QUE O DOUTOR NADA DISSE UMA SEMANA DEPOIS:
Trabalhar no IML era uma merda porque eu não gosto de mexer com cadáver e minha especialidade não era aquela; ao menos a grande maioria dos funcionários era totalmente alienada e a outra metade eu nem via perambular pelos corredores. Bem, no saldo geral, ainda saía lucrando pois todo mundo lá ganhava mal, exceto eu e um grupinho que também fazia parte do acordo.
A noite, eu faria a primeira cirurgia para o ricaço; de antemão, tinha dado uma estudada razoável na técnica e não vi grandes dificuldades, apesar de ser um procedimento demorado e que exigia conhecimentos de plástica(que eu tinha). Nesse meio tempo, estava para chegar a qualquer momento o terceiro corpo que seria despachado para o lugar: os dois primeiros foram de duas irmãs que os malucos derrubaram numa tacada só. Estavam matando com injeção letal e depois forjavam acidentes violentos, tipo atropelamento ou assassinato, mas os corpos chegavam para mim indecentemente intactos. Máfia grossa, eu mesmo fiquei um pouco impressionado com a efetividade do trabalho e com a maneira como era executado; profissionalismo puro. E eu ficava fazendo autópsias quando não tinha nada o que fazer, e bem que aquilo era deprimente até não poder mais, tirar fígado, coração, útero, o recheio todo, pesar um por um, colocar de volta e fechar como se nada tivesse acontecido. De volta para a geladeira.
Quando eu já estava na minha nova clínica, previamente montada só para fazer os serviços que o ricaço mandava, a cherry ligou.
- Vai sair de que horas?
- Nem sei. Pode demorar, é a primeira que eu vou fazer...
- Eu sei. Vamos comemorar.
- De novo? - risadas.
- É, vamos comemorar todo dia, toda hora!
- Venha para cá, então. Começo lá pelas seis, acho que de onze e pouco devo ter concluído. Daí a gente sai.
- Tá certo, beijos(clic)
Pouco antes das cinco e meia, já estavam três capangas com um moleque(ou devo dizer, garotinha) me esperando. Eu mesmo faria a raqui anestesia e o que fosse preciso; como já estava tudo pronto, era só bater um papo com eles antes.
Entrei no cômodo onde estavam, que havia sido decorado no primeiro dia pela cherry com quadros antropofágicos que eu quase odiava. Um sofá preto enorme, televisão, frigobar, um monte de regalias que eu sequer sonhara ter um dia. Quando entrei, se levantaram; dava para notar a barra pesada, pois o menino estava sendo segurado.
- Boa noite. O paciente é esse?
- O próprio - disse um mulato bem vestido e de celular, que parecia ser o superior da moçada - está com frescura, por isso vai ser o primeiro.
- Entendo. Qual é o problema, garoto?
O menino olhava para o chão, trêmulo. Realmente, se colocassem um vestido nele, seria a rainha do milho da sétima série. Quando levantou os olhos para mim, estavam inchados e vermelhos.
- Está se sentindo bem?
Ele não me respondeu, levou uma sacudida dos brutamontes e pareceu soltar um soluço agudo e morno. O mulato continuou.
- Ele tem um caso com uma das meninas, disse que estão apaixonados e que é homem. Que homem porra nenhuma, até agora só deu prejuízo para o patrão.
Se aquilo fosse verdade, ele teria motivos reais para chorar e querer morrer.
- Qual é sua idade?
- Ele tem doze - o mulato disse.
- Leva para o bloco, troquem a roupa dele.
Ia ser difícil. Sacanagem, depois o moleque era homem mesmo, eu ia estar ferrando com ele, transformando-o numa boneca para um bando de pervertido e ficaria assim o resto da vida. Eu precisava ir me habituando, pois sabia que aquilo era só o começo e que se eu ficasse com besteira me colocavam para fora, me matavam, sei lá, e vinha outro babaca para o meu lugar.
Preparei tudo, dopei-o para que acalmasse; ficou eu, ele, um enfermeiro e o mulato na sala. Chorou a cirurgia toda, eu gostaria de ter piedade dele mas eu sou um deserto mesmo, puta merda. Foi bem mais fácil do que eu esperava, muita anatomia e pouca complicação, no final das contas, era apenas uma mecânica em nome da safadeza dos outros. Terminado o procedimento, eram dez e pouco e o colocaram no quarto que havia para o pós-operatório.
Eu nem tinha me trocado quando a cherry entrou toda emplastada de sangue, com os olhos cinzas, parecendo uma assombração do inferno. Vi que as coisas iam piorar.
O QUE A CHERRY DISSE:
- Pelo amor de Deus, que porra foi isso, você está machucada, que foi isso? O que houve?
Eu ainda estava tonta e sentindo vontade de vomitar, com a cabeça rodando. Despenquei no sofá do vestiário, sem fôlego. Estávamos literalmente arruinados.
- Eu estou bem, só meu ombro que está machucado e um galo na nuca, eu estou bem. Estamos arruinados...arruinados.
Ele andou para os lados, tenso, desesperado. Eu também estava desesperada; olhou meio pulso, inspecionou meus ferimentos e viu que era verdade. Apareceram umas gotas de suor na sua testa e ele começou a tremer.
- Diz logo o que foi. Diz.
- Lembra quando eu fui comprar aquelas coisas para a gente comemorar, semana passada? Logo depois que você falou com o ricaço.
- Sei, sei, o que tem? O que isso tem a ver com esse seu estado? Pelo amor de Deus, você voltou a comer gente viva por aí?
- Não, não, pára. Eu não fiz isso...
Ele deu um murro na parede.
- Puta que pariu. Puta que pariu.
- Calma.
- Diz, o que diabos aconteceu?
- Naquele dia, eu fui até uma loja de conveniência, aquela ali na esquina da principal. Fui lá, comprei as coisas na maior, estava contente por você, pela gente.
- Continua.
- Quando eu sai, um carro parou na minha frente, o carro do ricaço. É claro que eu saquei o que era, eu não sou besta, você sabe; eu vi como ele me olhou quando cheguei e quando você me abraçou, cara de tarado safado. Abriu a porta e pediu para eu entrar, disse que vinha me deixar em casa, aquele papo de cafajeste.
- Sei. E você entrou.
- Entrei, eu ia fazer o que? Negar? Entrei, fiquei do lado dele no banco da frente, nem sinal dos dois seguranças. Estou ficando arrepiada só de lembrar, que ódio, meu Deus.
- Vai, fala. Fala logo.
- Ele começou a dizer você é muito linda, onde seu noivo te achou, blablabla, que me achou atraente a primeira vista, que eu lembrava uma namorada que ele teve a uns dez anos atrás, só que eu era melhor. Começou a esquentar a conversa e a dizer que se eu aceitasse ficar com ele, me dava cinqüenta mil por mês.
- Cinqüenta?? Cinqüenta???
- É...eu sei. Cinqüenta.
Quase que ele desaba na minha frente, nunca o vi tão triste, revoltado, irritado. Nem era ciúme, era raiva mesmo. E eu não estava melhor que ele em aspecto nenhum. Continuei:
- Ele começou a me acariciar, eu disse que não era hora, que eu ia pensar e que eu gostava de você. Não se preocupe que não deixei ele fazer nada, nada mesmo. Ele ficava rindo para mim, vou ser bonzinho e vou esperar até a semana que vem mas não falha comigo garota, e colocou o cartão dele na minha bolsa. Daí me deixou em casa e a gente comemorou...eu num disse nada porque não tive coragem de estragar nossa felicidade.
- Já desabou tudo. Tudo.
- Eu jamais aceitaria, você sabe que eu não ligo para dinheiro, eu tenho nojo daquele palhaço brocha. Eu gosto é de você, viu? De você, você mudou minha vida mas eu sou a mesma ainda, mesmo tudo sendo diferente. Acredita em mim? Diz que acredita.
Puxei-o até a mim, ele parecia largado. Tentei abraça-lo, beija-lo mas continuava catatônico.
- Acredito. Vai falando.
- Quando foi hoje, logo depois que falamos no telefone, eu estava indo para o centro da cidade ver uns banheiros que eu gostei, para o nosso novo apartamento. Eu sei lá como, quando sai da loja por volta das sete da noite, ele estava lá, sozinho, esperando, terminando um daqueles charutos medonhos.
Observei as reações dele, mas não respondia muito. Olhava-me por baixo, não sei se decepcionado comigo, com o mundo, ou com si mesmo. A culpa não era nossa, céus.
- Daí ele disse entra no carro, eu falei que não, que não tinha topado aquele lance e ele gritou comigo, entra logo e eu entrei. Podia ter acabado com ele ali mas não o fiz porque iam ver e eu poderia ir parar na delegacia, ferrada. Ele dirigiu até a praia, eu calada do lado dele, sem dar uma palavra. Falou um monte de besteira, que eu não podia fazer isso com ele, que ele era rico e podia dar o que eu quisesse, que dobrava para cem, duzentos, que queria dormir comigo.
- Duzentos?
- ...é. Daí parou na praia, farol ligado, acho que era logo na frente de onde funciona a mansão dos puteiros, pois tinha uma casa maravilhosa logo atrás. Desce, ele disse, desce que eu não vou fazer nada. Eu já estava passada e queria esfolá-lo vivo, desgraçado, cretino, patife. Eu não sou puta não, falei para ele do jeito que estou falando para você agora, e ele falou que toda mulher tem um pouco de puta, colocou o pau para fora da calça, de frente para o farol do carro. Chupa que eu te libero e vou atrás de outra, e se teu namorado, noivo, sei lá o que ficar sabendo, mando matar os dois, ele vira adubo de cemitério e teu corpinho lindo vai para uma das geladeiras do meu negócio. Chupa, vagabunda, gritava para mim, rindo feito um porco, fedendo a charuto e ao perfume caro.
- Desgraçado filho da...
- Deixa eu terminar. Eu já tinha tudo planejado na minha cabeça pouco antes de ele parar o carro. Fui chegando até ele, fingi que estava chorando, aquele papelão todo, vendo ele gargalhando e ficando cada vez mais duro, imbecil. Quando ia colocar aquela porcaria na boca, você já deve imaginar o que eu fiz. Arranquei no dente mesmo, mordi como nos velhos tempos. Com umas três dentadas, entre os gritos desesperados dele, parti o troço e joguei no mar, bem longe. Ele caiu gritando, deu até uns murros na minha nuca mas eu viro bicho, você sabe, eu sou um animal, sou doida. Derrubei ele na areia, com a mão nas bolas, esguichando sangue, devia ter arrancado o saco também mas já não dava tempo. Ia pular em cima e devorá-lo sem dó, mas senti tanta raiva que comecei a chutá-lo, na frente da luz. Quando cansei, fui até o carro, abri o porta mala, peguei o ferro de trocar pneu, bati nas costas dele que tentava se levantar, escutei a espinha rachando, bati, bati, bati. Infeliz. Quando apagou, eu ia abrir a cabeça dele na luz, mas ouvi um grito vindo do portão da frente da casa, a uns cem metros, e sai correndo. Nem me pergunte como cheguei, vim até aqui escondida, estava morrendo de medo que tivesse dado tempo de virem aqui te pegar, acho que não viram que fui eu, melhor ainda, acho que ele morreu ou está em coma.
- Caramba.
Finalmente, graças a Deus, ele parecia acordar do torpor. E eu ainda estava tonta e dolorida, com a roupa suja e melada de sangue, inconformada por tudo que havia acontecido em tão pouco tempo, nauseada pelo gosto da pele do ricaço grudado na minha gengiva.
- E agora, e agora? Não sei o que fazer, graças a Deus não vieram aqui te pegar.
- Deixa. Deixa comigo.
O QUE O DOUTOR NADA FEZ:
Eu poderia passar horas falando sobre tudo de ruim e terrível que se passou pela minha cabeça mas não vem ao caso. Seja lá o que tivesse acontecido, estávamos ferrados se o desgraçado não tivesse em coma ou morto. Com tanta surra e com um ferimento horroroso daqueles, era para estar no mínimo, inconsciente, graças a Deus. Tinha que tirar o meu, o nosso, da reta.
- Você vai fazer o que?
- Tem três capangas aqui, o meu enfermeiro e o moleque operado, tudo lá no pós operatório. Devem estar no repouso se trocando. Tira a roupa, se lava ali enquanto pego alguma coisa para você vestir.
Botei a cara para fora da sala, escutei do corredor os imbecis conversando no cômodo mais distante, ainda se trocando. Fui até a sala onde eu consultava, tinha um armário só de roupas minhas; peguei um moletom e uma camiseta e voltei correndo. Ela estava nua, no banheiro, jogando água da pia no corpo, de costas para mim; não sei se por causa da maneira que estava se expondo, ou se por causa da situação em si, tive uma tremedeira igual a que aconteceu quando a gente se conheceu; tinha uma bunda dura, perfeita, totalmente equalizada para as suas curvas, um corpo atlético sem perder as linhas suaves e delicadas. Se virou para mim, com a boca meio roxa, os olhos lá no fundo, cílios molhados grudados na face, parecendo um manequim de filme de terror erótico e eu quase que a agarro e transo ali mesmo, mas claro que seria muita estupidez. O púbis dela estava lindo como nunca, com poucos pêlos, agora úmidos e direcionados para baixo. E ela notou minha cara de bobo.
- Que foi? Parece que nunca me viu assim - sorriu muito rapidamente, mas o suficiente para eu memorizar a feição das bochecas se elevando e os dentes aparecendo.
- Nada. Agora veste isso. Olha, temos que despachar esses caras e ir até onde você o derrubou. Sabe voltar lá?
- Sei. Mas e se pegarem a gente? É perigoso demais...
- Já está tudo fudido mesmo, é a única coisa que podemos fazer. Voltar, ver o que aconteceu no local nesse meio tempo. A gente fica escondido, onde ninguém possa ver.
Ela terminou de se vestir em silêncio, sob meu olhar de admirador; quando acabou, disse para ela fica quieta aí, e fui até o repouso sozinho. Entrando no quarto onde os três marmanjos e o enfermeiro estavam, o mulato verificava o celular.
- E então? - falei com eles, morrendo de medo daquela ligação.
Ele estendeu a mão, pedindo tempo, olhando para baixo. Os outros ficaram o fitando, como se uma notícia ruim estivesse sendo comunicada por telepatia. Pronto, é o ricaço castrado, vão puxar as automáticas e descarregar em mim.
- Caralho - ele disse, tirando o fone do ouvido e colocando na cintura - lascou tudo. Eu devia ter deixado o celular ligado, doutor. Alguém pegou o chefe, bateu nele, quase mata. Foi um dos homens quem deixou recado na secretária eletrônica mas num disse o que aconteceu realmente. Eu e os rapazes temos que ir.
Banzai.
- Não acredito - fiz aquela cara que os atores ruins fazem na novela das seis quando alguém se casa - onde ele está, está passando bem? Deus me livre...
- Num sei, doutor, é o que vamos ver agora...estamos indo para o hospital.
- E qual é o hospital? Assim que me aprontar, vou até lá.
O QUE A CHERRY DISSE QUANDO O DOUTOR NADA VOLTOU:
- E aí, me conta pelo amor de Deus...o que aconteceu? - esperar aquele tempo todo foi um inferno e ele finalmente voltava do bendito hospital, com uma cara esquisita. Passei umas duas horas aguardando no consultório, com o enfermeiro e o moleque operado na clínica. Mesmo tendo me revelado quando os gorilas se foram, não queria conversa com aqueles miseráveis até porque o cheiro de éter me deixava louca, subindo pelas paredes.
- Nem me fale, cherry.
- Fala!
- Porra, você ferrou o cara. Nunca vi alguém tão arrombado, nem aquela sua amiga - ele engasgou - nem aquela dona que você detonou e levou para o hospital da primeira vez.
- Vai morrer? Puta merda, aquele diabo está vivo?
- Está vivo sim, mas nem se preocupe. Você partiu a coluna dele, e não foi só nas costas não. A cabeça dele estava toda enfaixada, o intensivista falou que houve traumatismo craniano. Bem, as genitais dele já eram, sem contar as feridas pelo corpo todo.
- E a consciência?
- Você mordeu ele, não foi? Não tem mais dedo nas mãos do cara.
Sem dedos?? Não lembro de ter comido os dedos de ninguém.
- Eu não comi, eu te juro. Nem daria tempo!
Ele suspirou e prosseguiu, descrente.
- O homem está em coma profundo, muito mal. As chances de ficar assim o resto da vida são muito grandes; ainda bem, demos sorte e ele foi encontrado sem consciência. Disseram que não deu para ver quem fez aquilo por causa da distância e do farol do carro, mas que deve ter sido alguém muito forte para esfolar o desgraçado daquela maneira.
Eu não mordi os dedos.
- Aliás, conheci a mulher dele, nem sabia que o infeliz era casado, imagine. Quando saia na coluna social, sempre estava só. Maior perua; sabia da baixaria toda, dos travestis, dos corpos, de tudo. Disse que não sabe se mantém o que o marido construiu ou se fecha e apaga. E que por enquanto, todo mundo está desligado. Fez um cheque de dez mil para mim e disse que ligava para a gente.
- Piranha.
- Pois é. Mesmo com toda essa perversão, ela devia gostar muito dele, beijava o cara sem parar naquela cama, babado e mijado, mesmo quando ninguém estava olhando. Putz, isolaram a UTI só para ele. Tinha bem uns vinte seguranças por lá...e o cara virou um vegetal.
- Melhor assim.
- Melhor assim.
Eu não sabia se vomitava, se sorria ou se começava a chorar; por isso, continuei indiferente. Era incrível como nossas vidas tendiam para a violência, irreparavelmente: como imãs hediondos, como cúmplices infernais nesse batismo eterno. Passei a mão no cabelo dele, que sempre cheirou a esparadrapo e queria leva-lo para casa e deitar, mas meu ombro ainda doía e a nuca também, nem com aspirina passou. Quando os canceres achavam que se curariam, deu em metástase, essa palavra horrorosa, dolorida e disseminada; amaldiçoávamos tudo o que ousasse nos tocar, e o pior era que eu achava legal, destruir todo mundo, sem essa merda de moral e conduta. Crueldade.
- Vamos para casa.
Ele já estava se recompondo quando colocou a mão na testa.
- Tenho que medicar o menino. Amanhã eles virão pegá-lo. Monstros.
Éramos monstros também, meu amor. Não mudamos, continuávamos os mesmos.
- Está certo. Vai que eu estou te esperando.
Quebrávamos para nos reconstruirmos, mas sempre estávamos acima de todos. Não somos amantes, somos fodedores e jamais teremos coragem de dizer um para o outro te amo porque essa palavra é sentimental demais para nosso vocabulário. Eu te amo, que coisa mais brega, pelo amor de Deus. Eu te amo, eu te amo, eu te amo, me dá raiva. Eu te odeio, eu te odeio, eu te odeio mas eu gosto de fuder com você e você gosta de fuder comigo e sempre acabamos como bichos, um cheirando e lambendo o outro. Não sei o que nos espera, mais uma vez.
Pagaremos nossas contas e viveremos nossas mentiras. E isso não é um fim.
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Obrigado pela leitura, comentários são muito bem vindos. Se vc gostou do dr. nada e da cherry, leia tb 5 minutos para a idiossincrasia e cherry cerise.