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Contos-->AS ÁGUAS DE TODAS AS MÁGOAS -- 26/12/1999 - 20:24 (Simão de Miranda) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Os elementos básicos sempre hão de estar em torno do homem. O ar, o éter, o fogo, a água. Um rio vem rasgando-me corpo e alma. Não há como estancar esse rio? O futuro, quando foi? Muita água tem passado por baixo dessa ponte. Tudo me é muito estranho. O tempo tem futuro? Como se explica o inesgotável intento nunca recompensado? Explique-me, mas use locuções inteligíveis. O tempo tem passado, sim. Quase já nos esquecemos Lennon. E parece que foi anteontem, ao entardecer. Já posso sair do abrigo? O perigo já passou? Disseram-me que guerreou-se tudo o que se havia de guerrear. Ambicionou-se tudo o que se havia de ambicionar. Então, já não preciso participar dessa disputa. Sendo assim, já posso partilhar dos benefícios disso. Embora ainda não possamos comer no mesmo prato, colher do mesmo roçado, beber da mesma moenda. Já pode, a cidade, estreitar os laços e desatar os nós, dormir com vitrô aberto e partilhar metade do colchão? Já não precisarei temer o toque?

O rio vem rasgando. O rio não transborda? Não temos bússola. Não tememos. Os dias passam e não vejo sóis. Anote: a noite é uma cerca de arame farpado e ameaça cair sobre nós. O sangue arde em minhas veias; a azia, no estômago. O céu da cidade não tem momentos de surdez. O céu nos dá grandes lições. O dia morre lentamente, o céu fica bonito. O rio rasga. Não quero dar o braço a torcer agora, ainda acho que tenho algo para fazer, mas nunca faço muito. Quero, antes, que ouçam a minha voz. Ainda há pouco eu via no espelho um garoto que tinha coragem de brincar, ar despreocupado, voz menos grave. Hoje, olhos fundos, cabelos desgrenhados. Já chorei sobre o líquido entornado. Leite, sangue, lágrima. Azedume. Águas passadas gotejando do telhado. Perturbam o sono. Somos obrigados a conviver com outros animais idênticos a nós e precisamos manter alimentada a besta que mora em nosso íntimo. O instinto animal precisa ser saciado. Temos pretensões, prazeres e vícios. E assim tem que ser. As palavras escapam pelo rio. Eu rio. As pessoas que a gente ama sempre nos parece perder a memória com mais facilidade. Já se passou muita água por esse caudal e não se apagou a forma cruel com a qual manipulamos as pessoas. A adolescente aidética sente, da janela, que a noite é linda. As pessoas é que não se abriram ainda.

Águas passadas não movem dois barcos distintos distantes. Não conseguiram pulverizar-me. Assim tem que ser. Alguns nadaram até fazer dó e sucumbiram nas margens, como peixe envenenado, sem saber ao menos os porquês. Parece que a terra foi geograficamente arquitetada para interpor terrenos entre as pessoas. O rio desliza rumorejando. Desejei sempre todo bem aos outros. E os outros? Passa o tempo. Perco tempo. Artigo antigo. As águas passam, mas deixam marcas. Boas ou más. Não souberam sequer um miligrama do que eu trazia no peito. O espasmo ainda haverá de invadir suas carnes quentes e voltarão os olhos e nada encontrarão e seus resguardos em nada lhes terão sido úteis e nada haverá de ser. Por mais que dure a dor, não durará a eternidade. O dia, embora surja como águas sujas, qual nossas retinas sem luz, e nossos caminhos pareçam mais árduos, só nos restará seguir adiante. O desafio deverá ser compreendido como um convite à luta. Então, o sol voltará e o inverno irá de vez. Tenebroso inverno que manchou nossas melhores roupas com a constante umidade. O sol voltará e encherá nossos olhos de luzes e cores, arejando os cantos empoeirados, prateleiras e gavetas da nossa vida, trazendo o aroma de algo novo, imaculado e puro. Puro. Puro. Trará de volta as gotas de fé, tempero insubstituível, de que ainda existem mãos e braços e bocas e olhos que trabalham enquanto o mundo dorme, enquanto os bois pastam.

Hoje, uma luz de neon abre-se sobre minha vida empoeirada e meu castigado marca-passo. Aprendi, autodidatamente, que já que a estada é longa, a poeira é mais que comum. E que a fonte da eterna juventude é envelhecer, mantendo viva a lucidez; é morrer, sem precisar ser esquecido com tamanha rapidez. E, também, que nos precisamos muito, a cidade inteira, a humanidade inteira, agora mais que nunca. Afinal, somos pessoas normais, num lugar comum e merecemos ser felizes. O sol iluminará, com seu brilho de quinta grandeza, nossos caminhos, como um farol a costurar a noite guiando-nos por entre os recifes mortais. As ramagens agitam-se nas margens do rio. Devemos desejar o pouco. O essencial, agora: MUITO AMOR. Essa coisa, essa chama, esse gás que nos movimenta e nos mantém ativo. Todos os postes e pontes e árvores passarão. Todos os rios do mundo passarão por nós. Nós continuaremos.


SIMÃO DE MIRANDA
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email: simao@persocom.com.br
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