"(...) Cangaceiro andou com mulher em manhã de segunda-feira, dia de batalha e vingança, dá azar, pode abrir sortilégio do corpo fechado. Joviu?"
No corpo que sempre estivera aberto, o ferro frio penetrou como soco nos costados, impelindo-o para frente e furando a caixa do peito na hora. O embate o desequilibrou ainda mais, de braços estendidos procurou a parede como apoio.
Precisava respirar.
Sem trégua o sujeito correu atrás, segunda estocada nas costas e o coração pareceu subir na goela, também ele devia ter sido atingido; "Com um grande buraco nas costas, que se abre quando ele abaixa a cabeça, o Quibungo a fecha quando levanta", as pernas começaram a se dobrar, golfadas de sangue vieram à boca, cuspiu para não sufocar. Faltou ar assim mesmo. Corrupio o fez cair, os joelhos bateram no chão num baque que não sentiu, no entanto ressoou dentro dele como eco numa abóbada feita de ossos que foi... que foi se mesclando com a voz de mãe e de irmãos, surgindo de suas profundezas.
Minha mãezinha
Quibungo tererê,
Do meu coração
Quibungo tererê,
Acudi-me depressa,
Quibungo quer me comer.
Ferrou os dentes! Escancarou os olhos!
Levou a mão às costas, tentando arrancar o que lhe puxava a vida; teria sido patada do cão coxo derrubando-o de costas no chão, mas o ferro não estava mais lá!
Piscou para desanuviar os olhos e viu o teto, em seguida a faca na mão do lacraieiro passando de leve na sua fuça, até sumir da visão.
- Mexendo no seu pingente?
Querendo se mexer, sem conseguir, e o molambento fazia o quê?
Reapareceu olhando para ele de sorriso nervoso e baba descuidada escapando de boca aberta, mostrando o cotoco que segurava na mão.
- O fístula cortou seu picaçu?
Agora o via, pela primeira vez desse jeito, longe dele, sangue o molhava todo.
O negro não vai ao céu,
Nem que seja rezador;
O negro catinga muito,
Persegue Nosso Senhor
Uma pirrola ferida. Seu orgulho estava morto. Seria a vez dele:
Eu bem te dizia
Quibungo tererê,
Que não andasses de noite
Quibungo tererê.(...)
___________
Fragmento de capítulo do romance de Miguel Angel Fernandez "A CENA MUDA"