- Só uma coisa neste mundo pode te salvar, seu molambento. Me diz quem mandou dar cabo de eu!
Quase sem respiração, a boca invadida pelo sapato e sua ponta cutucando a garganta, a dor da orelha mutilada, fio de faca espetando o pescoço, eram de uma realidade tão palpável que a reza, a fim de tudo isso tratar-se de pesadelo, se diluiu em tentativa de grito que virou vômito.
- Gritou, morreu - mordiscou o capeta negro no fundo da orelha e afastou-se para deixar o homem tossir, desengasgar e vomitar à vontade. Azeda a cama molhada de sangue, bílis e urina. Pestilento o ar, sombrio o quarto, o homem procurava com os olhos remelentos esse demônio o castigando ainda em vida.
- Está pronto para desembuchar? Ou vai preferir estrebuchar, seu inhaquento mijão?
- Quem tá aí? O demo? Tô morto, São Benedito? Pois me sarve do inferno, meu Cristinho! - murmurava e repetia ainda na cama o aterrorizado e confuso cristão.
Nem Benedito, nem demo. Tonho, envolto em penumbras, tateou e achou uma cadeira bamba, utilizada como criado-mudo. Com um tapa derrubou tudo no chão: toco de vela, revista, maço de cigarro, e sentou.
- Quem taí? - tossiu o homem, revirando os olhos para ver melhor. - Antes de morrê quero sabê quem me mata! Se amostra, diabo!
Olhando o peste, apavorado e humilhado pelo terror, sentia até dó. Um pobre ignorante que nem conhecia cagando-se na cama. Pau-mandado, sim, como ele foi na arapuca do coronel Gouveia. Fizera aquilo por quê? Sabia direito? Não. Então, vai ver esse patife também não. Ficasse raciocinando assim, a coisa toda daria em nada. Precisava de ódio, não de raciocínio. De repente fez-se a luz. O homem acabava de acender a lâmpada pendurada perto de sua cabeça. Combinou os olhos para ver melhor, demorou segundos a localizar, compreender, avaliar e finalmente reconhecer:
- O preto da lady! - palavras confusas saíram embrulhadas de bílis e sangue. Brumas de lágrimas e pavor fecharam os olhos. Incrédulo, sacudiu a cabeça desarrumada.
- Preto para a Lady. O demo para você! Que veio desencarnar teu esqueleto. Acorda logo para dizer quem te mandou aprontar sujeira.
Na neblina confusa do cérebro do sujeito, pequena tocha acendeu-se, iluminando alternativas de fuga e defesa; mais uns segundos e a tocha viraria farol. Precisava de mais tempo. Entre cusparadas de sangue e tosse, indulgência e confissão:
- Foi o corno. O dotô. O marido dela quem mandou. Me mata não, seu. Tenho filho na roça esperano eu tirá ele de lá.
Estaria ficando frouxo? Velho preto e cansado. Onde o ódio que estava ali? Cadê a ânsia fortalecendo a mão apertada como garra à faca?
Perjúrio na defesa:
- Mata eu não, seu. Muié no hospital, doida pra saí e podê vê o fio sozinho na roça.
A tocha então virou farol, sua luz mais forte iluminava um atalho, mentalizando esconderijo, mergulhando debaixo do travesseiro, guiando mão dissimulada.
- Nem o conheço, sô. Foi precisão de dinheiro que me levou, cumpadre. Não ia acontecê de novo, seu moço. Té esquecido d ocê. Descarnou meu cumpadre, pra que mais, agora?
Entre percevejos e pulgas, no calor do travesseiro, o ferro sempre frio. Esperando.
(...) Não estava dando esperança para traidor, assim pensativo, de repente indiferente? "Tava, meu filho! Não devia confiar. Fica nessa trela com o destino, dá no que dá." Fica firme, homem. "Acorda, peste! Tá querendo morrer? Levanta!" A cadeira bamba cedeu ao movimento brusco feito ao tentar levantar-se, fazendo-o perder o equilíbrio. Inclinou-se até as mãos tocarem o chão para não cair de vez. Foi nesse segundo indefeso: como relâmpago a lambedeira foi arrancada de baixo do travesseiro. Num caminho traçado pelo desespero, como gol de furar rede, embocou no dorso a lâmina longa e estreita de mosqueteiro alvinegro. No impacto, no golpe traidor: o trevareio da surpresa lhe fez ranger os dentes.
"Acorda, Matheus! Tá querendo morrer?"
Fragmento de capítulo do romance de Miguel Angel Fernandez "A CENA MUDA"