– Vai graxa, doutor?
Respondera “não!”. O menino insistiu. – Só um briinho! Fiz que não ouvi. Isso me irritava. Era só sentar no banco e lá vinham eles, até parece que combinavam. Ele continuou em pé à minha frente, como que esperando-me mudar de idéia. Eu firme. Já tinha dado atenção a ele. Considerara a sua proposta. Mas meu “não” era desrespeitado. Mesmo não tendo meu olhar em si, continuava imóvel.
Não aguentou mais e arriscou:
– Então me paga um sorvete.
Meu ar fugidio por fim o convenceu. Desistiu de mim, foi atenazar outro.
– Sorvete, chefe? Só um real.
Estacionara o carrinho à minha frente, fez igual o engraxate. Nem ligou pro meu abanar de cabeça para os lados.
– Tem de limão, coco e groselha.
– Será que é irmão do outro? – pensei.
Resolvi não lhe dar atenção. Como o primeiro, esperou um pouco, olhar fixo em mim. Por fim se mandou.
Eu queria ficar só, será que ninguém entendia? Conhecia quase ninguém ali, podia ficar só na multidão. Só com meus pensamentos. Tem hora que a gente quer isso. Ficar só. Isso me fazia um bem enorme (quando o conseguia). Tinha tentado a catedral. Fui com a idéia de entrar na casa de Deus e curtir o silêncio da tarde. Era pra isso que servia a catedral, ou qualquer outra igreja. Pelo menos pra mim. Permitir-me ficar só, sentado em silêncio, só com meus pensamentos. Eu não gostava da hora das rezas. Nem da missa. Muito tumulto. Não me deixava concentrar. Mas à tarde, que beleza! nenhuma viv’alma. Silêncio. Silêncio de Deus. Era assim que eu me aproximava Dele. Eu não gostava de ir lá quando tinha padre. Nunca gostei muito de padre. Nem de santo. Sermões, ladaínhas, rezas, nada disso era comigo. O silêncio sim. Era outra coisa. Coisa divina. De Deus mesmo.
Mas estava fechada, a catedral. Estranho, sempre estava aberta àquela hora. Ou abria de manhã? Não sabia ao certo. A verdade é que estava com as portas cerradas. Frustrado, contentei-me com a praça. Era também um bom lugar pra se ficar só. Só na multidão.
Passei a observar ao redor. As árvores centenárias, não todas, as flores bem cuidadas, a grama verdinha, o chafariz que já tivera dias melhores, os pássaros urbanos e... as pessoas.
O casal de velhinhos sentadinhos juntinhos como dois namoradinhos. Me enterneceu tanto que tive que descrevê-los tudo no diminutivo. Nem pareciam “bodados” de ouro. Bodados? Onde encontrei isso? Bem, dá pra entender. Chamavam realmente a atenção. Pareciam que tinham se conhecido há apenas uns minutos, tal a dedicação e a atenção um com a fala do outro. Mais adiante, o bancário tomando sorvete. Devia estar aproveitando um momento de folga. Logo tinha que voltar pro banco. Será que era mesmo bancário? Na certa fora entregar alguma correspondência e fazia uma horinha. Aposentados no bate papo diário, sagrado. Desempregados jornal à mão consultando os classificados. Pederastas atrás de alguma aventura. Via-se de tudo na praça. Em qual classe o leitor me incluiria? Na última não, faz favor. Não faz meu gênero.
– Aí não, menino, não vê a placa “Não pise na grama”?
– Fui pegar a bola – justifica-se educado.
– Quer um sorvete? – pergunto, retribuindo sua simpatia.
– Não, obrigado. E volta pros outros que já reclamam da demora com a bola.
Gente passava, muitos apressados, engravatados. Correndo. Sempre correndo. Atrás do que? Da sobrevivência, talvez. Sempre tinha alguém correndo. Mesmo não sabendo atrás do que. A senhora de mãos dadas com o filho pequeno, a outra com seu bebê no colo. A mocinha que passava rebolando, atraindo os olhares de todos. Ou quase todos. É assim mesmo. Tempos modernos. Acho que a roupa acompanha o juízo. Se encurtam juntos.
A estátua. Ah! a estátua. Em homenagem a quem? De quem era? Ali há décadas. Premiada pelos pássaros. Raramente alguém responderia corretamente quem era o sujeito imortalizado naquele monumento. Eu mesmo não sabia. Parecia-se com os frequentadores da praça. Anônima. Como as pessoas que lá se sentavam ou apenas a cruzavam. Anônimas. Anonimato. Bom ser anônimo, tem suas vantagens. Nele podemos ficar a sós conosco mesmos. Pero no mucho. Momentos de anonimato, o ideal. Ocasião para nos afastarmos do rebanho. Sair do rebanho, como disse Nietzsche. Oportunidade de dialogarmos com nosso Deus interior. E as andorinhas? Não era época. Ou era e estavam pelos campos a se alimentarem. Se isto, então voltariam à tardezinha. Sua alegre algazarra compensava a sujeira que faziam. Tinham tentado várias maneiras de afastá-las da praça. Felizmente nenhuma deu certo. Acabaram desistindo. Melhor assim. Eu gostava de ver a revoada das andorinhas. Todos gostavam. Saíam de manhã e voltavam à tarde. Sempre no mesmo horário. E não sabiam ler as horas no relógio da praça.
A catedral fechada atraía meu olhar. Esperança de que abrisse. Mas nada. O teatro municipal anunciava “Orquestra Sinfônica de Moscou”. Nunca entrara lá. Diziam que ficou muito bonito depois da reforma. Também! cinco anos fechado, mais de dois em obras. Algum dia farei uma visita. Está sempre fechado durante o dia. Até parece a catedral. À esquerda a biblioteca, pouco frequentada. À direita a choperia muito frequentada. Contrastes de nossa realidade. Era assim mesmo. Tinha até mesinhas pra fora invadindo a calçada, a choperia. A banca de jornal, o ponto de táxi, um ou outro camelô. Faltavam os andinos. Cantadores em troca de trocados. O nortista das ervas medicinais com microfone e altofalante numa só peça dependurada no pescoço, produtos espalhados no chão.
– Serve pra lumbago, varizes e tosse rouca... Só cinco reais o vidro, madame – propagandeava.
Passantes iam e vinham. Até o sol cair era assim, todos os dias. Gente sempre correndo. Pra cima e pra baixo. De sábado faziam caminhada, andavam de bicicleta, traziam os cachorros a passear. Na praça. Sempre naquela praça. A da catedral fechada. É assim mesmo. Absorto em meus pensamentos, quase nada mais chamava minha atenção. O agitar das pessoas era página virada pra mim. Olhando pro nada, olhos fechados ou abertos, não sei. Em silêncio em meio ao tumulto. Sozinho na multidão. Olhos se fechando devagar. Era o que eu queria. Súbito, acordo assustado de meu sono acordado.
– Vai graxa, doutor?