- Antes aleijado do que gordo! - disse o moço, sentado ao lado da esposa no
ônibus. Lado esquerdo dos bancos do lado esquerdo. Moço novo, uns vinte e cinco, talvez menos. Deu uma olhadinha para trás, onde um senhor enorme, muito, muito gordo estava sentado. Uns quatro metros pra trás. Ocupava as duas cadeiras. Uns 180 quilos.
- Nada. Você não imagina o que é ser aleijado, Jorge! Não imagina! Pobre coitado desse senhor! Imagina como não deve ser ruim a vida dele... tendo que ser transportado pra lá e pra cá, sem mobilidade, sem poder correr, pular! Nunca, nunca! Um gordo pode fazer isso. Um aleijado, não. - Respondeu a mulher dele, sentada ao lado. Uma loirinha magra, olhos castanhos, uns vinte e poucos também. Um casal jovem. Carregava na mão uma sacola com alguns presentes embrulhados para os irmãozinhos. Estava se referindo ao senhor sentado ao lado do gordo, de cadeira de rodas e lendo um livro.
- Mas isso depende do aleijado. Um cara sem braço garanto que sofre menos que um gordo desses! Você sabe que eu tenho horror a gordos, Flávia. Sabe meu tio Sérgio? Sempre que ele visitava meu pai lá em casa, eu ficava na garagem, esperando ele ir embora. Quando topava com ele, olhava torto, sentia vergonha de ser magro. Sabe porquê? Porque sempre considerei a obesidade uma doença, e continuo achando isso até hoje. Pobres gordos! Imagina esse cara! Olha só o tamanho dele, Flávia. Uma mulher pra abraçar esse cara deve ser um problema. Esse cara na cama deve ser um problema grande! - Respondeu o rapaz. Era magro, também. Combinava com a esposa. Ela olhou mais uma vez de corrido para o gordo. Imaginou a cena: aquele homem nu, em cima dela. Horrível, horrível. Grande, pesado, quente. Ou ela em cima dele: pior ainda. Peludo, gelatinoso, gosmento! Sentiu um pouco de nojo. Olhou novamente para o marido e disse:
- Pobrezinho. O que se pode fazer por um homem desses? Deve ser horrível mesmo ser assim. Imagino então as mulheres obesas... nossa!
- Flávia, esse cara não deve ver o próprio pau pelo menos desde que ele era criança! Imagina os traumas, o preconceito, o que esse cara não deve ter passado na escola, ou na faculdade, ou, sei lá, na hora de arrumar um emprego! Por isso que está aí, mal cabendo nas próprias roupas! Imagina então o que esse cara deve ter que fazer pra comprar roupas! Pode apostar, Flávia: ser obeso é pior do que ser paraplégico. Sem dúvida alguma. - Respondeu Jorge, concluindo.
- Ainda assim não sei, Jorge. Ser paraplégico deve ser uma coisa horrível! Você mencionou o... pênis dele. Esse paraplégico aí nem pode sentir o pênis dele. O que é pior?
- Não sei. Podemos ver isso de acordo, talvez, com a vivência do cara, sei lá. O que pode ser? O gordo pode ter um sentimento de inferioridade, só vê o pau no espelho. Come muito. Deve se sentir um lixo completo! O aleijado já não deve ter esse sentimento de culpa, eu acho. Porque não é culpa dele. Ele é vítima de um acidente. Com certeza algum dia já foi alguém normal e já pôde provar os prazeres da... de... de ser alguém normal!
- Ué.. e isso é bom, por acaso? O cara pode ter um sentimento de perda redobrado. O gordo, pelo menos, segundo você, nunca pôde desfrutar desses prazeres. O paraplégico (pára de chamar ele de aleijado) já pôde. O paraplégico então pode ser bem mais deprimido, mais triste, sabendo que nunca vai voltar a ser o que era. Além disso, o gordo pode um dia voltar a ser magro. Um paraplégico como esse cara nunca vai voltar a andar.
- Nada, Flávia! Um cara como esse nunca vai ser magro, não. Vai morrer do coração. Gordos morrem do coração. Vai morrer muito antes de ser magro, Flávia. E esse aí não é gordo só por comer não. É gordo por genética. Isso aí nasceu gordo, os filhos vão ser gordos, os netos....
- Que coisa horrorosa que você tá dizendo, Jorge! - Disse a moça, finalizando a
conversa. Ficaram calados por alguns instantes, Jorge olhando para a frente, Flávia para baixo.
Três minutos depois, ele disse:
- Olha lá. O aleijado está lendo um livro. Camus. Você acha que esse gordo
feio leria Camus?
- Porque não?
- Porque não, ora! Olha bem pra ele! Acha que não interfere? É claro que esse
sujeito não tem um pingo de cultura. Por quê? Porque é gordo!
- Não acredito que você está dizendo isso.
- É sério, Flávia! Quer ir lá perguntar pra ele? Deve estar indo pra longe, lá pro
lado das barreiras. Vai ficar muito tempo nesse ônibus.
- Não! Ficou doido, Jorge?
- Qual o problema?
- Qual o problema?! – respondeu Flávia, surpresa – Isso seria grosseiro e mal educado! – continuou ela. Jorge tinha essa mania de implicar com algumas coisas: pessoas, animais, crianças, programas de televisão, um tipo novo de sutiã, a cor do batom dela...
- Fala baixo, Flávia! – Disse ele, reprimindo a moça, que havia se exaltado. O ônibus não estava cheio. Era feriado e meio de tarde. Mesmo assim, alguns poucos passageiros que estavam sentados ao redor olharam. Um senhor de uns 65 anos anos olhou com uma cara fechada.
- Olha, Flávia, eu aposto com você. – Disse Jorge.
- Aposta o quê?
- Aposto cinqüenta reais.
- Cinqüenta reais pra que, Jorge? Pára com essa bobagem! – disse ela. Flávia já estava chateada com a situação. As pessoas ao redor olhavam. O ônibus não estava barulhento como de costume. Um menino vendendo doces entrou e ofereceu ao gordo, lá atrás:
- Vai chokito, moço? Três por um real.
- Não. – respondeu o gordo.
- Vai, moço. É pra ajudar minha mãe. É ela, eu e mais meus seis irmãos. – disse o menino, insistindo. Estava carregado de doces: Lolos, chokitos, jujubas, suflairs, Lakas, balas....
- Não, não quero não, menino. – respondeu ele, virando a cara. Jorge e Flávia observavam:
- Como? – disse Jorge, em voz baixa.
- Como o quê? – respondeu ela.
- Ele não quer doce?
- Qual é o seu problema, Jorge? O que você tem hoje? – disse ela.
- Flávia, olha o tamanho desse cara! Acha que ele vai recusar uma barra de chokito? O menino vende três por UM real...!
- Jorge, você não tem que se meter na vida do cara! Se ele não quer chokito, ele não quer! Pronto. Deixa isso pra lá.
- Fala baixo, Flávia. Ele pode ouvir.
- Ninguém ouve nada, Jorge. Olha a barulheira que tá isso aqui...
- E os cinqüenta reais, hein?
- Que que você quer com esse dinheiro, Jorge?
- É uma aposta.
- Jorge, daqui a pouco a gente desce, você toma um banho, a gente conversa com a mamãe... acho que vai ter strogonoff. Aí você relaxa.
- Cinqüenta, Flávia. É uma oportunidade única. A gente vai lá do lado dos dois e
pergunta, pra cada um deles: é pior ser gordo ou ser aleijado?
- Jorge!
- O que foi?
- Esquece isso! Que importância isso tem? Pára com isso!
Nesse momento, o menino chegou até eles: tinha passado pelos quatro metros durante o meio tempo. O senhor na cadeira de rodas (em seu lugar devidamente reservado aos deficientes) havia comprado um conjunto de três chokitos. O menino parecia estranho. Olhava rancoroso para o gordo. Era um menino pequenino, mirrado, negrinho. Devia ter uns sete anos.
- Vai um chokito, dona? Três por um real.
- Não, obrigada. – disse Flávia.
- E você? Vai um chokito? – disse o menino a Jorge.
- Olha, eu te pago cinco reais se você for até aquele senhor grande sentado ali atrás e perguntar pra ele quanto tempo faz que ele não vê o próprio pau sem ser no espelho. – disse ele. Flávia fez uma cara de espanto e deu um tapa na mão de Jorge, que oferecia a nota. O menino riu, sem entender bem o que se passava.
- Jorge! Depois nós temos que conversar. – disse ela, tomando a nota de cinco reais da mão dele.
- Não! Menino, volta aqui e faz o que eu disse! Eu te pago!
- Tá bom. – disse ele, correndo até o fundo do ônibus novamente. As pessoas ao redor olharam. Algumas riam, outras olhavam desconfiadas. Não sabiam exatamente do que se tratava, pois o diálogo havia sido ouvido apenas pelos três. O menino correu até o fundo do ônibus.
- Jorge, agora ele vai perguntar! Porque você fez isso?
- Desculpa, Flávia, mas eu precisava perguntar isso. Ficou na minha cabeça, só isso. Você sabe como eu sou. Se eu preciso saber alguma coisa, eu preciso saber!
- Você não conhece o homem. E se ele ficar nervoso? Ele pode bater naquele menino! Olha o tamanho dele!
- Então você também tem alguma coisa contra ele!
- Não, Jorge! Mas isso não é coisa que se faça! Como é que você faz uma coisa dessas? – disse Flávia, olhando pra trás. O menino estava já falando com o gordo. Olhou bem a cena: o gordo falando e o xingando, enquanto derrubava a caixa com os doces. As pessoas no ônibus olharam. Algumas pensaram em reagir, em demonstrar algum tipo de solidariedade em relação ao menino, mas ninguém se mexeu. O gordo balbuciou alguns palavrões e o segurava pelos braços.
- Jorge, fica calado que ele ainda não sabe que foi você que mandou o menino perguntar aquilo. Não deixa ele perceber, Jorge.... – disse ela, cochichando. Porém, quando olhou, Jorge já estava de pé:
- Seu animal! Olha o que você fez com o menino! – bradou ele.
Jorge parecia estar verdadeiramente furioso. Algo realmente difícil de descrever. O gordo estava ainda sentado nos dois bancos, pegando o menino pelos braços, pronto a dar-lhe um tapa ou algo do tipo sem maiores conseqüências, quando Jorge se levantou. O homem olhou estranho e o ônibus se mobilizou. Todos estavam olhando parados, sem muito o que fazer. Dois amigos sentados perto do casal riam da situação, mas a maioria percebia a tensão que havia se estabelecido. Jorge parecia a personificação exata da fúria diante dos maus tratos às crianças. O que se via naquele momento era algo que nem Flávia, esposa dele, já havia visto algum dia na vida. O gordo ficou surpreso e quase se levantou, (coisa que para ser feita levaria um esforço terrível) mas preferiu continuar sentado. Largou o garoto e disse:
- O que você tem a ver com isso, seu merdinha?
- Olha que abusado! Me chama de merdinha! Merdinha! E você, seu monte de estrume ensacado que só sabe atrapalhar as passagens das pessoas em todos os lugares que vai? Aposto que você nunca foi no cinema na vida, seu bosta! – gritou Jorge, tirando do fundo de seus pulmões o máximo de energia que conseguia. Flávia simplesmente não acreditava no que estava ouvindo. O marido tinha fama de nervoso e encrenqueiro, mas nunca havia presenciado um exemplo tão concreto da veracidade de tais boatos. Tentava puxá-lo para o banco, mas ele estava se agarrando no corrimão do ônibus, e continuava em pé. O gordo se preparava para levantar quando alguém gritou de dentro do ônibus:
- Vamo pará com isso aí! Tem mais gente nesse ônibus!
- Parar porra nenhuma! Esse gordo escroto tem que aprender a respeitar as pessoas normais dentro desse ônibus! Ele é minoria aqui! Devia se sentar e ficar olhando pra baixo, que nem aquele aleijado do lado dele! – disse Jorge, apontando para o senhor na cadeira de rodas.
A partir dessa declaração, o ônibus foi tomado por um barulho uno. O zumbido das pessoas comentando, gritando, tentando se manifestar de alguma forma abafou até mesmo a enérgica reposta do gordo, que nem foi ouvida. Flávia não sabia o que fazer. Até mesmo o motorista e o trocador tentavam acalmar a situação, mas nada parecia adiantar. E as coisas ficaram assim por mais uns cinco minutos, até que o bafafá diminuiu e todos se sentaram novamente. O gordo outra vez tentou se levantar, mas foi impedido por duas senhoras que estavam próximas a ele querendo amenizar a situação.
O ônibus foi tomado pelo silêncio por outros cinco minutos.
- Jorge, e agora? – disse Flávia, baixinho.
- Agora, nada. A gente desce daqui a pouco e nunca mais vamos ver esse sujeito na vida.
- Jorge, pra descer nós temos que ir até a porta de saída! – respondeu ela, ainda cochichando.
- O que você acha que ele vai fazer? Me bater? – disse Jorge, quando o gordo, após um tempo em silêncio, gritou, lá do fundo:
- Não vejo meu pau mas sua mulher sempre me diz como ele é duro, seu filho da puta! - o resposta tardia provocou algumas risadas dentro do ônibus.
- Jorge, você vai ter que pedir desculpas pra ele se nós quisermos descer... – disse Flávia, antes que Jorge respondesse à afronta do homem.
- Não, Flávia. Eu não peço desculpas porque eu não fiz nada de ruim. Esses gordos são um vírus na nossa sociedade. Se nós pudéssemos acabar com todos eles...
- Jorge, ele vai te bater se você for lá!
- Eu não tenho medo desse merda. Eu chamo a polícia. Eu bato nele! Esse gordo deve ser lento que nem um hipopótamo!
- Jorge, você está errado!
- Não estou, Flávia! Ele tentou bater no moleque e eu apenas o defendi. A maioria das pessoas aqui está do meu lado.
- Você parece um racista, Jorge!
Às vezes esses casos se prolongam. Uns podem chamar a polícia, às vezes o cobrador expulsa os encrenqueiros do ônibus, às vezes uma madame ainda aparece para dar um chilique, muitas vezes colocam Deus, Jesus, satanás... todos eles acabam entrando na festa... Mas desta vez tudo se amenizou depressa, porque as pessoas foram saindo, outras foram entrando, os envolvidos foram esquecendo. O ciclo normal de todo ônibus, afinal. Uma hora, o gordo saiu, sem ressentimentos, sem xingamentos. Apenas se levantou e saiu. Era até bem próximo ao ponto onde o casal também desceria. Flávia olhou aliviada. Os pacotes para os irmãozinhos estavam amassados, mas ela estava agora tranqüila. Não entendia o que havia acontecido com o marido. Sabia que ele adorava piadas de negros e outras coisas preconceituosas, mas não pensava que ele tivesse algum tipo de ódio contra algum tipo de pessoa. Pelo menos não além do normal, que é aquele que todos têm. Curiosamente, ambos foram se sentar onde o gordo estava sentado antes. O senhor na cadeira de rodas continuava lá, lendo seu Camus enquanto a tarde virava noite. Flávia olhou para ele ressentida, e ele devolveu um olhar amargurado. Talvez fosse um olhar ofendido, talvez não.
- Olha, meu senhor, me desculpe por meu marido e pelos transtornos que ele causou hoje. Teve um dia cheio no trabalho. – disse ela, repentinamente, ao senhor da cadeira de rodas. Jorge não fez nada além de olhar com raiva para a cara dela. Estava acostumado com o tipo de besteira que costumava dizer, mas nunca se conformava por completo.
- Não tem problema. Eu odeio pegar ônibus. Você sempre se depara com coisas desse tipo: gente suja, feia, discutindo coisa estúpidas como o fato de alguém ser gordo ou não. Ou então briga de marido e mulher, ou briga de faca, briga de bandido que não gosta que olhem pra namorada... quando entro num ônibus venho predisposto a ouvir esse tipo de baixeza. Por isso fico aqui na minha cadeira lendo. Da próxima vez acho que vou trazer um walkman, assim não preciso ouvir também. Eu só acho engraçado. Só isso. Eu trabalho no alto de um arranha-céu, onde todo mundo é limpo e bem arrumado. Onde eu posso pegar um copo de água gelada ou um cafezinho quando quiser, respirando ar condicionado. Aqui você respira cc, o que é pior. Você ouve o tempo todo gente falando frases gramaticalmente erradas. Não se preocupe, moça. Eu não me senti nem um pouco ofendido quando seu marido me chamou de aleijado. Faz parte de ser classe média. Às vezes eu sou preconceituoso também. Diga pro seu marido que tem muito sangue negro correndo nas veias dele, aí. Classe média é uma puta gente mesquinha mesmo.... – disse ele. No mesmo momento, o ônibus chegou ao ponto do casal. Eles se levantaram, calados, e desceram. Quando o ônibus partiu, Flávia virou-se a Jorge:
- Ainda acha os gordos piores que os aleijados?
- Tenho cá minhas dúvidas... é tudo raça ruim....