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Contos-->Parábola de Natal -- 26/12/1999 - 22:19 (Ciro Inácio Marcondes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
1
Era dia 23 de Novembro. Faltava pouco mais de um mês para a festa mundialmente comemorada no ocidente (isso mesmo: mundialmente comemorada no ocidente) conhecida como Natal. Em direção à área de gerenciamento do shopping Bonaville caminhava Roberto Paulo Cermínio da Silva, conhecido, dependendo do lugar onde está, como Paulão, Betão, Pirado ou Sola-de-Sapato. Porém, naquele dia ele era apenas, em um dos raros momentos de sua vida quando isso acontece, Roberto Paulo. Ou apenas Roberto, um homem que provavelmente já foi forte, mas hoje mostra rugas de cansaço e muito trabalho. Vestia o que podia: uma camisa social comprada em feira, calça jeans surrada e um sapato velho. Era tudo o que podia ter. Caminhou, então, em direção à gerente-superintendente-chefona-secretária ou o que quer que fosse o cargo. A questão era: ela estava sentada na cadeira e poderia arranjar-lhe um emprego. Era isso, só isso, que ele queria. Pouco importava para ele o Natal. O que vinha aí era o verão, e não o inverno. Porque, então, se vestir como um velho gordo que provavelmente morreria cozido dentro daquelas roupas aqui no Brasil durante o Natal? Para ganhar dinheiro, é claro. Pensou então no Natal, enquanto se aproximava daquela senhora de óculos-aro-quadrado, cabelo curto pintado de marrom e muitas rugas na cara. Pra que servia esse maldito Natal? Para tirar dinheiro de um monte de gente. “É, deve ser isso. Para tirar dinheiro de uma monte de gente”, pensou. Pensou também nas propagandas sujas, nos negócios sendo fechados, na depredação da imagem daquilo que era para ser uma festa religiosa. Lembrou-se então da capa da nova Playboy: uma atriz famosa, do qual o nome não se lembrava (talvez nunca tenha sabido isso), vestida de “Mamãe Noel”. “Hmpf...”, pensou ele.... era esse o espírito do Natal. E foi pensando nisso que ele finalmente chegou à atendente-gerente-moça (nesse caso uma velha) -que-ajuda-desesperados-como-ele:
- Olá. - Disse Roberto.
- Olá. - Respondeu a mulher sentada na cadeira.
- Preciso de ajuda... Arlete. - Disse ele, olhando no crachá da senhora. Aliás... não mais senhora.... e sim Arlete.
- Pois não? - Respondeu ela, tirando o olho de uns papéis e se voltando para o homem parado à sua frente. Barba feita, cabelo penteado com gel. “Esse quer emprego. Esse perfume barato não me engana”.
- Preciso de emprego.
- Imaginei. Bem... - Disse ela.
- Preciso de um currículo. Você tem algo aí? - continuou.
- Bem... não... Eu tenho carteira... de identidade. De motorista também. E CPF também.
- Sim. Em que você quer trabalhar?
- Pode ser qualquer coisa, mas eu vim atrás do emprego de Papai Noel.
- Você é muito magro.
- Magro? Ora... todos os Papais Noéis são magros! Eu sei que a gordura é tudo estufamento. - Disse ele, sorrindo com convicção e presença: estava confiante.
- Escuta... é lógico que a gente dá preferência pra quem é gordo.
- Ahh... é? E algum gordo por acaso já apareceu? - Disse ele, tentando provocar uma ironia.
- Muitos, meu amigo. Muitos. Eu diria que a sua chance de ser Papai Noel nesse shopping são menores que a de você ser coelho da páscoa. - Disse ela, sorrindo sinicamente. Roberto fez uma careta de quem não gostou nada, e respondeu:
- Olha... eu não acho que isso é critério. Vou me inscrever mesmo assim, tá legal? Você pelo menos poderia ser educada com aquele que vai empregar. Eu preciso desse emprego!
- Certo. Me dê sua identidade. Preciso de uns referenciais seus. Onde trabalhou... nível de escolaridade... número de filhos, etc.
- Ora, por que isso é necessário? Vocês querem apenas um Papai Noel! Papai Noel não precisa ser rico nem inteligente! Precisa apenas ser gordo e saber dar uma risada “hohoho” desse jeito!
- Pois é. Você não é gordo!
- Hmpf...
- Quer ou não quer se cadastrar? Vou precisar desses referenciais. Ordens do chefe... Roberto Paulo! - disse ela, olhando a carteira de identidade de Roberto.
- Trabalhei na Embrás de 87 a 89. Depois fui para a Vídeolux. Passei a consertar televisões... em 1991. De 92 a 93 trabalhei de garçom no Bonapetit. Em 94 dei aula para uma escola primária.
- Aula? Então você é professor?
- Sim... professor primário. Não tenho segundo grau completo. Não pude terminar o terceiro ano. Por causa de greve... e desisti de estudar.
- Certo. Onde você estudou?
- No colégio São Jorge.
- E ficou desempregado a partir de 94? - Perguntou ela. Nesse momento, Roberto engasgou. Levou alguns segundos e depois respondeu, atônito:
- Sim. Fiquei.
- Você tem filhos?
- Dois. Um de quatorze e uma de oito.
- E como você tem os sustentado desde 94?
- Eles estão com minha esposa.
- Você ainda é casado?
- Não.
- E como você viveu sem emprego de 94 até hoje?
- Eu... estive... preso. - respondeu Roberto, ao mesmo tempo tímido e nervoso. Aos poucos foi ficando vermelho. Sabia que essa pergunta, que ele evitara o tempo inteiro, viria alguma hora.
- Preso? - Disse ela.
- Preso.
- Preso? Por quê?
- Isso não interessa! Estive preso de 94 a 98!
- Claro que interessa! Você acabou de sair da prisão e quer pegar nosso emprego... de Papai Noel? Nem gordo você é!
- Eu já disse que essa questão do gordo...
- Você foi preso! - Disse ela, levantando-se desorientada da cadeira, interrompendo a fala de Roberto.
- Fui, porra! Mas eu fui solto! A pena acabou! Você não pode me julgar por isso!
- Você foi preso... por quê?
- Tráfico. Tráfico de drogas, tá legal? Mas hoje eu não mexo mais com isso.
- Não interessa! Você foi preso! Não pode ser Papai Noel!
- Olha... aqui tá o meu telefone, ok? Quando vocês me precisarem pro teste do emprego me liguem! Eu preciso do emprego, tá legal? Como você quer que eu vire um cidadão normal se todos dizem que eu não posso me redimir? Isso é ridículo! Ridículo! Isso me deixa muito puto! Eu quero o emprego, tá legal? - Disse ele, virando-se logo depois e retirando-se da sala. Era mais uma tentativa frustrada de emprego. Desde que saiu da prisão, foram outras oito. “Mundo injusto”, pensou ele, enquanto saía do shopping. “Gostaria de fazer uma lavagem cerebral nesse bando de imbecis... preso... preso... olha só... qual o problema nisso? Teoricamente, eu estou redimido, como qualquer cidadão normal. É pra isso que serve a pena! Essas pessoas, essas pessoas... não pensam! Não pensam!....”, pensava ele, divagando enquanto andava....
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2

Roberto morava sozinho. Sua ex-esposa, Célia, não agüentou as pressões dos outros traficantes. Pediu divórcio e conseguiu a guarda dos filhos quando foi preso. Agora, para ele, a vida tinha perdido o sentido. Não havia muito o que fazer. Ele era um ex-presidiário à procura de emprego. A idéia era não voltar de forma alguma ao tráfico, coisa suja que já o tinha condenado. Mesmo assim, não havia como pagar o aluguel da casa, mesmo que pequena. Ele teria de voltar a conversar com uns amigos. Coisa simples; simplíssima, até. Apenas para cobrir as necessidades.
Caminhava então, desta vez, em direção a uma casa velha, de onde saía um som alto. Um funk, como foi apelidado o estilo no Rio de Janeiro, espalhando-se como praga pela Brasil inteiro. A casa era bem grande, mas ficava no subúrbio, por óbvias medidas de proteção. Assim era a vida do traficante, sempre tendo que esconder a própria riqueza. Logo de cara, dois negros, sem camisa e com uma lata de cerveja em cada mão, acenaram para Roberto. Ele esboçou um sorriso: velhos companheiros. Idiotas ignorantes que não sabiam fazer nada - absolutamente nada - além daquilo. Não eram como ele, que era um cara esperto, crítico, inteligente. Não, eles eram a ralé mais estúpida e ignorante da cidade e provavelmente os que menos mereciam o dinheiro arrecadado com o tráfico. Porém, como diz o clichê, ninguém disse que a vida é justa.
- Grande Pirado! Como é que tu tá, maluco? - Disse o primeiro sujeito. Era grande e forte. Resultado de várias experiências com anabolizantes de todos os tipos. Bem mais escuro e maior que o outro, que parecia estar mais bêbado. Conforme Roberto ia se aproximando, outros homens aparecerem, tanto de dentro da casa quanto sentados em mesas em volta da casa. Todos eles com copos de cerveja na mão.
- Pirado! Tu por aqui, rapaz? Saiu da cadeia?
- Olha só!! Pirado! Aqui! - Disse outro deles. Roberto olhou... tentou acentuar o sorriso forçado, mas não conseguia. Chegou no portão. A casa cheirava a cerveja e suvaco. Cada vez ele foi ficando mais nervoso... indignado. Como ele, o mais inteligente (a milhas de distância) dali, foi o único preso e esses idiotas descerebrados estavam soltos?
- Oi pessoal. Como é que tá? - respondeu Roberto, finalmente. Apesar de toda raiva que sentia ao rever esses traficantes, ele mantinha sua filosofia: dinheiro é tudo. Não queria, definitivamente, se transformar num pedinte.
- Fala Pirado! Saiu da cadeia, cara! Porra, que doido, hein? E aí. Como é que tá? - Disse um maior dos dois negros, abrindo o portão.
- Tudo certo, Flavião. Estou entrando, hein? - Disse Roberto, entrando na casa. O cheiro de cerveja se intensificou. Olhou bem para o lugar: umas quatros mesas, todas com traficantes e cúmplices sentados, bebendo e ouvindo música. Um televisão de trinta e cacetada polegadas estava em cima de um banquinho, passando um jogo de futebol.
- Beleza, Pirado. A casa é sua, mano. - Respondeu outro deles. Subitamente, vários deles puseram-se em pé, para cumprimentar o amigo que acabara de retornar. Olhando mais uma vez para a mesa pôde também perceber algumas armas em cima da mesa. Umas duas ou três. Havia pelo menos uns dois 38, uma 765, uma 22...
- Vocês estão bem mais descuidados, hein? - Disse Roberto, olhando para as armas.
- Ah, rapaz! Você que não sabe! Nós conseguimos fazer aquele trato com os gambé que você tinha falado! A gente não pôde te avisar, mas foi feito! Não temos problemas com polícia há uns três anos! - Disse Flavião, dando um tapa nas costas de Roberto.
- Hmm. Que ótimo. É claro que vocês não me avisaram. Como poderiam? Nenhum de vocês foi me visitar na cadeia nenhuma vez. - Respondeu ele, sorrindo ironicamente e olhando para baixo.
- A gente não teve tempo, cara! Quando você foi preso as coisas ficaram fudidas por aqui. Quase pegaram a gente também. Tivemos que trabalhar muito nesses últimos anos. - Respondeu ele. Os outros concordaram com a cabeça.
- Pois é... principalmente sem polícia no pé.. deve ter sido difícil pra cacete... - Respondeu ele, ainda sorrindo. Os outros ficaram calados por alguns segundos, até que um deles, sentado em outra mesa, falou:
- Hmm... e então, Pirado? Como vai a patroa?
- Patroa? Que patroa? Não tem mais patroa, cara. Ela pediu divórcio. - Respondeu Roberto.
- Porra.... melhor então! Se quiser mulher, Pirado, é só falar com a gente. Elas gostam pra caralho de brancos como você.
- Tá certo... mas eu não quero suas mulheres não, Flavião. Vim aqui por outra coisa.
- Ah... é claro. Você quer quanto? Já quer começar hoje? - Disse Flavião.
- Não. Eu não quero mais trabalhar com vocês. Parei de traficar.
- O quê? Olha, Pirado, cê sabe que as coisas não são por aí... não é tão simples...
- Olha... eu sou de confiança. Você sabe muito bem disso! Eu não vou falar merda nenhuma pra ninguém, tá legal? Cadê o Martinho? Ele tá aí? Deixa eu falar com ele. - Disse Roberto, nervoso.
- Vou falar com ele lá dentro. Mas, olha bem, Pirado, cê sabe que não é assim... - Disse Flavião, apontando o dedo indicador para Roberto. Os outros ficaram apenas olhando. Alguns riram, outros estavam um pouco assustados. Provavelmente inciantes no negócio. Ainda não acostumados com a lei da selva que é o tráfico de drogas e armas.
- Fica frio, Pirado. Ele fala pra caralho, mas não faz nada não... - Disse um deles, sentado na mesa, logo depois bebendo um longo gole de cerveja. Um outro deles riu. Roberto ficou parado em frente à porta da casa, esperando o dito cujo voltar com o cabeça da quadrilha.
Pouco depois, chegou o tal Martinho. Era bem mais baixo que todos os outros. Vestia camisa do Flamengo, corrente de ouro no pescoço. Um par de óculos enorme, com remendos de durepox, exaltava-se em sua cara. E, é claro, aquilo que sempre foi característico de Martinho: chapéu à Tom Jobim na cabeça. Era um homem baixo, moreno, por volta dos seus cinqüenta, sorridente. Passou pela porta com os braços abertos, como o “papa” italiano que recebe um de seus filhos mafiosos. Flavião, mais calmo, seguia-o logo atrás.
- Pirado! Pirado! Como é que estás, meu amigo de trabalho? - Disse ele, dando um forte abraço em Martinho.
- As coisas estão ótimas, Martinho. Como você deve estar vendo, saí da prisão. E por aí? Como estão as coisas?
- Maravilhosas, meu filho. Maravilhosas! Estamos tendo muito lucro, sem gambés por perto, longe de concorrência... tudo está ótimo. Melhor agora que você voltou, meu filho.
- Certo. Bem... vou direto ao ponto, então, Martinho. Eu não vim aqui para procurar emprego. Já fui muito fodido por causa de tráfico de drogas. Vim aqui atrás da minha grana!
- Hmm? Pirado? Sua grana?
- É, Martinho! Meu dinheiro. Você sabe que eu deixava as minhas reservas todas aqui antes de ser preso. E eu fui preso, não falei nada pra ninguém dessa casa, inventei uma história escrota, mas meu dinheiro ficou aqui! Estou desempregado. Ninguém me aceita em lugar nenhum porque eu fui preso, e vou precisar desse dinheiro.
- Calma! Calma, meu amigo. Vamos. Sente-se - Disse Martinho, puxando uma cadeira para Roberto. - Isso. Agora, acalme-se, rapaz. O que está pensando? Vamos conversar! Não nos vemos há quatro anos! Você pode ficar tranqüilo. Você será um dos mais bem pagos aqui, como sempre foi. Vamos... pegue uma cerveja. - Disse ele. Roberto fechou a cara. Sabia qual a era a do grande-chefão. Crápula sem coração... provavelmente nem se lembrava mais dele. Era apenas mais um dos seus peões. “Quero apenas meu dinheiro, seu desgraçado. Minha vontade é te denunciar pra polícia, mas tenho medo de morrer. Desgraçado! Desgraçado! Já estou vendo que não vai dar minha grana...”
- Sem essa de “vamos te dar o melhor salário”, Martinho! Não quero mais mexer com tráfico. Não quero ser preso de novo, ok?
- Calma, Pirado! Vamos, bebe uma cerveja! Quer maconha? Quer? Se quiser mando buscar pra você lá dentro.
- Não quero merda nenhuma, Martinho! Quero meu dinheiro e só!
- Tá bom, rapaz. Está nervoso, hein? Que dinheiro é esse? Não me lembro de dinheiro nenhum! - Respondeu Martinho, parecendo sincero. Mas isso não enganava Roberto. “Filho da puta! Desgraçado! Ladrão desgraçado! Não devia mesmo ter confiado meu dinheiro a você!”, pensou ele.
- Meu dinheiro, Martinho. E não é qualquer dinheiro. São dez mil, cara! Dez mil reais! Eu não vou sair daqui sem esse dinheiro!
- Olha, Pirado. Vamos fazer o seguinte: você passa aqui amanhã e nós resolvemos isso, tá legal? Você tá muito nervoso e o pessoal aqui só está tentando se divertir. Passa aqui amanhã a essa hora. Aí, nós conversamos. - Disse ele, olhando para os outros, que sorriram como cães fiéis. Roberto, olhou, fuzilando-o de forma avassaladora, e depois olhou para baixo. Se levantou, olhou mais uma vez para Martinho e disse:
- Você não vai me pagar, né? Você gastou meu dinheiro... gastou meus dez mil... - Martinho olhou para ele curioso. Alguns outros, da lado, sorriram. Roberto virou e foi embora, em passos rápidos. Os cervejeiros-funkeiros-traficantes então continuaram a olhar o jogo, como se nada tivesse acontecido. Continuaram rindo e gritando. Gol do Vasco. Ninguém comemorou.
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3

No dia seguinte aconteceu algo inesperado. Um envelope na caixa de correio. Não, não havia selo, não havia nada. Havia sido entregue. Um simples envelope branco, com uma cartinha contendo uma mensagem muito simples: “Você ainda quer o emprego? Volte ao Bonaville hoje à tarde.” Roberto então parou. Leu, releu, e leu. Das mais variadas formas. Provavelmente era um peça de Deus! Uma brincadeira de mal gosto. Talvez Deus fosse sádico... pois gosta de ver as pessoas sofrerem, retribuindo-lhes depois as horas de divertimento com alguma tipo de prêmio que iria mudar sua vida. Era o que tinha acontecido naquele momento. Roberto achou engraçado. A casa era quitada. Quem escreveria para ele, além do pessoal do shopping? Seria até mesmo ridículo ele pensar que tinha algum tipo de amigo. “Só podia ser mesmo o pessoal do shopping. Há! Ahá! Me aceitaram! Hahahaa! Deve ser então uma vitória da sociedade! O mundo está ficando inteligente. Deve ser algo assim. Sem preconceito contra presidiários... hmmm... daqui a pouco veremos até mesmo Papais Noéis gays! Papais Noéis gays...”, pensou ele, segurando ainda o envelope. Não havia muito o que fazer. O dia-dia de um desempregado ex-presidiário não é muito agitado. Então foi se arrumar. Pegou sua melhor roupa, que não era muito melhor do que as que ele usava comumente, e foi caminhando - quase saltitando - até o ponto de ônibus, onde desceria no shopping Bonaville para constatar a verdade. Seria mesmo verdade? Deus é sádico? Maravilha, então!
Desceu então em frente ao shopping, ainda rindo à toa. As pessoas à sua volta olharam, estranhas. “Seria mais uma das piadas de Deus?”, teriam pensado se fossem inteligentes. Caminhou até a sala de gerência bastante empolgado. Havia acordado tarde e desanimado. Era meio dia exato no relógio da praça de alimentação, quando passou por lá. Ah! A preciosidade da inocência humana. O mundo seria melancólico e triste sem ela. Roberto então bateu na porta de vidro, que desta vez estava fechada. Arlete, a mesma gerente-superintendente-chefona-secretária que o atendeu no dia seguinte, abriu a porta. Ela sorriu, ainda amargamente, e pediu para que entrasse.
- Olá senhor Roberto! É um prazer revê-lo. Vejo que engordou um pouco! - Disse ela, com o mesmo sorriso. Roberto estranhou, mas retribuiu-lhe a cordialidade franca que as pessoas adoram utilizar.
- Bom tarde, Arlete! Err... hmmm... bem... eu tenho... - Disse ele, preferindo retirar a carta, já um pouco amassada, do bolso a falar-lhe pessoalmente.
- Oh, sim! A carta. Eu mesmo a pus na sua caixa de correio! E então, o senhor está feliz?
- Eu fui aceito, certo? Sabia que não me negariam isso. As pessoas hoje estão com um sentimento global anti-preconceituoso mesmo! Isso mesmo continuando sendo preconceituosas! Dizem isso para ganhar fama, dinheiro, popularidade... - Disse ele, sorrindo bastante inocente. Arlete fez uma cara estranha, mas devolveu o sorriso assim mesmo.
- É verdade. - respondeu ela, sem entender muito o que ele quis dizer. - Na verdade, não sei se o senhor foi aceito, mas o chefe... um dos donos do shopping, quer mesmo falar com você. Na verdade, ele está um pouco atrasado, mas deve estar chegando. - Disse ela, olhando no relógio.
- Hmm... o chefe? Ele quer falar comigo? Qual o nome dele? - Perguntou Roberto.
- Geraldo. Geraldo Cavalcante. Não se preocupe. Ele está vindo. O trânsito... sabe como é... o trânsito é terrível. - Respondeu ela. Depois disso, passaram alguns minutos olhando um para a cara do outro, como duas pessoas que não têm nada falar um para o outro, e ficam esperando o outro introduzir algum assunto interessante, mesmo sabendo que isso não vai acontecer. E ficaram assim por mais bastante tempo. Arlete olhou no relógio, checou algumas anotações, consultou o computador, e nada. Roberto olhou mais umas três vezes a carta, olhou os quadros pregados na parede da sala, e nada. Foi então que, para alívio de ambos, o chefe chegou. Era uma figura esquisita: terno amassado, pasta velha na mão. Loiro, mas o cabelo era bem desgrenhado. Dentes horríveis. Roberto olhou então respeitosamente para ele:
- O senhor... é o senhor Cavalcante?
- Eu mesmo! Olá Arlete! Me atrasei? O trânsito estava terrível! Quem é esse moço? - Perguntou ele para Arlete.
- Ele é o tal do Roberto Paulo, o... principal candidato a Papai Noel.
- Oh, sim! Sim! Quero falar com você, sr. Roberto. Podemos conversar na minha sala. Acho que tenho um tempo ainda.
- Como quiser... - Disse Roberto, se levantando e seguindo o chefe para a sala dele. Era sempre assim, com aqueles que se acostumaram ao apelido de “chefe”. O nome já diz tudo.
A sala era enorme. Duas mesas, mapa múndi, quadro para pincel atômico, carpete, televisão, geladeira, papelada. Geraldo sentou-se atrás de uma das mesas, e pediu para que Roberto se sentasse na frente. Foi o que ele fez. Roberto estava bastante acuado, não como se estivesse diante de um grande dragão, mas como alguém cuja vida depende do que será resolvido nessa situação. Como um parasita, um platelminto qualquer, diante de um ser humano. E não era mentira.
- Arlete é ótima. Sabia que foi por causa dela que descobri você? - Disse Geraldo, preenchendo alguns formulários enquanto falava.
- Mesmo? - Respondeu Roberto, sem saber bem o que dizer.
- Sim. Ela chegou e disse: “hoje tivemos uma frota de Papais Noéis aqui... esses tempos de desemprego são mesmo tristes. Um emprego bosta desse com um salário pior ainda....” - Disse Geraldo, olhando para Roberto, dessa vez, com um sorriso fino no rosto. Roberto riu sem graça, mas não disse nada.
- Então ela me citou um monte de sujeitos que apareceram. O engraçado é que a maioria era realmente muito melhor que você. Nenhum possuía ficha criminal. A maioria era só de pobres pais de família... alguns mais tradicionais... com dinheiro. Às vezes isso acontece. Antigamente não contratávamos Papais Noiés. Simplesmente pagávamos um bicho extra pra algum dos empregados aqui do shopping. A maioria gasta em chopp mesmo. Nem tínhamos problemas para achar Papais Noiés gordos! - Continuou ele, sorrindo para si mesmo.
- É... - respondeu Roberto, ainda muito sem graça. Já estava ficando nervoso com a situação e com o cinismo do tal “chefe”. Mas ele tinha que se humilhar, ser submisso e rir das piadas idiotas dele, pois, afinal, sua vida dependia disso. Na verdade, apenas uns dois meses, já que só precisam de Papais Noiés em Novembro e Dezembro.
- Mas, como eu já disse, com esse negócio de desemprego, a coisa se complicou. E as pessoas são burras! Muito burras mesmo! Porra... pra que comprar presentes de Natal se não possuem dinheiro para comprar? Não que eu seja contra isso... eu lucro pra cacete com isso, mas, porra! É muita burrice! Todo mundo quebrado e mesmo assim todo mundo preocupado em gastar e comprar presente! O Natal é mesmo uma coisa idiota. Me diga: não acha que o mundo seria melhor sem Natal? - Disse ele. Roberto estranhou o papo do sujeito. Olhou para ele, meio confuso, mas respondeu:
- Talvez. No oriente não tem Natal e o mundo é uma merda do mesmo jeito.
- É verdade... mas lá a merda não está no Natal. Aqui o Natal é uma merda a mais. Além do mais, lá tem outras festas religiosas... se bem que.... aqui também não. Natal não é religioso. Lá em casa a gente nunca rezou antes da ceia. Todo mundo sempre quis os presentes... e.... e o peru. É isso. O peru. Ele é a chave do Natal. Aposto que a maioria das pessoas gasta muito dinheiro querendo comprar o peru.
- Elas podem economizar bastante comprando um peru. Geralmente Natais são em família. Se cada membro de uma enorme família contribuir... bem... aí o peru sai barato. - Disse Roberto.
- Sim, mas aí não sobraria peru para todos... seria uma droga! - Respondeu Geraldo. Roberto ficou calado, pensando em quão idiota era essa conversa, e tentando também passar isso ao chefe pelo olhar. De alguma forma, ele percebeu. Pegou a caneta e preencheu mais um formulário. Logo depois, disse, ainda olhando para os papéis, em voz baixa:
- É... acho que fugimos do assunto. - Disse ele.
- É mesmo. Você... citou... acho que fui escolhido como Papai Noel, certo?
- A princípio sim.
- Bem... você estava dizendo que Arlete estava te contando sobre os Papais Noéis que vieram procurar o emprego aqui...
- Oh, sim! Havia me esquecido! Aí ela chegou até você! Disse: “Ah! E teve um ainda muito engraçado! Um traficante de drogas, acredita? O cara acabou de sair do presídio, e disse que não tinha nada a ver não lhe darem o emprego por causa disso. E o sujeito ainda é magro! Acontece cada coisa...” - Disse Geraldo, rindo bastante. Roberto olhou estranho. Não riu dessa vez.
- E aí? - Respondeu ele.
- E aí eu resolvi te contratar! - Respondeu ele, empolgado.
- Por quê? - Perguntou Roberto novamente, desta vez muito sério. Para
ele, houveram sete ocasiões anteriores, todas fracassadas. Todas com a mesma resposta: “Não, não podemos colocar de Papai Noel um ex-presidiário. Não há o menor sentido nisso”. Todas as vezes. Ele então não entendia agora o que estava acontecendo. A princípio, havia ficado feliz. Achou que havia sido contratado simplesmente porque tinha melhores condições que os outros, como em qualquer concurso normal. Porém, ele podia ver que nessa ocasião não era assim. Bastava lembrar das palavras do chefe: O engraçado é que a maioria era realmente muito melhor que você. Nenhum possuía ficha criminal. A maioria era só de pobres pais de família... Portanto, não restava nada a pensar. Não havia mais o que fazer. Havia apenas uma única pergunta em sua cabeça: “Por quê?”
- Ora, isso é óbvio! - Respondeu o chefe, rindo.
- Por quê?? - Disse Roberto, levantando um pouco a voz. Seus olhos revelavam uma profunda angústia, como se fossem gritar e soltar para fora toda a raiva que tinha passado nos últimos anos.
- Porque você é o melhor qualificado para o emprego. Checamos seus dados, e o escolhemos. Você não está satisfeito com a justiça da sociedade? - Continuou o chefe, ainda rindo bastante,
- POR QUE, PORRA? - Perguntou novamente, Roberto, dessa vez realmente levantando a voz, e levantando-se também, visivelmente nervoso.
- Calma! Calma lá, seu Roberto! Eu estava só brincando. Sente-se, vamos. Vamos conversar direito. Quer o emprego ou não? - Disse Geraldo, desta vez olhando-o diretamente nos olhos. “Quer o emprego ou não?” Roberto odiava essa pergunta. Mesmo assim, sentou-se, e disse:
- Vamos conversar sério aqui. Se você não for me empregar, me deixe ir embora que eu posso procurar outro serviço, tá legal?
- Claro, seu Roberto. Esfrie sua cabeça. Vamos apenas conversar aqui. Estou certo de que tudo vai sair legal pra você. Bem... é claro que percebeu... eu quero algo de você. Algo envolvido com seu passado.
- Sim. O quê?
- Bem... eu... sabe como é... necessidades. Eu tenho algumas. Entre elas, estão coisas que o senhor trafica.
- Sem chance. Não trafico mais nada.
- Sim, mas, você não está entendendo. É só um serviço. Mais nada. E aí você ganha a roupa vermelha. O que acha?
- Qual o problema? Precisa de um Papai Noel pra te dar droga? Porque você não procura um outro traficante qualquer?
- Não é bem assim a coisa... você não sabe bem do que estou falando.
- O que é, então?
- Eu preciso de você, porque estou brigado com um pessoal aí.
- Brigado com um pessoal? Que pessoal?
- Vicentinho. Ele disse que não vende mais nada pra mim .
- Vicentinho? Você comprou briga com o Vicentinho e acha que eu vou te vender droga? Você deve ser louco! Antes desempregado do que morto!
- Porra, você não tá entendendo! Eu vou precisar disso! Nenhum traficante quer papo comigo mais! Tudo por causa da porra daquele filho da puta! - Disse Geraldo, olhando para o lado, nervoso. Tentou olhar para Roberto como se ele fosse um cúmplice, um amigo seu.
- Caralho, que merda.... porra... que merda... - Disse Roberto, botando as mãos na cabeça, olhando para a mesa.
- Pois é... e fale baixo aqui. Arlete sabe de tudo aqui, mas os outros não. Você deve saber como é... é traficante. Deve ser viciado também.
- Não! Não, porra! Eu não sou viciado e nem traficante. Nem uso droga, cacete! Putz...
- Olha, cara, então me deixa te explicar: a coisa não é fácil. Esse Vicentinho diz que ainda vai me matar. Não sei porque não fez isso. Talvez porque eu seja rico, sei lá. Mas a coisa está horrível pra mim, ok? Ele parece que deu ordem pra ninguém vender nada pra mim. Isso tá sendo um castigo horrível! Uma tortura escrota! Esse deve ser o método dele de me matar, sei lá... eu sei é que estou morrendo aos poucos. Devo estar com câncer, ou algo assim... sei lá! Mas é um mês, cara. Um mês. É como se a cada diz um pedaço de mim se fosse. Como se... ah... como se... sei lá, é indiscritível! É horrível! Eu não posso ficar mais sem droga. Não posso!
- Porra... eu não agüento isso... o emprego depende disso? Ok! Eu arrumo um jeito. Mas eu não quero só emprego. Quero muita grana! Quero bastante dinheiro seu, seu canalha!
- Não me chama de canalha... não sou canalha! Não tenho culpa disso, tá certo? Eu vi na televisão que o viciado é um doente, e não um vagabundo. É verdade. É verdade! Pode acreditar! - Disse Geraldo, mostrando-se dessa vez realmente desesperado. Sua pele estava vermelha, e ele suava.
- Putz... tá legal, tá legal. Eu entendo. Já vi muito viciado na vida. Quanto e pra quando você quer? E eu adianto: quero pelo menos vinte mil por baixo. Estou sem emprego. Sem vida. Nem nada. Nem mulher eu tenho mais.
- Hehe... - riu Geraldo - nós somos mesmo dois caras desgraçados, envolvidos com um monte de drogas! - Continuou. Roberto continuou sério, olhando para ele como se não tivesse dito nada.
- Vinte mil?
- Caralho, você é mesmo um filho da mãe explorador! Vinte mil! Tá bom... não posso fazer nada mesmo...
- E pra quando você quer isso? - Continuou Roberto, ainda muito sério.
- Pra amanhã. É aí que tá.
- Amanhã? Amanhã não é o dia da chegada do Papai Noel no shopping? Porra, vou ter que trabalhar!
- Não interessa. Com vinte mil nem trabalhar você precisa.
- Não preciso? Preciso sim! CLARO QUE PRECISO! Não sei se você entende, mas é minha honra que está envolvida aqui! E fique certo de que eu vou pedir outros empregos... muito mais coisa! Sem essa de “não preciso”! Não sei se você entende o que é não ver trabalho e viver sendo rejeitado nos últimos quatro anos!
- Porra, mas você estava na prisão!
- Mesmo assim! Amanhã eu vou entrar de Papai Noel, de qualquer jeito!
- Certo. Mas tem que me trazer um quilo de cada amanhã também.
- Um quilo de cada?? Amanhã?? Você tá maluco? Deixa que eu trago outro dia!
- Não. Eu vou viajar amanhã às sete. E tenho que levar isso comigo. Pra mim, pra minha família. - Disse Geraldo, mantendo a calma ainda. Roberto estava muito nervoso. Quase desesperado, até. Olhava para todos os lados, quase chorava. A situação era realmente desesperadora. O tal Vicentinho era o mandachuva-mor. O grande traficante. O maior da cidade. Tudo o que vinha de tráfico derivava dele. Criar briga com ele era castigo certo. Morte certa. Um vilão poderoso, à moda antiga. Era então uma tarefa arriscada. O sujeito que estava à sua frente era um maníaco. Um playboy riquinho, viciado. Recebeu o prêmio que mereceu. Mas aquela antiga história da tênia solitária ainda era válida: ele era um parasita, que precisava de um hospedeiro, senão morria. Porém, o senhor à sua frente, o “chefe”, era também um parasita, que tentava usar seu corpo de hospedeiro. Então, o que fazer quando dois parasitas se encontram? Roberto ficou calado. Não acreditava nisso. Como poderia ser? Geraldo então continuou:
- Bem... eu estarei aqui no shopping às três da tarde, Papai Noel chega às quatro. Você tem esse tempo para me entregar a droga, pegar seu cheque de vinte mil e curtir sua nova vida.
- Um quilo de maconha e um quilo de cocaína. É isso que você quer? - Respondeu Roberto, friamente.
- Isso.
- Cara, eu não entendo. Você não pode comprar droga com os traficantes da cidade onde vai?
- Você não entende o poder desse Vicentinho. Ele tem muito contato lá no Rio. É como se fosse de lá! E eu não vou conseguir muito se for tentar pegar lá no Rio. Vou ser descoberto! Quando o Vicentinho descobrir que eu vou pra lá, vai avisar os compadre dele lá e aí fode pra mim. Se eu conseguir um quilo de cada com você, aí posso ficar sossegado que isso dá pra bastante tempo! Sabe... quando eu soube que você tinha passado quatro anos na prisão e que havia uma possibilidade de você não saber do acordo do Vicentinho, cara, me deu uma esperança... por favor... hehe... me dê esse presente de Natal!
- Putz... não acredito que estou fazendo isso... não acredito... e se eu não conseguir a droga?
- Você consegue. Você consegue. Pode deixar. Eu também te dou mais uns cinco mil pra pagar as despesas da droga.
- Certo. Amanhã, às três, eu estarei aqui, pode deixar, com tudo o que você pediu. Quero o dinheiro contadinho. Tudo certinho. Sem rolo nenhum. Me dê um telefone, assim posso te contatar.
- 5554865.
- Tudo bem. E, quanto ao emprego? - Perguntou Roberto.
- Você pode falar com a Arlete. Ela que está cuidando disso. - Respondeu Geraldo, sorrindo aliviado, como alguém que percebe o avião balançando, descobre que vai cair, e logo depois percebe que o piloto contornou a situação. Roberto levantou-se lentamente, também suado, e foi em direção à porta principal. Antes de ele sair, Geraldo perguntou:
- Você concorda que se Jesus Cristo não tivesse nascido não haveria Natal e o mundo seria melhor?
- Talvez.... - Respondeu Roberto, saindo.
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4
A vida sempre foi mesmo irônica. Alguns dias haviam se passado entre a primeira entrevista com Arlete e a primeira visita aos traficantes. Já era dia 30 de Novembro. No dia seguinte, primeiro de Dezembro, Papai Noel chegava ao shopping, para alegrar a garotada, carente de bondade e carinho de seus pais. O jeito. muitas vezes, era realmente apelar para receber poucas balas baratas de um gordo fictício. O engraçado é que a maioria das crianças hoje em dia nem acreditam mais no Papai Noel. Como poderia um mito tão ultrapassado sobreviver até hoje? Esse faz parte dos mistérios que serão guardados, talvez, até o fim da humanidade, que será destruída por algum meteoro desavisado. Ou até o fim do Papai Noel, que será destruído pelo bom-senso. O que vier primeiro.
Roberto estava então voltando, na mesma tarde que conversara com Geraldo, à casa dos traficantes. Um dos “cantos”, como eram conhecidas essas casas na cidade. Desta vez, estava vazia. Sem cerveja, sem funk, sem jogo do Vasco. O portão estava fechado, e estava chovendo. Era uma casa bastante escondida. Pequena, mas bem estabelecida num bairro rico. Estratégia dos traficantes, para os tempos em que ainda precisavam se esconder da polícia. Roberto tocou a campainha. Pouco depois, Flavião saiu de dentro da casa, um pouco mais bem vestido do que na ocasião anterior. Desta vez estava vestido uma camiseta branca, sem estampa, uma bermuda de banho e um par de havaianas.
- Pirado? - Perguntou ele.
- Eu. Oi Flavião. Martinho disse que eu tinha que aparecer aqui hoje, pra acertar as contas com ele.
- E você acreditou? Pô, Pirado, aquilo foi só pra te enrolar... Martinho não tá. E não deve voltar por um bom tempo. Estamos usando o esquema de segurança de novo.
- Certo. É algum risco de perder a proteção dos gambés?
- Não. É rotina mesmo. - Disse Flavião, olhando impaciente para Roberto. Ele era bem maior, e tinha que olhar para baixo. Roberto parecia calmo, mas ainda assim olhava inquieto para Flavião.
- Merda. Sabia que ele não ia me pagar. Porra... são dez mil, cara! Dez mil pau...
- Eu sei. E cê sabe que se continuar vindo aqui tua vida vai passar a correr risco, pirado. Se eu fosse você, arrumava um jeito de vazar daqui, e rápido.
- E com que dinheiro? Que dinheiro, porra? Quer que eu viva de quê? De roubo?
- Não sei, mas já te avisei. Aquilo que você fez ontem não foi legal. Nem fudendo.
- Eu sei, mas o que vim fazer aqui hoje pode ser resolvido com você mesmo, Flavião. - Disse Roberto, sério.
- O que é? - Perguntou Flavião, desconfiado. Ele estava à frente do portão. Não havia convidado ninguém a entrar, e nem deixou espaço para ninguém passar.
- Preciso de droga.
- Porra, mas tu é um merda mesmo, hein Pirado? Isso me deixa fulo. Ontem você disse que não mexia mais com isso, e que tava parando, e agora vem com isso...
- É urgente. Preciso de grana. O que posso fazer se teu chefe me roubou dez mil reais? - Disse Roberto, desta vez encarando Flavião com ousadia. Olhou bem em seus olhos, expressando toda sua raiva e preocupação. Flavião estranhou, olhou reciprocamente nos olhos de Roberto, e respondeu:
- Cê tá maluco, rapaz? Olha lá como fala do Martinho! Se não fosse por ele, você seria um merda hoje. Um merda!
- Eu sou um merda, Flavião. Você mesmo me disse isso há um minuto.- Disse Roberto, tentando sorrir.
- Entra. Não vamos ficar falando disso aqui fora. Os vizinhos podem estranhar. - Disse Flavião, abrindo a passagem. Roberto passou, e entrou na casa. Sentaram-se no sofá da sala, que estava em frente à televisão que na outra ocasião estava lá fora, na área. Lá estava também um dos outros traficantes, o Zé Renato, um branco cheirador de pó que não valia mais que um dólar no Brasil. Ele olhou, estranhando. Estava fungando. Estava drogado, o nariz escorrendo.
- É Pirado? Pirado? Que faz aqui, Pirado? - Disse ele.
- Fala Zé. - Respondeu Roberto, sem dar muita atenção. Na cozinha, estava Chica, mulher de Flavião, cozinhando junto com um moleque que devia ser filho dos dois. Flavião pediu para que Roberto se sentasse, e perguntou:
- O que você quer?
- Um presente de Natal. Já deu presente de Natal pros seus filhos Flavião? - Perguntou Roberto. Não sabia exatamente porque havia dito essa besteira, mas sentiu muita vontade de dize-la e estava satisfeito porque havia dito isso. Talvez tivesse sido um surto de revolta, uma vontade de confrontar idéias com alguém nitidamente inferior, incapaz de discutir algo mais profundo que futebol, se chegasse tanto. Sua vida tinha entrado numa maré tão baixa que seu único consolo era rir da própria desgraça, aproveitando-se da ignorância dos outros para fugir da triste realidade. Como se fosse uma droga, um canal para despejar todas as tristezas.
- Hm? - Respondeu Flavião, sem entender bem - Alguns eu comprei. Por quê?
- E o que comprou? Quantos filhos você tem, Flavião?
- Cinco. Comprei brinquedos. Meu mais velho tem só doze.
- Bonito. Bonito. Me responda uma coisa, Flavião. Você acha que se Jesus Cristo não tivesse nascido o mundo seria melhor porque não haveria Natal? - Perguntou Roberto, rindo logo depois. Zé Renato fez uma cara de espanto, e dizendo logo depois:
- Tá maluco, Pirado?
- Maluco não, Zé. Pirado mesmo. - Respondeu Roberto.
- Que porra de pergunta foi essa, Pirado? O que é que você quer, afinal? Que merda! Sem brincadeira aqui na minha casa! - Disse Flavião, tirando da gaveta um 38. Lá estavam também as balas, que Flavião fez questão de pegar também.
- Quero um quilo de coca, e um de erva.
- O quê?
- É isso mesmo. Preciso dessa droga para amanhã. - Respondeu Roberto. Flavião estava bastante nervoso, e Zé Renato parecia distante, mas ainda assim assustado, sem entender muito o que acontecia.
- E pra que tanta droga? Não pode entregar isso aos poucos? Pra quem é?
- Eu preciso disso hoje. Te garanto pelo menos cinco mil na jogada. É muita grana. É um cliente antigo, que precisa de muita droga, pra armazenar numa fazenda, ou algo assim.
- Numa fazenda? Isso é sujeira, Pirado. Ele vai ter que passar por estrada, e a polícia rodoviária pode querer parar o carro, e essas coisas.
- Porra... aí azar dele. Cê sabe que nenhum cliente meu nunca contou nada. Nunca tivemos problema desse tipo por minha causa. Eu sei o que tô fazendo, ok? Não é você que precisa de dinheiro e nem foi roubado! - Disse Roberto, encarando novamente o traficante. Flavião olhou torto, e não disse nada por alguns segundos. Depois, perguntou:
- E que garantia eu tenho de que essa treta é segura?
- Vai ter que confiar em mim. É cinco pau. - Respondeu Roberto. Flavião olhou bem para Roberto, e logo depois para Zé Renato, que olhava tudo com olhar vivo e ativo. Mexeu a cabeça para ele, pedindo sua opinião:
- É cinco pau! - Respondeu Zé Renato. Flavião olhou mais um vez para Roberto, desconfiado, e entrou. Pouco depois, voltou com dois pacotes enormes, cada um pesando um quilo.
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5
Primeiro de Dezembro. Ainda que faltassem 24 dias para o Natal, a cidade começava nesse dia a se preparar para a grande festa. Pela manhã, já podiam ser vistos muitos enfeites, árvores, coisas cobertas de algodão, como se todos tentassem forjar e cobrir o Verão de sol quente com uma neve artificial que nada esfriava. As lojas lançavam suas promoções de verão, esperando atrair para os bolsos de seus donos os suados décimos-terceiros de todos os cidadãos. Era o primeiro dia do mês do Natal, o mês em que Jesus Cristo foi concebido, há 1998 anos atrás (mesmo que haja controvérsias, mas fica para uma outra ocasião). Talvez seja engraçado pensar dessa forma, mas se Jesus realmente é imortal, hoje ele está com 1998 anos. Isso é bastante tempo de vida. E, antes de tudo, até mesmo de Jesus, é o dia em que, no shopping Bonaville, chegaria a figura presente e esperada daquele gentilmente apelidado de bom velhinho, o Papai Noel.
Porém, agora eram 4 horas da tarde, e o bom velhinho em questão estava atrasado, não para sua chegada, que era às cinco, mas para um outro compromisso, muito mais importante. A droga estava no porta-malas, dentro de uma mala grande de couro, junto com a roupa de Papai Noel, que estava dentro de um saco. Arlete havia lhe explicado tudo: como funcionava, o que tinha que fazer, o que tinha de dizer, como andar, como rir, e até mesmo como pensar enquanto estivesse vestindo o manto vermelho. Tudo estava certo. Tudo pronto. Roberto havia conseguido a droga, o emprego, o dinheiro. Porém a vida dá voltas, e é sempre irônico quando isso acontece. Tudo estava certo, até que uma batida feia, que bloqueou toda a rua, engarrafou a Rua Avelino, que era caminho direto para o shopping, por mais de uma hora. Roberto estava dentro de um táxi, e não conseguia proferir nenhuma palavra que não fosse um xingamento, fosse contra Deus, Geraldo, Arlete, Vicentinnho ou Martinho. O motorista agüentava pacientemente, sem poder fazer muita coisa além de perguntar o motivo do desespero. Quatro horas. O encontro com Geraldo era às três. Ele não tinha telefone celular e não havia nenhum orelhão por perto. Não podia pegar um ônibus, não podia fazer nada além de esperar. E havia polícia por perto. Muita.
- Fica calmo, rapaz. Os polícia já estão tirando os carros de lá. Daqui a pouco já vamos passar. Olha, até desliguei o taxímetro. Não vou te cobrar por isso. - Disse o Taxista, sorridente. Era um homem velho, bigode cheio e branco. Dentes horríveis. Roberto começou a olhar então fixamente para ele, suado, com as mãos no queixo. O velho sorriu, inocente.
- Os polícia... - divagou Roberto.
- É, rapaz. Eles tão tirando tudo já. Alegre-se! É o primeiro dia do último mês do ano.
- É tudo tão inacreditável... putz... do que o senhor vive? De taxi? Aposto que tem mais de quatro filhos pra criar... e esse salário..
- Tenho um filho só. Um rapaz. Vinte anos e cacetada. Se sustenta sozinho e ainda me ajuda. - respondeu o taxista, abrindo um largo sorriso no rosto. Sem malícia, sem maldade. Apenas um sorriso sincero. - E o senhor? - completou.
- Eu... preciso chegar até o shopping. Minha vida depende disso.
- Sua vida? Não é o que a gente vê todo dia por aqui. Hahahaha... olha, dentro desse porta-luvas tem uma garrafinha. Dá um trago. Afoga esse excremento interno que tá dentro do seu corpo, rapaz. Sua vida não depende de nada disso. Problema, a gente resolve. - Disse o velho. Ele mesmo, depois de falar, foi até o porta-luvas e retirou, lá de dentro, uma pequena garrafa de vodka. Estava ainda lacrada. Abriu, deu um longo gole, e passou-a para Roberto.
- Não quero isso. Será que você não entende? Eu preciso ir trabalhar às cinco... Papai Noel... a roupa toda está lá no porta-malas, naquele saco.
- Às cinco? Ihh... dá tempo e sobra. Olha lá. Os carros já tão andando. Dá um gole que melhora. Cura as feridas. Não tem remédio melhor. - Disse ele, ainda sorrindo. Roberto olhou estranho. Olhou depois para a garrafa. A bebida parecia outra coisa naquela hora... não costumava usar drogas e nem beber, nem mesmo na época de tráfico. Mesmo assim, o líquido transparente, dentro da garrafinha, de rótulo prateado, lhe pareceu atraente. Olhou novamente a garrafinha. Parecia bela. Parecia mesmo uma cura, para todo o mal-estar e todo o tipo de injustiça que tinha passado. Deu um longo gole, de lavar a alma, que abriu seu corpo como um meteorito cortando a atmosfera. Sentiu-se em paz e acomodou-se no banco, esperando a engarrafamento passar.
Quando chegou, eram quase cinco horas. O shopping estava cheio. Era um sábado. Gente correndo, pra lá e pra cá. Gente carregando pacotes, crianças, sorvetes e outros bens materiais. Ele ainda assim estava desesperado. Em uma mão, carregava uma mala de dois quilos, cheia de droga. Na outra, um saco, bem mais leve, mas tão inquietante quanto, com a roupa do Papai Noel. Por um momento parou no meio da praça central do shopping, sem saber o que fazer. Pensou em quão estúpido era carregar uma mala lotada de maconha e cocaína no shopping, a instituição mais família que havia naquela cidade hipócrita. Por um momento sua mão tremeu. Pensou em várias possibilidades: a de deixar cair a mala e a droga se esparramar pelo chão, a dos policiais o acharem suspeito, a de algum tipo de brincadeira daquele tal Geraldo, que na verdade poderia ser um policial disfarçado, ou algo do tipo. Drogas no shopping! Isso não tinha o menor sentido. Seus olhos coraram. Estava nervoso. Esteva tremendo. Muitas crianças o aguardavam. Ele tinha que vestir a roupa e trabalhar. Pelo menos até as seis. Sim, o vôo de Geraldo era às sete. Às seis, ele poderia entregar-lhe a mala. Ele não teria ido embora. É o tipo de viciado que não vive sem droga. Se suicidaria se ficasse mais tempo sem, talvez. Ele sabia como aquele pó branco age no sangue das pessoas. Sabia que Geraldo o esperaria, precisava da cocaína. Por isso foi, num passo só, até o camarim. Lá estavam todos eles, os ajudantes, as meninas-noel que o acompanhariam, todos tensos, preocupado com o horário de chegada.
- Ah, aí está você! - Disse um homem, vestido de terno. Não tinha crachá. Deveria ser gente importante. Olhou novamente. Duas meninas, vestidas de mamãe-noel, um homem de terno e... Arlete.
- Atrasado, hein? - Disse ela, com um sorriso maldosamente cruel no rosto. Naquele momento, as coisas todas viraram do avesso para Roberto. O que significava aquilo? Ela estaria se referindo a Geraldo, ou a quê?
- Hm... havia um grande... um enorme engarrafamento na Avelino. Eu estava de táxi. Paguei com o dinheiro que você me deu ontem. Mas eu vim, eu vim... com tudo!
- Bem, então que tal arrumar essa roupa, hein? São.. - disse ela, olhando no relógio - cinco e dez. Estamos dez minutos atrasados, senhor Noel.
- Certo. - disse ele, despindo-se rapidamente. Nem notou os olhares vergonhosos das meninas, e até mesmo o de Arlete, por causa do nervosismo. Havia um vestiário, um toalete, dentro da camarim, mas ele nem notou. Ali, no meio do carpete, começou a tirar a roupa e colocar a fantasia. Estava pingando suor. O homem de terno então aproximou-se, pegou a mala de dois quilos e disse:
- Onde deixo isso?- disse ele. Roberto quase teve um ataque cardíaco.
- Não! Eu cuido disso! Por favor, saiam que estou envergonhado. Deixe apenas Arlete aqui! Ela precisa me dar uns toques ainda... estou nervoso... porque nunca fui... fui... nunca fui Papai Noel! - Respondeu ele, gaguejando. As meninas começaram a rir baixo, ainda mais envergonhadas. O homem de terno, sem entender bem, largou a mala no chão e saiu. As meninas o seguiram. Roberto então correu em direção à porta, ainda não completamente vestido, e a fechou. E rodou a chave.
- Pelo amor de Deus, Arlete.... onde ele está?
- Não sei, senhor Roberto Paulo. Sei que você está numa encrenca muito grande! - Disse ela.
- Você... - disse ele, engolindo a seco, e depois continuando - você chegou a falar com ele?
- Muito pouco. Ele parecia nervoso. Não sei se ainda está aí. - Respondeu ela.
- Por favor, Arlete... você tem que me fazer um favor... pelo amor da merda do seu deus! Leve essa mala pra ele! Não agüento mais isso. Por favor. Eu só quero ter uma vida tranqüila!
- Me desculpe, senhor Roberto, mas eu tenho horror a essas coisas. Não me ponha no meio disso, está bem? Seus negócios com o senhor Geraldo são seus negócios. Agora, vista-se e saia! Já tem o emprego! Anda! - Disse ela, olhando feio. Logo depois, andou até a porta, destrancou-a e saiu. Roberto estava novamente sozinho, com a mala. Terminou de vestir a roupa, e saiu.
Arlete guiou ele e as meninas até o corredor, de onde sairia. Estava quente dentro daquela roupa e de todo aquele estofado. Sentiu um calor quase sobre-humano, febril. Tentava esboçar algum sorriso, afinal, era o seu trabalho, mas não conseguia. Seu coração batia forte. As meninas riam. Não sabia bem o que fazer. Tentou esquecer tudo o que havia se passado. Tentou esquecer os traficantes, Geraldo, sua esposa, a cadeia, todos os seus problemas. Tentou deixar de ser Roberto Paulo e ser Papai Noel, como Arelete dissera, mas não conseguiu. Não conseguiu principalmente porque não sabia quem era Papai Noel, não conhecia Papai Noel. Sabia apenas que ele falava “hohoho”, distribuía presentes, e nada mais. E sabia também que Papai Noel havia nascido na Finlândia. Ahh.... boa e velha inteligência, tão inútil nos momentos difíceis. Não adiantava muito ser um professor inteligente e cético num momento como esse. O que podia fazer, além de criticar aquele Papai Noel negro da televisão? Como explicar para todos que na Finlândia, terra natal do Papai Noel, todos eram loiros como anjos, e brancos como neve? Papai Noel negro? Bah!
- São racistas, continuam sendo racistas, mas tentam passar uma imagem de não-racistas... racistas desgraçados! - Resmungou ele, quase em pensamento, sem deixar as meninas ouvirem. Elas jamais entenderiam. E ele então saiu. Havia um círculo de gente o esperando. Foi caminhando, sem sorrir muito, por entre as pessoas que puxavam sua barba, que gritavam, que queriam tirar fotos. Já havia uma fila enorme de crianças em frente à sua cadeira, o trono do Papai Noel. As meninas, muito mais graciosas, sorriam, contentes, estavam ganhando um extra, pra gastar em camisinhas, talvez. Mas esse é um pensamento maldoso. Poderia ser para comprar roupas, ou CDs. As crianças pareciam também felizes. Até mesmo seus pais estressados pareciam felizes. Nem parecia que tinham ralado um ano inteiro, ou mesmo esse único dia no shopping, atrás de presentes, cansados. Não parecia. Tudo estava belo e límpido. Um ótimo dia. Tudo menos o Papai Noel.
- Hohoho - Foi o que ele disse durante muito tempo, quase sem parar. Não conseguia sorrir de verdade, não conseguia desviar o pensamento. Só conseguia dizer “hohoho”. Ficou assim, distribuindo balas e suando durante mais de meia hora, até que viu algo que quase já tinha esquecido: Geraldo, no meio das pais que viam as crianças. Cara séria, seríssima. Fez um sinal para que o acompanhasse. Roberto olhou, concordou com a cabeça. Disse às meninas que iria no banheiro, e saiu. As crianças o seguiram por um tempo, mas depois ele subiu as escadas e correu até o camarim. Geraldo na frente dele. Entraram e fecharam-se:
- Seu filho da puta!!! - Disse Geraldo, dando um soco em sua própria mão.
- Calma! Calma! Me deixa explicar!
- Eu devia mandar te matar, seu desgraçado! - Disse ele, empurrando Roberto contra a porta. O estofado o amorteceu.
- Calma, caralho! Me ouve! Peguei um engarrafamento muito fodido! Fiz o que pude! O negócio tá aí! - Disse Roberto, se impondo. Geraldo estava realmente furioso, vermelho de tanta raiva.
- Cadê?
- Nessa mala! - Disse ele, pegando a mala dentro do banheiro. Entregou-a a Geraldo, que por um momento se acalmou. Abriu a mala: os dois pacotes estavam lá.
- Mas eu quero meu dinheiro agora, também! E preciso voltar pro trabalho!
- Foda-se. - Respondeu Geraldo, indiferente - acerta isso com Arlete.
- Nada disso! Nada disso! Já passei por muito mau bocado! Quero o dinheiro agora, também!
- Tá bom. Então vamos lá em cima, no meu escritório. Eu te dou o cheque. Porra... que alívio... - disse ele. Pouco depois, subiram mais três andares, pelo elevador. Geraldo abriu o escritório com pressa, tinha que viajar. A situação estava extremamente tensa. Roberto ficou parado na porta, olhando, com calor, nervoso. Já podia até mesmo sentir também um alívio. Tudo parecia estar acabando bem, para a felicidade de ambos, quaisquer que fossem as circunstâncias. Aos poucos foi se acalmando. Geraldo havia feito três cheques. Dois para ele, com o valor divido, e um de cinco mil para os traficantes. Geraldo então levantou-se da cadeira, mais calmo. Abriu a janela, para respirar um bom ar, e entregou os cheques a Roberto, sorrindo. Estava já abrindo também o pacote de coca, para aliviar a necessidade, sem medir as conseqüências. E foi nesse mesmo momento que Flavião chegou, entrando pela porta que Roberto guardava, com o 38 apontado para cara dele.
- Eu sabia! Eu sabia! Pirado, seu filho da mãe desgraçado! Eu sabia que essa merda era pra esse cara! - Disse ele entrando na sala e trancando-a. Pegou a chave e guardou-a no bolso. Os dois quase entraram em pânico. Não sabiam o que fazer. Roberto largou os cheques, deixando-os cair no chão, e pôs as mãos na cabeça. Flavião parecia muito nervoso. Olhava os dois com olhos agudos, furiosos, como de quem descarrega raiva há muito contida, quase drogado.
- Calma, Flavião. Vamos tentar chegar a um acordo. Sou seu amigo, rapaz! - Disse Roberto, ainda com as mãos na cabeça. Geraldo estava paralisado com o medo. Não sabia o que fazer. Não acreditava na situação. Estava parado, com os olhos cheios de lágrimas. Havia até mesmo desistido de abrir o pacote de coca.
- Fiz bem em te seguir, safado! Sabia que aquilo era treta! Só podia! Tu é muito burro mesmo, Pirado. Burro! Vir num dia querendo largar de tudo e no outro aparece querendo dois quilos de droga! Burro mesmo! - Disse Flavião, soltando uma gargalhada seca logo depois.
- Calma, rapaz. Eu só queria minha droga... teu chefe impediu seus chegados de me vender... faz o que quiser com esse cara, mas me deixa com minha droga, tá? E me deixa ir embora que eu ainda preciso viajar!
- Calaboca você e não se mexe. Porra, Pirado, seu traidor! Agora tá fodido! Vai encontrar o Vicentinho cara-a-cara. Vai se ver com ele!
- Flavião, por favor, me ouça! Eu precisava de grana! Era só um serviço e só! Nada mais. Nunca mais ia mexer com isso. Ia arrumar trabalho sério! Porra, deixa eu viver minha vida! - Disse Roberto, também desesperado. Sem saber o que fazer.
- Pensa em você, na sua mulher, sei lá...! Sou seu amigo! Sempre fui! - Continuou. Mas não adiantava mais tentar ser falso naquele momento. Já tinha sido franco com Flavião há anos atrás, não adiantava tentar relembrar um laço de amizade.
- Nada! Nada disso! Se Vicetinho descobrisse isso sem mim, quem se fodia era a gente! Eu, Martinho, e os outros. Você pôs tudo em risco, Pirado. Tudo em risco!
- PORRA, EU NÃO TENHO NADA COM ISSO! ME DEIXA SAIR! - gritou Geraldo, em total desespero.
- CALABOCA E FALA BAIXO, SENÃO TE MATO! - Respondeu Flavião, visivelmente descontrolado também.
- Vamos, Flavião, esquece isso, caralho!
- ME DEIXA SAIR, TRAFICA DESGRAÇADO! - Gritou novamente Geraldo, sem medir conseqüências novamente. Mas desta vez as coisas não foram iguais. Um tiro, de susto e raiva, certeiro, no meio da testa. Geraldo caiu na mesma hora, morto, em cima da mesa. O barulho ecoou pela sala. Roberto fez um cara de horror e espanto. Não conseguiu emitir nenhum som. Estava desesperado. Um tiro. Barulho. Muita gente viria, e veria tudo aquilo. Um erro. Flavião estava tremendo, arrepiado com o que tinha feito. Nenhum dos dois conseguia acreditar. Soltou a arma e começou a correr sem pensar. Deu um longo salto pela janela. Roberto apenas assistia tudo, sem reação. Um longo salto de quatro andares. Um salto de mergulhador. Flavião se esmagou morto bem no chão do shopping. Roberto correu até a janela. Flavião estava com a chave. Ele estava preso, com o cadáver de Geraldo junto. Estranhamente, vendo Flavião rodeado de gente lá embaixo, alguns vendo o Papai Noel na janela, Roberto não conseguiu pensar em nada além do porque ele havia feito aquilo, se por desespero ou ignorância da altura do prédio. Depois, tentou pensar em como as coisas poderiam ficar ainda piores. Não conseguiu. Deus devia ser mesmo um grande piadista.




















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