O aviso estava dado: faltavam cinco minutos para que o “Jornal das 8” entrasse no ar. A equipe técnica já estava a postos e, enquanto Alzira Albuquerque dava retoques na sua maquiagem, Tércio Jardim passava uma última vista nos textos que diria naquela noite. Alzira e Tércio apresentavam o mesmo telejornal há três anos e, se dependesse da emissora, jamais se separariam. Curiosamente essa parceria começou por acaso, no triste dia em que o apresentador que sempre fazia par com ela foi atropelado quando se aproximava do estúdio e precisou ser substituído em cima da hora. Tércio, que participava das reportagens externas, havia retornado há pouco de uma delegacia, de onde trazia detalhes da investigação de um assalto ocorrido naquela tarde. De forma inexplicável a dupla deu tão certo que desde aquela mesma noite, e durante todo o dia seguinte, foram tantos os telefonemas recebidos pela produção parabenizando a troca que o pobre acidentado foi obrigado a se contentar com um jornal vespertino cheio de futilidades e com uma audiência muito menor. Embora formassem o casal ideal aos olhos do público, Alzira e Tércio tornaram-se bons amigos, mas jamais lhes ocorreu terem algo mais que isso, mesmo porque as revistas de fofocas e os colegas da televisão eram unânimes ao afirmarem que Alzira vivia um sólido romance com o marido e Tércio, dizem, também estava apaixonado pelo seu.
Tudo pronto para o início e, como de costume, aquela tinha tudo para ser mais uma noite em que pouco mudam as notícias e os personagens continuam sendo os políticos, artistas, empresários e alguns poucos anônimos com seus problemas tratados com um certo excesso de emoção e sensasionalismo. Todos os grandes jornais eram assim e o público espectador era conivente com isso, portanto, não havia motivos para que o “Jornal das 8” fosse diferente. As manchetes do dia em quase nada variavam em relação aos dias anteriores: as declarações feitas pelo presidente em Bogotá, antes de voar para Lima, de onde seguirá rumo a Madri e, por fim, aproveitando que estará na Europa, visitará algumas Universidades da Suiça e da França; mais dois cientistas se declaram preparados para a clonagem humana, baseados no sucesso da experiência com as ovelhas; uma famosa apresentadora de tevê, que já foi a preferida de todas as crianças contou ao nosso repórter que sentiu, pela primeira vez, seu filho lhe chutar a barriga - estranho, se considerarmos que ele completou sete anos na semana passada; a Prefeitura de São Paulo continua instalando os aparelhos para a coleta de pedágio nas principais ruas do Centro da cidade e as manifestações em frente a Câmara dos Deputados continua, embora já esteja vigorando a lei que proíbe a permanência de pedestres nas imediações do prédio...
Os textos e os vídeos se seguiam, sempre respeitando o esquema de revezamento entre os apresentadores, e, estratégicamente, as notícias de menor importância ou que não tinham imagens para ilustrá-las, se intercalavam entre as “verdadeiras” manchetes do dia. Uma delas referia-se a um crime ocorrido em um caixa eletrônico onde um homem foi assassinado após tentar reagir a um assalto. Dois rapazes e uma garota, disfarçados, segundo testemunhas, abordaram-no à saída do caixa e tentaram roubar-lhe o dinheiro retirado e o cartão de acesso. Fugiram após dispararem três tiros a queima-roupa levando os documentos da vítima. Esta nota foi lida por Tércio no teleprompter com a frieza que lhe era característica em tudo o que apresentava no telejornal. Não havia cenas filmadas, nem a identificação da vítima ou dos assassinos. O programa seguiu com a próxima matéria de Alzira e, enquanto a câmera a focalizava em close, alguém da produção entregou um bilhete para Tércio, para que ele completasse a sua notícia, assim que o foco voltasse para ele.
- Voltando ao crime no caixa eletrônico, embora não portasse documentos, a vítima já foi identificada (nesse momento uma foto foi projetada no vídeo): trata-se do jovem empresário Marcílio de Freitas Passos, herdeiro da indústria de calçados “Passos”...
A foto saiu da tela e a televisão mostrava novamente o locutor cuja expressão lentamente se alterava e, pela primeira vez, ao vivo para milhares de pares de olhos atentos, sua voz começou a gaguejar.
- ... Aos trinta e três anos de i... (engoliu seco) ...dade, Marcílio deixa esposa (uma lágrima escorreu de seu olho direito, em pleno close) e dois... filhos... (já não consegue se conter) ... pequenos.
A produção, apesar de estranhar, deixou seguir até o final da nota, quando Tércio desabou em um choro incontrolável. Comerciais de sabão em pó, sandálias femeninas, cerveja, sorvete, além de um pequeno trecho do filme que seria exibido um pouco mais tarde privaram os telespectadores do espetáculo dramático que tinha lugar no estúdio. Tércio abandonou a mesa de onde apresentava o jornal deixando Alzira sozinha para o último bloco, e sem falar com ninguém, saiu do prédio da emissora, a qual não teve notícias suas durante os três dias que se seguiram. O apartamento onde ele morava estava vazio, o telefone dava sinais de estar ocupado o tempo todo, provavelmente deixado fora do gancho, e mesmo a mãe dele, procurada pela equipe, desconhecia seu paradeiro. Foram três dias de baixa audiência e muitos telefonemas curiosos querendo saber o que havia acontecido a ele naquela noite, e até quando Alzira continuaria dividindo as apresentações do jornal com aquele substituto sem graça que eles haviam arranjado.
Tércio voltou. Em reunião a portas fechadas foi decidido em comum acordo entre ele e a direção da emissora que continuaria a fazer parte do “Jornal das 8” e, a pedido dele, nunca mais aquele episódio seria mencionado por ninguém, ou ele se demitiria.
O “Jornal das 8” até hoje é exibido, subiu ainda um pouco mais nas pesquisas de índices de audiência, e, apesar dos boatos, Alzira Albuquerque e Tércio Jardim continuam a formar o casal ideal da televisão. A única mudança sentida e comentada foi a frieza redobrada de Tércio ao apresentar as notícias. A impressão que se tem é a de que nada que venha a acontecer nesse mundo poderá alterar novamente a dura expressão de seu rosto.
