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Contos-->Madeira e Destinos -- 04/02/2002 - 10:03 (Ademir Garcia) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
MADEIRA E DESTINOS




Quando aconteceu o primeiro estalo, fiquei ao longe observando. Nada ocorreu. Meio cismado, afastei-me um pouco mais, uns cinquenta metros talvez.
Continuou aquele toc . . . toc . . . toc . . . . . .,às vezes parecia ter parado. Segundos depois recomeçava, parava de novo uns instantes, como se houvesse hesitação por parte daquele que provocava aqueles sons rudes, secos. Hesitação não, quem sabe cautela.
Não conhecia ainda suas faces, pois sendo minha cautela muito maior, conservara aquela distância. Entretanto, podia notar-lhe o dorso musculoso, um corpo diferente daqueles rapazes que freqüentam academias, somando por volta de um metro e oitenta, que erguia e baixava o machado com a habilidade de um esportista.
De repente, novo estalo, um rangido que rasgou o ar e aquele rapaz forte, usando apenas calças de brim e botinas, gritou; madeeeeeeeira. . .e correu como se fosse uma gazela amedrontada. Com todos aqueles músculos, queimado como café torrado e correndo daquele jeito, ziguezagueando entre as árvores, me fez rir. Ri tanto que me fugiu a respiração.
Vi que passou a correr, olhando em minha direção. Certamente reprovou aquela gargalhada, pois seu olhar parecia austero, intrigado. —De que o senhor está rindo ? Indagou ao tempo que estancou a correria.
Creio que não fosse minha risada, teria continuado mais cem metros.
—Ora, e não é prá rir, tamanho estardalhaço por uma arvorezinha dessas ?
—E o que o senhor entende de madeira ?
—Conheço muitas mesas, cadeiras, tábuas. . .
—Está zombando ? Não vê que estou trabalhando ?
—Pois então continue, não quis atrapalhar.
—Mas quem é o senhor e porque está aqui ?
—Meu nome é Artur. . .
—Ah! Seu Artur, o novo patrão. Me desculpe. Hoje é minha folga, estou cortando madeira prá fazer um rancho. Vou trazer minha esposa. Ufa! O outro patrão havia deixado ..., meu nome é Inácio . . . —Calma aí, meu rapaz ! Que afobação é essa ? Calma.
—Me desculpe mais uma vez, é que faz uma semana que estou aqui sozinho. Fiquei assustado.
Não fosse o respeito e a rapidez com que me reconheceu como seu novo patrão, teria rido novamente. Quase tropeçou nas palavras, no afã de apresentar-se.
Vestiu a camisa com a mesma urgência e num sinal de que esperava algum mando de minha parte, ficou segurando o boné com as duas mãos, olhando sobrancelhas para a árvore que derrubara.
—Pois bem, caro Inácio, continue sua tarefa que amanhã a gente se fala melhor. Estou só dando uma olhadela na propriedade.
Retomei minha caminhada floresta adentro, pois desejava conhecer amiúde a qualidade da madeira que ela guardava. Os madeireiros consideram como um vício da profissão. Enviam um mateiro de confiança para rastrear cada palmo, pedem relatórios com tipos de árvores, qualidade da mata, idade, etc., pagam por isso e depois de comprada, refazem tudo de novo.
Há vezes em que surgem comentários maldosos entre os empregados, . . . vai ver que o patrão não confia no mateiro, . . . quem sabe tem medo de comprar gato por lebre, . . . acho que não conhece madeira e anda pela mata prá gente achar que ele sabe tudo . . . e outras divagações maledicentes.
Já havia me distanciado bastante quando ouvi novamente; madeeeeeeira. . ., seguido daquele ronco que faz uma árvore caindo entre as outras. Depois, silêncio .
O sol já derramava a palidez da tarde quando voltei e Inácio havia atrelado pelo menos uns dez troncos ao trator e os arrastava até próximo da serra.
Estava exausto e me despedi. A cidade ficava há doze quilometros dali. Parecia mais.
A estrada era nada menos que um novelo desfeito, com muitas curvas, subidas e descidas, bastante estreita e por isso tinha que percorre-la a marcha de asno.
No hotel, uma recepção bem mineira.
—Boa tarde!
Depois de um bom tempo de cabeça baixa sobre um pedaço de jornal . . .
—Boa tarde, o senhor deseja um quarto ?
—Como a senhorita descobriu ?
—Por que aqui é um hotel, uai !
—Então tá certo, me arruma um quarto. Creio que dei um tom meio debochado ao pedido. Enquanto folheava o livro de registros, o mesmo tempo que olhou para o pedaço de jornal, ensaiei na intimidade . . . —Então tá certo, uai, me arruma um quarto. Lembro que esbocei um leve sorriso, mas não deixei que entendesse a razão.
—O senhor tá rindo por que eu demoro prá ler. Não ligo. Estou aprendendo ainda.
Me senti na obrigação de redimir e provoquei um estímulo.
—Qual o seu nome ?
—Janaína.
—Que idade tem a Janaína ?
—Dezessete.
—Você está de parabéns. Tem mesmo que se orgulhar de estar aprendendo a ler. Não importa quando, o importante é aprender e eu não ri da sua demora.
—Mas achei que . . .
—Você me desculpe, mas achei graça no uai .
—É costume aqui em Minas.
—Eu já sabia, só achei um pouco engraçado.
—Também não ligo.
—Obrigado.
Peguei a chave do quarto e subi as escadas. Desci. Descuidei-me de que em cidades pequenas e assim bastante interioranas, podem cultivar uais e outros hábitos, menos o de manterem taifeiros nos hotéis que nos ajudem com as malas.
Apesar do longo tempo atinando em empresas de ramos diversos e estar sempre confiante nos negócios que empreendo, ainda assim, aquela foi uma típica noite de principiante. O sono esbarrava de quando em quando nos assuntos da serraria, como se quisesse organizá-los para a manhã seguinte. Era isso, organizá-los de forma a colocá-los em prática logo nas primeiras horas.
Cinco horas, fim da última cochilada.
Tenho por hábito vangloriar-me diante dos amigos, pelo meu bom humor quando me levanto. Não que tenha sido diferente naquele dia, porém, puxei o cobertor até as orelhas e cerrei os olhos por alguns instantes, buscando acalmar a agitação, como se estivesse irado, aquela ira de criança que não quer ir à escola no inverno.
Bastou abrir novamente os olhos e rir em silêncio daquela infantilidade.
—Muito bom dia, Janaína. Cumprimentei-a assim tão entusiasticamente, que desta vez levantou-se de um salto.
—Puxa vida ! Bom dia. Isso é que eu chamo de acordar alegre.
—Acordar bem humorado é costume fácil de adquirir.
—E quando a gente levanta com um problema ?
—Ninguém jamais se levanta com um problema. Basta pensar com bastante convicção na hora de dormir, que ali naquele espaço só cabem você, o colchão, o travesseiro e o cobertor. Pronto, se só coube isso quando dormiu, só vai existir isso quando acordar.
—Pensando bem, acho que o senhor tem razão.
—Tente toda noite até se convencer e, quando não tiver mais dúvidas, sorria antes de sair da cama, para agradecer aquele sono sem problemas. Mesmo um sono curto.
—Vou fazer, com certeza. O senhor vai tomar café ?
—Mas claro ! Quero ver se o tal queijo mineiro é melhor na origem.
Entrei por um corredor que ela me indicou e fui dar numa dessas cozinhas caipiras, com fogão à lenha, forno de barro, panelas de ferro e assim por diante.
Excelente ! Fantástico ! É assim que passei a iniciar meu relato sobre aquele desjejum, sempre que conto essa passagem. Costumeiramente a conto.
Pouco mais de cinco da manhã e lá estava Dona Zoraide, a mãe de Janaína, já com o leite quente e o café num bule de louça sobre a chapa do fogão. Melhor descrever esse bule; pelo tamanho creio que tinha uns trinta centímetros, a alça terminava em caracol e sua cor de um azul bem escuro, todo ornado com minúsculas flores amarelas, vermelhas e brancas. Era lindo e se sobressaía no clarão das chamas.
A mesa era composta de pão caseiro, bolo de fubá, incrível, já estavam assados àquela hora da manhã, doce de leite, doce de abóbora e o queijo fresco, fresquinho. Dona Zoraide não se fazia de rogada. Derretia pedaços de queijo na chapa do fogão e os entregava aos hóspedes, a maioria vendedores em trânsito, arrancando suspiros e novos pedidos. Circulava entre as mesas com indisfarsável orgulho.
O horizonte ainda não definia céu e terra, porém já mostrava pequenas fagulhas vermelhas, quando cheguei à serraria. Inácio estava lá, plantado do lado de dentro e num único gesto abriu os portões.
—Bom dia seu Artur. Cumprimentou-me entre sério e desenxabido.
—Bom dia Inácio, por que em pé tão cedo ?
Dissertou que aproveitava as horas da madrugada e do fim de noite, para executar pequenas tarefas como carpir em volta do escritório, verificar se os equipamentos estavam em ordem, se havia bastante água nas caixas e, virando-se bruscamente, apontou para o local onde iniciara a construção de sua casa.
—O que o senhor acha do lugar ?
—Muito bem escolhido. Um pouco acima do nível da propriedade, facilita a vigia.
Causou-me boa impressão, de certa forma esperada, pois sua dedicação havia sido comentada pelo antigo proprietário e também que estava ali há pelo menos cinco anos e que se casara há poucos dias.
Duas semanas depois, Inácio trouxe a mudança com a ajuda dos colegas.
Domingo, por volta das dez horas, um dos rapazes veio à portaria do hotel, dizendo que haviam organizado a casa do Inácio e que ele fazia questão da minha presença. Estava fazendo um churrasco prá comemorar. Fui logo em seguida.
—Seu Artur, esta é Elisa, minha mulher.
Ficou um pouco encabulada com minha presença, mas demonstrou desembaraço para uma moça da sua idade. Dezoito anos, não mais. Ofereceu uma cadeira e pediu que não reparasse, pois era tudo muito simples . . .
Relacionava-se com facilidade, uma vez que conhecia as esposas dos demais.
A simplicidade das coisas e a leveza dos assuntos transformaram aquelas horas numa tarde muito agradável. Conversavam e riam muito das histórias dos lenhadores, dos serradores e, como se desejassem fazer de meu conhecimento, contavam de bom tom sobre os donos de serrarias que se deram mal na região. Alguns por falta de espírito empresarial, outros por desconhecimento da atividade ou pura ineficiência. Pior mesmo foram os casos de gente sem escrúpulos que aplicaram golpes nos lenhadores. Até os proprietários das matas caíram em muitos desses golpes.
Inácio era o único que não falava sobre o assunto. Falava mesmo pouco.
No decorrer do dia fui conhecendo mais sobre ele. Morava há cinco anos na propriedade, porém não era da região. Fora trazido do norte do Mato Grosso pelo ex-proprietário que teve outra serraria naquelas bandas. A esposa sim, era dali.
Passavam os dias dentro da normalidade, se podemos chamar assim, de qualquer serraria em plenas atividades. Compra-se matas e contrata-se lenhadores e transporte ou toras a serem colocadas na serraria, conserta-se uma máquina hoje outra amanhã, ouve-se um funcionário que está com problemas, enfim, passam-se os dias.
Muitas vezes me deparava com o Inácio na portaria do hotel, em horários mais diversos, trazendo situações ou atendendo algum chamado meu.
Elisa teve um filho. Tive que usar de bastante sutileza para demovê-los da idéia de colocarem meu nome no garoto, . . . porque eu era muito bom prá eles, porque achavam meu nome bonito, igual ao daquele rei famoso, da história da távola redonda. Insisti que não poderiam definir por aquela direção, pois poderiam magoar os avós, os tios e assim por diante.
Tércio Matias, foi batizado com o primeiro nome de cada avô.
Em diversas oportunidades me ausentava por semanas inteiras, para tratar de outros negócios que possuía e nessas ocasiões o Inácio e o Orlando dividiam a tarefa de administrar o funcionamento da empresa, auxiliados pela Zélia que, além de cuidar da parte do escritório, conhecia bastante sobre serraria.
Numa dessas ausências, por telefone soube que o Inácio precisou fazer uma viagem, disse que era urgente e que retornaria em dois dias. Uma semana e não dava notícias.
Quase que diariamente eu procurava informações e nada do tal rapaz retornar.
Quando no domingo cheguei ao hotel, já subindo as escadas, voltei os olhos para o balcão e percebi que era Joana, irmã mais nova de Janaína quem havia respondido ao meu cumprimento.
—Ora, se não é você trabalhando, hem Joana !? Folga da Janaína ? Indaguei, mais por curiosidade do que casuísmo.
—Não, minha mãe disse que ela está viajando . . .
—Puxa ! Mas desde quando ? Devo ter colocado a pergunta com tanto ímpeto, que a menina ficou atônita por alguns segundos.
—Ah, seu Artur, acho que já faz uns dez dias.
—Boa noite, Joana. E me recolhi.
Acordei mais cedo que de costume, pois pressentia que no desjejum o assunto iria acontecer meio ao pé da orelha.
—Bom dia dona Zoraide.
—Bom dia seu Artur.
Do jeito esperado, dona Zoraide chegou perto da mesa para me servir de queijo requentado na chapa e indagou baixinho se eu tinha conhecimento do paradeiro do Inácio. Tinha um bilhete da Janaína ...
No caminho da serraria, removi na lembrança que estive perto de perguntar ao Inácio, porque em assuntos corriqueiros ele não me telefonava em vez de vir ao hotel. Foram várias as oportunidades que me fugiram. Acho que inconscientemente eu desejava não ser indelicado, pois ele podia estar usando essas escapadinhas apenas para um trago ou um joguinho na cidade.
Não encontrei motivos para rodeios e fui ao assunto.
—Como vai Elisa ? Alguma notícia.
—Ainda não seu Artur. Ando muito preocupada, até já escrevi para a casa do pai dele e ninguém respondeu. Prá outra serraria onde ele trabalhou também.
Contei-lhe sobre a conversa com dona Zoraide.
—O safado, será que nem pensou no filho ?
Entrou na casa e logo saiu com duas malas e o garoto engalfinhado na cintura.
Acertei com ela seus direitos e os do Inácio, pois previa um só desfecho.
Assinou os papéis com a Zélia, recebeu e partiu.
Administrei por mais quatro anos a serraria, até vendê-la a uma empresa de reflorestamentos da vizinhança.
Jamais soube do paradeiro de Elisa, Inácio e Janaína.

Adega/97



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