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Contos-->SHIRLEY LACOMBE -- 05/02/2002 - 00:14 (Edson Rodrigues) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A noite era um convite para uma caminhada. O clima abafado do apartamento às vezes era atenuado por uma deliciosa brisa que entrava pela porta escancarada do terraço, mas não chegava a formar a corrente de ar desejada, apesar da janela da sala estar totalmente aberta. Uma bermuda, um par de chinelos velhos, uma camiseta sem manga... ah, claro, o maço de cigarros, algum documento pra qualquer eventualidade, e lá estava eu, elevador abaixo, em busca de absolutamente nada.
O caminho era o de sempre: as ruas que circundam o prédio onde moro, as quais eu pouco presto atenção pela rotina do dia-a-dia, e mal sei os nomes. Uma casa em estilo árabe aqui, outra com uma imensa imagem de Nossa Senhora na lage, uma pizzaria nova à direita (ou eu é que nunca a havia notado), um bêbado sentado na calçada gritando uma canção incompreensível, um vira-lata revirando um saco de lixo, uma carteira caída na esquina. Virei a esquina, dei mais três passos e parei. Pensei logo na possibilidade de ser uma carteira perdida, ou roubada e jogada ali.
Voltei, dei uma boa olhada em volta - para ver se não havia alguns garotos por ali prontos para puxarem um barbante quando eu me abaixasse - e apanhei o objeto. Parecia mais roubado do que perdido. Muito pouco havia dentro dela: para não dizer que estava sem dinheiro, encontrei enfiada em um cantinho uma nota de um real dobrada quatro vezes, parecendo mais superstição do que saldo disponível; um canhoto de entrada de teatro escrito no verso apenas Ademir - fone: 752-8327 e uma foto, colocada atrás de um plástico transparente, com uma bela pose de Shirley Lacombe, com a mesma exuberância que costuma apresentar na tevê e no cinema. Quem não a conhece e não a cobiça? Não há adolescente que ainda não a tenha invocado em seus momentos de solidão, nem marmanjo que não a inclua uma vez ou outra nos seus sonhos.
Sentei num degrau em frente a uma loja fechada e viajei no tempo. Lembrei dos meus treze anos e do tesão que eu sentia por Denise Grandchamp, a Lacombe do meu tempo. Assim como todos os meus colegas de colégio e os desconhecidos de todos os outros colégios, eu também carregava uma foto da mulher mais desejada da década. Todos nós achávamos que um dia a namoraríamos, mesmo sabendo que ela era uns quinze anos mais velha, ou melhor, mais experiente do que nós. Voltei a pensar na carteira encontrada e achei que realmente havia sido roubada e abandonada com as coisas que não interessaram ao ladrão. Talvez não tivesse muito mais que isso, já que a existência daquela foto me fazia crer que pertencia a um garoto cheio de espinhas no rosto e um longo futuro pela frente. Quase joguei-a de volta ao chão, mas num impulso coloquei-a no bolso da bermuda e voltei para casa. Com o ventilador voltado direto para o meu corpo estendido na cama, com alguma dificuldade, enfim, adormeci.
O sábado trouxe muito sol e muita preguiça, de maneira que, após um banho quase frio, optei por passar a manhã inteira vadiando pela casa com a televisão ligada mas raramente prestava atenção no que nela era mostrado. Em uma dessas espiadas um pouco mais demoradas, um trailer de uma novela me mostrava novamente Shirley Lacombe, linda como na foto que, aliás, sufocava dentro da carteira que desde o dia anterior permanecia guardada no bolso da minha bermuda. Era uma tórrida cena de amor em que Shirley era agarrada por um ator (cujo nome eu não sei) e tinha sua boca beijada durante todo o trailer. Meu primeiro pensamento, naturalmente, foi o mais lógico: Esse sujeito ainda recebe um salário para fazer isso? Quase que mecanicamente peguei o papel com o nome e o número de telefone que estavam na carteira. Mesmo pensando que quando documentos são roubados, quem afirma tê-los encontrado passa a ser o suspeito número um, resolvi arriscar:
- Sim, é da casa do Ademir, mas ele não está (disse uma voz de mãe do outro lado da linha).
Contei a ela o episódio da minha caminhada na noite anterior e ela confirmou a perda, sem saber exatamente o que havia acontecido. Pediu meu telefone prometendo que assim que chegasse, Ademir me procuraria. Tive um certo receio de fornecer o meu número, achando que talvez estivesse me envolvendo em alguma fria, mas já que eu havia começado com isto, resolvi ir até o fim.
O rapaz me ligou mais tarde e, para a minha surpresa, tinha uma voz mais adulta do que eu imaginara. Comentei o pouco que havia na carteira e soube que vários documentos foram tirados de lá. Mesmo assim, Ademir mostrou-se interessado em recuperar o que sobrou, alegando serem coisas importantes para ele. Marcamos um encontro à noite num barzinho, no centro da cidade, por ser mais fácil para ambos e, como eu sempre invejei cenas vistas na tevê ou no cinema, me adiantei: eu estarei usando uma camisa vermelha com dois bolsos brancos (era a única que eu tinha que dificilmente poderia haver outra igual no mesmo recinto).
Como atualmente quase não tenho programas adiáveis nas noites de sábado, não me custaria nada comparecer e conhecer pessoalmente a pessoa que dava tamanha importância a uma nota de um real bem dobrada, seu próprio telefone em um velho pedaço de papel e uma foto igual a tantas outras de Shirley Lacombe (já que a própria carteira não era tão especial que não pudesse ser substituída).
Dez minutos antes do horário combinado eu já estava no “Chopping Center” aguardando por sua chegada, já que só eu dei uma referência para ser encontrado mais facilmente. Não sou de me atrasar nem de tolerar atrasos, muito menos de homem, e ainda por cima, desconhecido. Prometi a mim mesmo que assim que terminasse aquela taça eu iria embora, não sem antes deixar aquele objeto que não me pertencia no primeiro cesto de lixo que encontrasse.Quando chamava o garçom para pedir a conta, um burburinho tomou conta do bar e, em meio a assobios e palavras menos educadas, ela se aproximava cada vez mais da minha mesa. Ao ficarmos frente a frente ela sorriu e perguntou: Você é o Sérgio? Respondi com um aceno de cabeça embasbacado, e antes que eu dissesse qualquer coisa, completou: Prazer, eu sou Shirley. Shirley Lacombe.
Após sentar-se e pedir um coquetel, pediu desculpas pela ausência do marido que, sendo médico, havia recebido um chamado urgente e não pode deixar de atender. Para não ficar mudo o tempo inteiro, talvez indelicadamente, enquanto lhe entregava a carteira, comentei a cena da novela que havia visto naquele dia, argumentando ter sido ela o motivo indireto de eu ter telefonado, julgando a aparente pequena importância do que o ladrão havia deixado. Mais uma vez ela sorriu (sorria o tempo todo, talvez devido a minha expressão idiota de vê-la ainda mais bela de perto, dividindo a mesma mesa) e me explicou o que há muito eu já sabia: as coisas têm graus diferentes de importância para cada um.
- Veja aqui, por exemplo. Meu marido, quando tem seus rompantes de romantismo, resolve guardar tudo o que vê pela frente que por algum motivo o lembre de nós dois. Quando nos conhecemos à saída de um teatro onde eu estava trabalhando e ele fora me ver, foi neste pequeno pedaço de papel, canhoto da entrada, que Ademir me deu seu número de telefone. Em uma das nossas brigas eu o devolvi alegando não querer nada que me lembrasse a sua existência. Para me ofender e me acusar de egoísta, disse que guardaria, afinal, um dia eu poderia montar um museu só com restos das minhas conquistas. O dinheiro dobrado foi o troco que recebemos naquela mesma noite após tomarmos uma água de coco. Ademir brincou comigo dizendo que iria guardá-la para nos dar sorte. Se não desse, pelo menos garantiria dois cafezinhos em épocas de crise. Quanto a foto, fala por si só. Você leu o que eu escrevi nas costas dela? Respondi que não enquanto ela tirava a foto de trás do plástico e entregava para que eu lesse:
“Ademir, essa foto é para você, embora não fosse necessária, já que o original lhe pertence. Um beijo enorme da sua Shirley”.
Saí do “Chopping Center” achando curioso ser olhado por todos com uma indisfarçável dose de inveja. No caminho eu pensava: Ela é linda, mas é uma pena que há trinta anos o marido de Denise Grandchamp não tenha perdido os documentos!


Edson Rodrigues
01/fevereiro/1998
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