VIII
Vinte anos antes…
"Mais uma dose? É, claro que tô a fim…"
A picada não dói mais. Em segundos, ela alcança meu sangue, minha alma. Unhhhhh, respiro lentamente. A sensação é boa. Fecho os olhos e o apartamento imundo envolto numa escuridão sinistra fica para trás. É o mais próximo que posso chegar de meu Deus. Ele não fala comigo mas eu sei que Ele me vê. Ali, deitado, sentindo agora a loucura tão agradável, solene.
Tento levantar, não sei por quê, e caio novamente naquela escuridão. Não há mais o meu Deus me analisando. Não há nada e ninguém.
Ela me consola e toca o meu coração com força. Vou explodir num orgasmo surreal. Meus movimentos não existem e nas paredes, as imagens se distorcem. Que paredes? Eu não estava caindo? Ela me confunde mas eu preciso de mais uma dose. O efeito já não é mais o mesmo da primeira vez. Todos lembram da primeira vez. A minha não faz tanto tempo. Lembro que tocava Ramones numa vitrola do vizinho. Foi bom, ahhh, foi bom. Nem meu Deus era capaz de me proporcionar aquelas sensações.
A picada não dói mais. Em segundos, ela alcança meu sangue, minha alma. Agora, sinto um frio imenso. Acho que posso voar. Minhas asas (onde estão minhas asas?) não seriam necessárias. Posso voar novamente. Lúcifer me olha com carinho. Um olhar fraternal. Parece empurrar o êmbolo. Uhnnhhhhh. A calmaria se dispersa e como num temporal sem aviso, estou confuso e como nunca antes, assustado. Meu coração sai pela boca. Seguro ele com cuidado, não quero machucá-lo. Ele bate nas minhas mãos. Fede como bosta. Engraçado, meu coração é um monte de merda. Aperto com força e ele escorre pela minha mão.
Enquanto isso, ela faz seu serviço com perfeição. Pura, refinada, da melhor qualidade. Sinto a alma vazia. Vi, um dia num puteiro, um cartaz velho e desbotado que dizia que os anjos não têm alma. Quanta crueldade. Claro que temos. Veja a minha agora. Ela voa sozinha, por aí, sem medo de Deus ou do Diabo. Sem pensar nos trabalhos que deveriam ter sido feitos.
E aquela gota intermitente, persistente, aborrece. Fecho a torneira. E aquela gota intermitente, persistente, aborrece. Fecho a torneira. E aquela gota intermitente, persistente, aborrece. Fecho a torneira. E aquela gota intermitente, persistente, aborrece. Fecho a torneira. Um vulcão explode no meu quarto. Ele bate nas minhas mãos. A picada não dói mais. Ela alcança meu sangue, minha alma. Agora, sinto a liberdade, sinto a prisão.