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Contos-->Socorro Involuntário -- 05/02/2002 - 09:22 (Ademir Garcia) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


Era uma daquelas manhãs escuras de céu nublado e com certeza a chuva cairia torrencialmente. Da janela se notava que as luzes continuavam acesas pela cidade como se o dia não tivesse ainda rompido a barreira da madrugada.
Entanto as pessoas já se dispunham pelas calçadas com suas tarefas mais variadas, naquele vaivém afoito que nem mesmo notavam o ruído e o movimento dos veículos pelas ruas.
Creio que já passava das oito horas e pela fresta da vidraça entrava um fio de vento gelado, que me fez repensar a necessidade de levantar. Cobri a cabeça e fechei novamente os olhos, sentindo aquele prazer enorme da preguiça, principalmente em dias assim tão frios.
Já não tinha mais sono. Aos poucos os pensamentos foram tomando conta de mim com tanta intensidade que, em certo momento, acreditei ter balbuciado alguma coisa a respeito disso ou daquilo que andava em minha mente.
Súbito, um desses assuntos me fez saltar da cama como se faz um cabrito montês. Nem me lembro mais se a água do banho era quente ou fria e se fiz meu desjejum naquela manhã.
Saí para a rua e pude notar que, muitas vezes, o clima nos trapaceia com seus falsos alarmes. Quase não havia mais nuvens e um sol de montanha pairava viés sobre a cidade. As pessoas ainda estavam agasalhadas, certamente porque o jeito automato com que resolvem seus problemas não lhes permite notar mudanças rápidas do tempo.
Entrei no carro e enquanto me dirigia ao escritório, procurei me convencer que, apesar de ser um assunto da mais alta importância, não poderia deixar que me desviasse a atenção do trânsito. Impossível. Teve momentos que não reconheci o caminho, outros que entrei em ruas erradas e até mesmo num sinal, tive que frear bruscamente para não bater noutro veículo que havia parado à minha frente.
Venci aquela pequena batalha e cheguei ileso ao escritório.
Alzira estava prostrada na porta, agasalhada como todas as pessoas que vi pelo caminho, sinal que também não tinha notado a mudança.
Enquanto abri a porta, cumprimentei-a e ouvi sua resposta meio de caserna; —Bom dia !
Não havia rispidez, mas apenas o jeito que ela tinha de demonstrar que era eficiente até de manhã, até mesmo para cumprimentar os outros.
Aconselhei para que tirasse o casaco e notei-lhe certa satisfação, pois um leve sorriso denunciou que ignorava o calor que sentia.
—Por que veio ao escritório hoje ?
—Imaginei que você esqueceria sua chave.
—Está mentindo. Ainda ontem o ouvi dizer ao telefone que viajaria esta manhã.
—O tempo estava feio quando acordei.
—Não era motivo para vir trabalhar. Hoje é sábado e todos os clientes acham isso ótimo, só de se verem livres do senhor. Por que veio ?
Ri muito do seu senso de humor, pois sabia que prá ninguém mais ela baixava a guarda, nem mesmo aos colegas de trabalho. Tinha muita ética.
Lembro que abordei diversos assuntos, na tentativa de burlar sua pergunta. Alzira trabalhava há muitos anos conosco e eu sabia que era difícil demovê-la antes que sua curiosidade fosse atendida.
—Por que veio ? Insistiu.
—Pois bem, vejo que vai ser difícil fugir. Há quanto tempo trabalha prá mim, Alzira ?
—Doze anos.
—Acha que me conhece um pouco ?
—Sei exatamente quando vai ficar gripado, dois dias antes.
—Então responda. Você acredita que eu seria capaz de ferir alguém, . . . ofender alguém, apenas prá conseguir resultado melhor em algum negócio ?
—Sei o que quer dizer. Já respondeu por que veio ao escritório.
—Como assim ?
Fez um longo silêncio e depois insistiu para que fosse descansar. Afirmou mesmo que na segunda feira tudo estaria mais claro, que o assunto seria resolvido sem traumas.
Fiquei imaginando que as secretárias sabem mais do que devem, que ficam bisbilhotanto os funcionários, remexendo assuntos alheios, aquela coisa de ficarem ouvindo atrás da porta . . .
—Vá descansar. O senhor está tenso.
Outra vez aquele tom de voz militar. Anui sem ressalvas e saí.
Voltei em casa, pus uma roupa mais esporte e viajei para meu sítio, mais de 300 quilometros interior adentro.
Sozinho na estrada, ouvia músicas, trocava por notícias, programas de sorteios comuns em emissoras do interior, mas nada conseguia substituir aquela interrogação. Estava intrigado pela rapidez com que Alzira demonstrou conhecer o assunto. Pior, ainda, era remoer a idéia de que nem mesmo lhe argüi para falar sobre dele. E se fosse algum caso diferente, algo de menos importância, já que também não lhe falei claramente o que me atormentava ?
Cheguei a conclusão que era melhor esperar até segunda-feira.
Foi um fim de semana sem grandes atropelos. Caminhei bastante, fiz longas cavalgadas e até arrisquei alguns mergulhos, apesar da água fria.
Ainda na noite de sábado, alguns amigos foram para um joguinho de baralho, tomamos uns drinques e jogamos muita conversa fora. Foi bom, porque assim que partiram, consegui dormir um sono daqueles que até os anjos fazem silêncio. Psssiu !
Com o farfalhar das árvores, quase não ouvi o caseiro que insistia na janela.
—Seu Marcos . . . seu Marcos . . .
—Bom dia, seu Genézio, já estou acordado.
—O senhor me desculpe, mas sei que gosta de acompanhar a ordenha e já são seis horas . . .
Sempre que estou no sítio, gosto de tomar meu leite no curral, quentinho, ordenhado numa caneca bem grande, dessas manias que se carrega desde a infância.
Depois, aproveito prá sentar sobre a porteira e enquanto o seu Genézio vai tirando leite, vamos colocando os assuntos do sítio em dia. É nessa hora que acontece a revoada das garças, em vários bandos, pousando espalhadas pelas pastagens. Figuram pequenos chumascos de algodão jogados sobre um tapete verde.
Também nessa hora, o sabiá e o bem-te-vi intercalam seus gorgeios melancólicos, cuja beleza deixa os outros sons do campo como fossem um estribilho de fundo. Junto, minha alma se reveste de ternura.
Fiquei ali sentado por mais de hora trocando impressões com seu Genézio. Ele engalfinhado entre vacas e bezerros, enquanto eu me deliciava com aquela manhã bucólica, de céu límpido, que ia aos poucos sendo invadida pelo ouro do sol. Aos domingos, a alegria do campo é silenciosa.
A felicidade que se meteu por minhas entranhas em certo momento, não invalidou o prazer de dois dias atrás, aquele da preguiça nas manhãs geladas e chuvosas.
Cumpridas algumas tarefas corriqueiras e após uma refeição farta em quitutes caseiros, o habitual cochilo na rede.
A tarde ainda se arrastava pelo meio quando acordei, me sentindo um pouco estafado daquela calmaria. Meu inconsciente não abandonou um só instante o assunto do escritório, as palavras cheias de entrelinhas do Sr. Macedo, a Alzira com sua maneira pouco discreta de querer mostrar eficiência e, por fim, apesar da minha tentativa de acreditar em possível engano, a atitude insuspeita de meu sócio Eliseu.
A viagem de volta não teve duração. Um hiato.
Acordar cedo é um hábito que acompanha minha família por gerações. Mas naquela segunda-feira tenho certeza que foi mais impulso que tradição.
Ainda assim, tive a impressão de haver perdido a hora, pois chegando ao escritório notei que o expediente já funcionava há algum tempo. Eliseu não era do tipo madrugador e pela disposição de papéis na mesa de Maria Lucia, sua secretária, certamente estava em plena atividade.
—Bons dias !, desejei indistintamente aos funcionários, sem me deter. Responderam ao meu cumprimento quase em uníssono.
—Maria Lucia, por favor, diga ao Eliseu que gostaria de falar-lhe em minha sala.
—Sim senhor.
—Alzira, providencie café e por favor, traga-me a pasta de documentos do Sr. Macedo e o projeto Áqua-aquarela que está com o engenheiro José Luis.
Eliseu entrou em minha sala descontraído.
—Bom dia, como foi o fim de semana.
—Bem, estive no sítio e descansei. E você ?
—Fiquei por aqui e a convite da Alzira aproveitei para desfazer um pequeno mal-entendido.
—Me explique isso, por que na sexta-feira tive uma conversa com o seu Macedo e ele me pareceu muito preocupado e cheio de evasivas.
Nisto entrou Alzira trazendo a papelada e café.
Com o projeto aberto sobre a mesa de reuniões, Eliseu pormenorizou.
—Quando fizemos o primeiro contato com o Sr.Macedo, consultei-o sobre a possibilidade de nos vender as duas glebas. A gleba A de cinco hectares assentaria o projeto, conforme está. Na gleba B de um hectare, construiríamos estacionamento para que ele próprio explorasse comercialmente e com isso deixaríamos de ceder-lhe os cinco por cento do empreendimento, como parte de pagamento da gleba A. Lembra-se ?
—Claro que me lembro, como também me recordo que ele recusou.
—Como o projeto já está pronto e ainda não assinamos o contrato de intenções, dei-lhe a entender que, caso não aceitasse, desistiríamos da sua área, pois o proprietário vizinho aceitaria.
—Caro Eliseu. Quando achar que pode conseguir melhor resultado blefando, peço que me ponha a par do assunto. Quando tive a idéia do Áqua-aquarela, consultei todas as áreas possíveis naquela região e descobri que a tal área vizinha pertence a, nada menos, que o pai do Sr.Macedo.
—A Alzira me contou e gentilmente se ofereceu para me acompanhar até sua casa e desfazer o impasse.
A partir daí, discorreu que se desculpou com veemência, esclareceu que eu desconhecia sua atitude e que tomou a precaução de levar-lhe organograma financeiro, projetado por especialista, onde demonstrava que os resultados futuros praticamente se equivaleriam.
Disse mais, que o Sr.Macedo lhe assegurou estar convencido sobre sua boa intenção, apesar de ter blefado para conseguir prevalecer a idéia e que, de qualquer modo, não aceitaria mudanças na transação sem minha presença.
Ainda assim, asseverei; —Poderia ter me evitado esse constrangimento.
—Insisto que me desculpe.
—Claro.
Encerrado o assunto, Eliseu saiu. Meio instintivamente fui até a janela e afastei as cortinas para abri-la. Tive a sensação de haver jogado uma brisa sobre o calor daquela discussão.
Ao voltar-me foi que dei conta da presença de Alzira que estivera ali o tempo todo e juntava os papéis para devolvê-los ao arquivo.
—Muito obrigado. Foi inteligente da sua parte evitar que nos víssemos sábado de manhã. E também por alertá-lo a tempo.
—Faz parte do meu trabalho.
Quando se foi e fechou a porta, voltei para a janela e fiquei olhando para os prédios ao longo da rua. Fui imaginando os mal-entendidos que pudessem estar ocorrendo naquele infinito de escritórios à minha frente. Pensei em quantos deles seriam solucionados pela indisplicência de uma secretária.
Peguei o paletó e sai para almoçar.




AdeGa/97
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