O rangido do portão se abrindo tira a atenção de Guilherme do jornal. Sentado na poltrona da sala, repassa em mente o sermão preparado para a filha de quinze anos que desde manhã não voltava para casa. Na cozinha, Dona Alice, lavando a louça da janta, sua fria de medo de outra discussão daquelas. A porta é aberta.
- O que faz de mãos dadas à esse vagabundo aqui em casa, Sônia?
Guilherme há seis meses atrás tivera uma das visões mais aterrorizantes de sua vida. Ao voltar do trabalho, viu a filha beijando ardentemente um rapaz que aparentemente tinha sua idade, em frente ao colégio que estuda. Jamais permitiria à sua garotinha, tão nova e imatura, namoro com um jovem de cabelos compridos, tatuagem de caveira no braço, piercing no nariz e camiseta preta estampada com demônios. Uma menina que ainda vestia longas saias floridas, gostava de cantora romântica americana antiga e mau penteava os cabelos negros e compridos.
Ao ver que sua criança entrou em casa com o mesmo garoto, levantou-se num pulo, olhos arregalados e punhos cerrados. Imagens antes normais em sua mente, agora ganhavam outros significados. Os suspiros da menina pela casa, horas trancada no quarto, ou no telefone, diversas visitas às amigas. Julgava ser fase.
Com o grito do marido, Alice correu pra a sala, enxugando as mãos molhadas no avental. O filho mais velho, Gustavo, saiu curioso do quarto. Até o gato da casa chegou ao aposento, e sentou-se em um canto.
- Pai, esse é o Paulo.
O coração de Dona Alice pareceu parar. O lindo sorriso de sua filha, seus olhos brilhantes. Conhecia bem essa expressão, e seus instintos a assustavam.
- Olá!
Paulo aparentava estar muito contente também. Parecia não se intimidar com o olhar furioso do homem plantado em frente ao sofá, com o rosto cada vez mais vermelho. Gustavo o olhava com indiferença, e uma pitada de ciúme. O gato rompeu o curto silêncio com um miado.
- Escuta aqui, pivete. Não pense que vai ficar com minha filha! Eu nunca vou consentir com isso e ela nunca mais sairá do quar...
- Pai, estou grávida.
- Eu me casarei com sua filha.
Nem com o baque surdo da queda do corpo inconsciente de Dona Alice o casal parou de sorrir. Guilherme sentou-se trêmulo na poltrona, pôs as mãos no rosto. Gustavo num pulo foi acudir a mãe, levantando sua cabeça e abanando-a com a mão. Os dois se olharam apaixonados, dando a impressão de que viviam um conto de fadas alheio a esse mundo. O gato pôs a cabeça entre as patas, deitando-se. Não desejava romper o silêncio.
Atônito, a cabeça de Guilherme esvaziou-se por completo. Por cerca de um minuto, esqueceu até mesmo que existia. Então, palavras e formas começaram a girar diante de seus olhos. Conflito ético e pessoal, valores humanos e profissionais. Uma curta vida que acompanhou inteira de perto esvaindo-se de sua mão. Ergueu a cabeça e mirou sua filha dos pés à cabeça, parando rapidamente os olhos na barriga.
- Vai tirar, né? Eu pago! – disse Guilherme em tom melancólico.
Os jovens sorriram um para o outro. Depois de um gemido, Dona Alice começou a acordar do susto.
- Não se preocupe, Seu Guilherme. – disse Paulo – Um primo está para me colocar na empresa de assistência técnica que ele trabalha.
- Eu venderei miçangas, brincos, pulseiras e colares até conseguir dinheiro para montar uma lojinha. Aprendi a fazer artesanato com minhas amigas faz algum tempo, estou ficando boa nisso.
- Meu pai vive de aluguel de casas, e tem uma desocupada que emprestará para nós. Fica perto daqui e poderão...
- Acham que vou permitir isso!?
Num salto, o homem levantou-se da poltrona e foi como um touro brabo em direção aos dois. Eles não se moveram. Dona Alice sufocou um grito de pavor, esperando o pior. Gustavo olhava a cena ansioso, ansioso para ver mais confusão. O gato se encolheu mais no canto onde estava.
- Eu nunca esperaria uma pouca vergonha dessas de você, Sônia. – os olhos do pai lacrimejavam de raiva e amargura – Se deitar com esse marginal!
Começou então com o velho discurso do homem que fez tudo por um filho, e só recebera ingratidão. Em meio a isso, recordava em voz alta a vida da menina. Seus primeiros passos, as noites de insônia e preocupação quando adoecia, o desespero quando abriu a testa ao cair da gangorra... Guilherme e Dona Alice não puderam conter as lágrimas, e o jovem casal sorria.
- Eu reconheço o pai maravilhoso que sempre foi para mim. Lembro de todos os seus sacrifícios e dedicação, sou muito grata! E é por essa gratidão que vim correndo contar-lhes essa maravilhosa notícia. Encontrei o homem que sempre quis, e desejamos ter uma vida juntos. E quero que estejam por perto, e dêem o consentimento à nossa união. Afinal, gosto demais de vocês para fugir com Paulo, assim como o senhor e a mãe fugiram do avô, sem antes tentar conversar com eles. Sei que a vida seria dura no começo, no caso de termos que ir para outra cidade para continuarmos unidos e criar o seu neto, mas certamente o que sentimos um pelo outro nos manterá fortes, e venceremos todas as provas, mesmo que infeliz por não ver mais vocês.
O silêncio na sala parecia ganhar forma, se não fosse por rápido ronronar debochado do gato, seria absoluto. Guilherme e Dona Alice empalideceram, e entreolharam-se. Gustavo coçou a cabeça, e deixou escapar um sorriso de lado. Apesar dos bons modos de Sônia, aquelas palavras foram justificadamente interpretadas como ameaça. Todos da casa sabiam que a garotinha que cumpriu a promessa de quebrar o televisor com um martelo, por não deixarem-na acampar, sem se preocupar com a surra futura, teria coragem para deixar sua casa para viver com o rapaz, mesmo que fosse na rua. Sempre fizera o que queria, sem importar-se com as conseqüências. Mas nesse caso, o impedimento privaria a todos da presença da moça.
Guilherme se acalmou, e lembrou que na vida nunca foi santo. Olhou para Paulo de jeito diferente. Estava se conformando. Com a confiança com que chegaram para tratar de assunto dessa seriedade, não se surpreenderia se tivessem mais argumentos preparados.
Nem ele, nem Dona Alice desejariam que sua filha caçula fizesse a mesma loucura que fizeram para poderem se amar. Ir para cidade estranha, trabalhar duro para ter uma miséria de comida na mesa, e sofrer por estarem longe dos pais que até então não tinham coragem de visitar.
Com antecipada saudade, sentiu que a vida lhe tirara sua filha rápido demais. Olhou melancólico sua esposa, e para sua surpresa, notou que ela sorria. Intrigado, deixou o silêncio perdurar alguns instantes mais na casa. Então, levantou a cabeça, e respirou fundo.
Três meses se passaram como um raio, e o dia aguardado havia chegado. O casamento mais barato e lindo que muitos tiveram notícia.
No bosque, toalhas estendidas sobre a grama, com biscoitos, chás e alguns pratos leves prontos. Uma pequena mesa, um livro aberto.
Os convidados somavam cerca de trinta pessoas. Ao invés de ternos e jóias, longos cabelos soltos, roupas largas coloridas. Os avós tanto do Paulo e de Sônia estavam vestidos impecavelmente, em contraste aos outros convidados, assim como os pais dos noivos. Guilherme e Dona Alice sorriam ao ver os pais que compareceram ao casamento. Parentes e amigos deles recusaram-se abertamente à aceitar o convite. O juiz de paz, também em trajes elegantes pretos, barba à muito por fazer, óculos escuro e cabelos compridos encaracolados e maltratados.
Paulo, o noivo, não conseguia esconder o nervosismo. Balançava de trás pra frente, com os olhos fixos na curva da trilha do bosque. Seus trajes, os mesmos de sempre.
Sônia dobrou a curva do bosque, acompanhada de duas amigas, e o gato que caminhava em seus calcanhares. Os que a esperavam, estavam admirados com a beleza que viam.
A alegria parecia fazer seu rosto brilhar. Sem maquiagem alguma para esconder uma face perfeita. Os longos cabelos negros balançavam com o vento do caminhar. Em sua cabeça, uma humilde coroa feita de pequenas margaridas de diversas cores. Nas mãos, buquê com flores do mesmo tipo. Florido também era seu sua saia, que com tons claros desciam até o chão. Passadas descobriam dele seus pés descalços. Uma mini-blusa branca, cobria em seu tronco apenas os seios que recentemente aumentaram. Sônia não quis que o tecido cobrisse a bela barriga que carregavam o neto de Guilherme.