Sua alma nem ele sabia que havia conseguido a proeza de fazê-la caber toda em seu ser, de tal forma que ele era ela, todo, sem tirar nem pôr. Não andava, vagava, a seu jeito, torto e abjeto, sem ligar para vento, pés, rastros, fofoquices. Mente ocupada, indisponível para remoimentos. E tanto pensar era todo voltado para suas fórmulas e quizumbas para enfrentar obstáculos e adversidades, como se vivesse num mundo jurássico em que salvar a própria pele era de si um grande gesto. Sua verdade suprema: conseguir escapar ileso. Assim, somando e subtraindo, em termos práticos, o resultado tinha de ser um só: ele, incólume. Nem se diga ele fortalecido, que tal contraria seu viver, ele que odiava a palavra avanço, desafio, vitória. A máxima felicidade era ficar deitado de barriga para cima contando carneirinhos de nuvens, com os ouvidos esquecidos em cantarolas muito antigas que nunca existiram, a não ser dentro do seu mundo vago e branco. As pessoas para ele eram personagens de tevê. De tevê. Não de livros. Os de livros são demais formalizados, demais submetidos ao crivo de um autor, doido para ultrapassar suas criações e, se possível, ceder uma foto sua muito feia para estampar orelhas livrescas para avisar: mamãe, eu que fiz. O que ele gosta – voltando – é mesmo se divertir com personagens de tevê, mais espontâneos e nem por isso menos reais. Gosta de ver a Malu Mader brincando de ser outra pessoa, o eterno Tarcísio Meira rindo-se para o espelho das lentes televisivas, achando que se vinga do tempo ao rir até a última ruga. Besteira. Ninguém o engana. E quanto mais o ator se esforça para representar, ele, cruel e nefandamente, ridiculariza-o sozinho, no lavar as vasilhas sujas de uma semana ou no folhear uma revista sentado no vaso: esse sabe se enganar! Dia desses, por acaso, fingiu-se de tiete. Um atorzinho morrendo de ser popular, desses de novela das oito mesmo, fez parada num shopping aqui da cidade, e foi aquele negócio todo de multidão se apertando e berrando lindo, fofo, gostoso – ele não é dado a ouvir nada, nem que queira, que não manda em seus ouvidos, esses adoram mesmo é ouvir as ditas canções folclóricas de anos de estranha ascendência que ele volta e meia cisma em decifrar. No shopping, os gritos – fingidos -, o cara que nem bonito era, nem gostoso, nem fofo nada, mesmo assim, fazendo pose de ser tudo isso e mais um pouco. Lá foi ele fazer o estrago: chegou, olhou de alto a baixo o ator – na televisão parecia mais alto - , depois parou detidamente o olhar em cada indivíduo daquele público anônimo, massa muscular a contrair-se nos cantos resumidos onde uma segurança hostil fazia gestos, apitava – será que apitava? -, empurrava, enfim, essas coisas que toda segurança tem como ofício, ele, sério, embolado na multidão, querendo ouvir mais, querendo entender os empurrões, o ator limpo de doer, pele alvejada de tanto sabonete, um cheiro adocicado de colônia própria de quem se dedica a lazeres solitários, achando-se o próprio. Chega para lá, assim você impede o moço de respirar! Gente, quem se comportar ganha o direito de receber um autógrafo desse ilustre (desconhecido?) ator da Rede Globo de Televisão! Repetindo: não é para chegar perto demais! Dêem liberdade de dois metros quadrados para o rapaz! O ator, cara de eu sou da Globo. E era, ou pelo menos achava que era. E o desejo de todos que se espremiam era um dia serem também atores da Globo. Por isso o que disputavam não era um pedacinho do cara, mas um pedacinho do espaço do cara para poderem aparecer no circuito interno de tevê do shopping e vai daí quem sabe um dia é descoberto por algum caça-talentos, big brother global, capanga à espreita de sucessos garantidores de altos índices ibópicos. E eram caras e bocas, e unhas e mordidas, todos tietes em ação, todos o protótipo do público avassalador, todos se vendo já por baixo numa oficina de atores da Globo, fazendo teste para a próxima produção.
Ele, o observador. Não era nem da equipe global, nem da equipe essebetal, tampouco da equipe redetevetal, etc. Era o observador-mor, o idiota personificado a querer extrair filosofias de um momento sem futuro desses. Na verdade, não era bem assim. Não, ele não era dado a extrair verdades. Era dado a viver, de olhos abertos e boca fechada, o espetáculo, sem querer ousar, avançar, penetrar, furar a bolha. O momento é. Viver é ser bicho, é mijar na rua, dormir uma noite que seja debaixo de um bloco numa entrequadra qualquer encarando de frente a primeira visão que bombardeia os olhos semicerrados. É sair de casa sem deixar recado. É nunca estar conectado a nada nem ninguém. Por isso mesmo, internet nem pensar – que essa arma é a negação de toda a vida, onde já se viu passar horas esquentando os quartos em cima de uma cadeira desconfortável, dedilhando vontades e sensações, em vez de prestar mais atenção, por exemplo, ao cioso tecer de uma aranha? Catar programas duradouros e perenes, imutáveis, como estalar os dedos com precisão e graça, saber assobiar com a língua, eis o sentido da vida. O resto eram prismas assassinos do caminho fácil, esquinas quebradas pelo fascínio de luz falsa a recriar espectros e alegorias onde a perfeição crua reina inteira. Por isso, ele, no dia do ator no shopping assustou-se quando um truculento segurança ordenou – ou perguntou, tanto faz: e você, rapaz? Já terminou o horário de assédio. O astro global está cansado de tanto repetir respostas e distribuir autógrafos. Que mais você quer? Ele respondeu, sem notar, num flato: paz e sossego. E tchau.