Os choques elétricos em salva amoleceram todas as carnes do boi; a descarga fez seus testículos amortecerem e intestinos esvaziarem em excremento e sêmen lançados ao chão. A história se repete.
O boi cambaleava, desesperado, alternando seus urros convulsivos com o silêncio que o cheiro da morte lhe provocava. Era um treino azedo para aquele destino de todo dia, que se repetia incansável e inevitável dentre escolhas aleatórias sobre um próximo a ser derrubado. Um pouco além de onde estava, o animal molhado e atordoado encontraria alguém que talvez nem em seus sonhos irracionais mais íntimos, nem durante suas cópulas infrutíferas e ruminações amargas, imaginaria encontrar.
No final do mesmo corredor molhado, entre o boi, o choque e placas de sangue nas paredes, estava o menino magrelo. Apoiado em escadas que o deixavam exatamente acima do boi, observando-o relutar em correr ou atropelar aquele caminho apertado fedendo a medo e carne, ele vislumbrava o dorso do animal em um ângulo que aprendera a usar para calcular o lugar certo do abate. Era um ponto especial, íntimo e seu, que lhe rendera muitos pesadelos e remorsos por trabalhar de forma tão brutal. Todo dia, choque, corredor e faca. Choque, corredor e faca, sonhos com pessoas, mulheres, velhos e crianças, nus e molhados, no mesmo corredor apertado e sem teto, sendo observados de cima por açougueiros braçais que decidiam que partes iriam cortar e desossar. Levavam os choques e alguns não agüentavam ou recebiam mais por não terem ficado com suas carnes no ponto; corriam até o final, para o abraço do facão do menino magrelo, que cravava sem cerimônia entre a nuca e os ombros, do topo de seu altar. Um único golpe de dor, partida e luzes desfocadas, desconectando a alma do corpo e o corpo da anatomia em pedaços. Cada um desses golpes e cada um dos animais caídos ecoando como feridas doentes dentro da sua cabeça.
Ganchos pesados para todos eles. E carimbos, selo de qualidade, temperatura abaixo de zero, uma grande encenação de vida se estabelecendo como a morte do afeto. O seu passado e a sua pureza não existiam há muito, muito tempo.
Ele encontrou o ângulo enquanto o boi se aproximava. Incauto e ansioso, uma virgem na iminência da cópula, um catedrático ao receber o Nobel, amantes tímidos envolvidos em um único abraço: esse era o seu cerne, entre o animal e entre seu interior. Sua atenção era apenas em como fazer aquilo, em como atingir aquele ângulo especial na nuca do boi, que vinha estudando forçosamente há algum tempo, graças a repetição interminável de facadas. Ninguém sabia daquele ponto no matadouro porque a descoberta secreta era só dele.
Então ele atingiu o animal no ângulo exato. A faca entrava inteira, ignorando as resistências da carne do animal, destruindo seja lá o que estivesse escondido naquele lugar, e causando a reação comum a todos os bois. A princípio o garoto não notara nada, anestesiado pelo ato em si, mas bastava olhar diretamente para os olhos do boi por alguns poucos segundos, antes, durante e depois do golpe. De longe era difícil reparar nos detalhes, mas a prática refinou o seu artesanato, a sua obra mórbida, tornando-o um criador precoce com tato suficiente para identificar tudo o que se passava com a matéria-prima, o boi, no instante da passagem vida-morte.
Mas a morte não vinha. Ele sabia disso ao examinar as grandes pupilas negras que sempre o fitavam, mais tristes do que vingativas, pouco antes do golpe. O fato de a vida abandonar o animal não significava um fim absoluto, nem uma separação entre a alma e a carne; algo ficava dentro da carcaça, algo que ele ainda não sabia dizer o que era mas que o incomodava porque permanecia mesmo depois do desmembramento do corpo para o frigorífico e para a revenda. Aquele ângulo, aquele maldito ângulo, fazia tamanha diferença e fixava a impressão de cativeiro. A falta de consciência nos bois prejudicava fatalmente as suas observações e aquele parecia ser o máximo de conhecimento que poderia vir a adquirir. Nada além de bois mortos, encarcerados em prisões silenciosas.
O segredo do criador, cuja dádiva o garoto conseguira apurar ao acaso, tornara-se algo a ser cobiçado.
O animal pouco se debateu com o golpe. O garoto permanecia olhando-o, penetrante, e tirando as conclusões de sempre. Antes, durante, depois, a mesma coisa. Um ciclo que consumia a sua subvida de larva, sem memórias e sem inocência, podre, azeda e ausente de qualquer sentimento bom. Puxou a faca de volta e, acompanhando as pupilas do boi se dilatarem em um momento futuro breve, ele sentiu o tombo das suas carnes pesadas. Fazia muito tempo que ele não errava o ponto exato do ângulo e ele precisava descobrir mais.
Foi nesse momento em que decidiu matar alguém.
98.
Quando ela desceu do trem, depois de quatro horas de viagem, com roupas pretas, pernas inchadas, fome e receio pelo que encontraria, todos os seus pensamentos se voltavam para o lugar que deixara para trás. Arrastou suas sacolas, quase rasgadas, até o ponto de ônibus mais próximo fora da estação, anestesiada pelo cansaço e pela visão do céu escuro. A noite se tornara um véu a zombar de todos aqueles prédios, falos de concreto, gritando buzinas e ruídos, anunciando que ela sentia muito por não estar mais em casa.
Ela não tinha mais casa.
A sua vida era uma tempestade de poucos anos de idade, mas forte o suficiente para joga-la em um abismo dentro de si mesma. Quase trinta e oito anos, dores de cabeça, casamento, um filho, marido e álcool, outro filho, mais álcool e surras, abuso sexual, uma filha e mais surras, hematomas, medo e rancor para dentro do abismo, caindo, caindo e caindo. Foi muito tempo, dentro da cabeça dela, de sofrimento e humilhação pelas mãos de uma pessoa que ela amou tanto. Mas ela suportara e tentou adiar ao máximo o ponto final, até o sábado passado, quando esse momento evitado chegara a um desfecho por outros meios.
O velório de seu marido e filhos foi feito no outro dia, logo após o acidente de carro e a liberação do IML. Demorou em acreditar, mas comprar uma passagem para bem longe foi só uma questão de esperar até a segunda-feira, entre lágrimas, soluços e opressões inacreditáveis para a cabeça de uma mulher que nunca se acostumara a sofrer. Não havia para onde ir e as possibilidades da capital eram um sonho cruel e mentiroso que tentava os desavisados.
Ainda assim, ela não tinha mais nada e ninguém e a sua terra, sua casa, era apenas mais uma ferida profunda. Perdendo as coisas antes de ganha-las, ganhando as coisas para perde-las. Três filhos primeiro arrancados de seu útero, um a um, e agora arrancados de seus braços, esmagados dentro de uma carcaça de metal conduzida pelo seu finado marido. E agora, e agora, ela se questionava entre as lembranças tentando se travestir em sonos fedendo a realidade, embaladas pelas fortes dores no seu ventre. Todas as suas três crianças, mais velhas que as crianças dos outros de coração e alma, pareciam mais com ela do que si mesma, era incrível, a maneira com que olhavam, com que tocavam, com que a acolhiam quando ela apanhava ou quando eram surrados. Onde já se viu alguém apanhar e depois, acolher? Tiradas de suas entranhas e estraçalhadas pela mesma criatura que batia, que era amada, mas que batia.
Perdendo as coisas antes de ganhá-las, ganhando as coisas para perdê-las. Era a sua sina.
Foi no meio desse devaneio que, no ponto de ônibus, ela sentiu o fluxo descer pelo meio de suas pernas, como uma cachoeira quente e pegajosa, sete dias antes do esperado. Mas ela não cairia novamente, mesmo que estivesse fraca e dolorida; antes que a sua visão se apagasse por completo, ela conseguiu se arrastar até um banheiro público imundo para avaliar suas condições.
103.
Foi preciso esperar tempo demais, escondido naquele buraco imundo, soterrado nos esgotos e lixo da grande cidade, para o porco despertar de seu sono milenar. Muitos anos se passaram desde a última vez que a sua presença se fez necessária, quando o chamado das suas crias ecoava mais forte pelas mãos de executores. Muito, muito tempo, em uma época antes do homem e depois dos répteis, quando as primeiras gotas de leite batizavam a terra.
E o porco despertava novamente, em um lugar diferente do que fora hibernar.
A princípio, apenas escuridão e fedor, como uma pocilga imunda empestada com os lixos e excrementos ali jogados, o porco era apenas uma velha carcaça vazia, enorme, concebido em outras eras, que se fazia guardião nos momentos necessários. Ele ainda lembrava, antes de adormecer, em um outro tempo, as oferendas, os monólitos e altares, todos construídos pelas suas crias, como um agradecimento à extinção dos executores. Não restara mais nenhum deles, nenhum dos malditos. Ele poderia dormir em paz.
E então ele acordava em um lugar daqueles, completamente impuro, drasticamente diferente do santuário de lama onde fora colocado; um protetor, sangue do criador, pastor de seus segredos e das muitas crias, abandonado durante o sono. Ofendido, rancoroso, faminto, pronto para o abate.
Primeiro ele devorou todo o lixo ao seu redor, até encontrar um grama de luz que fizesse seus olhos se acostumarem. Depois ele emergiu até um forro de concreto, que devorou também, bem devagar, furando o andar acima de si, causando um desabamento de água podre das fossas. Paciente, ele lutou contra aquela correnteza, resistindo à ausência do ar e deglutindo os excrementos que inundavam seu focinho enorme.
Foram três dias erguendo-se das trevas e do esquecimento, como um ídolo despertado do falso ostracismo. Quando a luz, luz do luar na cidade, mostrou-se para os seus olhos sem mais intermediários, o porco foi despejado de um cano de esgoto no canal coletor principal.
Era o renascimento, o chamar, a mensagem. Erguendo-se na lama com suas carnes moles e escoriadas, entre os pneus velhos e os sacos de lixo lambuzados de podridão, o grande porco começou a farejar o novo executor que causara o seu despertar. E farejar, farejar, orientando-se na selva de pedra.
110.
Quando fechou a porta do boxe, suas saias estavam encharcadas no meio com o fluxo. A dor, apesar de forte, não era suficiente para tirar tantas lágrimas de seus olhos, que gotejavam incansavelmente. Onde está, onde está, ela revirava sua bolsa, sua mala, naquele cubículo fedorento e apertado, sem conseguir achar um absorvente feminino. Era uma maldade da natureza coloca-la, depois de tudo aquilo por que passava, em uma situação daquelas.
Então ouve o estrondo súbito, entrando no banheiro. Uma, não, duas pessoas, pelos ruídos violentos, brigando. Ela se encolheu dentro do Box, pensando no pior, um assalto, um estupro? O que poderia ser pior? Os barulhos continuavam, agora dentro do banheiro, como uma luta onde alguém estava em clara vantagem sobre o adversário; os soluços abafados diziam isso.
Com uma pancada súbita, um dos corpos caia no chão. Ela não podia olhar para saber o que estava acontecendo lá fora, apenas supor, calada, engolindo soluços de horror, o que se passava. Agarrou sua bagagem sentada no vaso sanitário, com os joelhos contra o corpo. Barulhos surdos de golpes, murros, contra um adversário que se tornara vítima.
Ela enterrou a cabeça contra sua bolsa, menstruada e de olhos bem fechados, isso não pode estar acontecendo, não pode estar acontecendo.
111.
O garoto se tornara um perito no seu ofício. Derrubar e imobilizar, qualquer um, homem, mulher, criança, para posiciona-los ao seu gosto; ninguém resistia a sua força, ao seu poder de persuasão física, mesmo sendo tão pequeno. A prática em pessoas, com vidas estabelecidas e não apenas criaturas ruminantes, tornara-o mais ambicioso e sedento por uma nova descoberta. O ponto era o mesmo: abaixo da nuca, em algum lugar entre as vértebras; as reações eram as mesmas: a pupila clamando enquanto a carcaça rachava.
Mas ele ainda permanecia ignorante, sem conseguir olhar o segredo da morte diretamente. Por mais que matasse e matasse, nada se acrescentava a sua descoberta proibida.
Quando arrastou uma de suas vítimas para aquele banheiro público deserto, sua mente ruminava novas hipóteses a respeito do ângulo secreto. A garota que trazia consigo, presa pelos pulsos, foi jogada no chão com violência, e atingida no rosto várias vezes. O lugar onde estavam transformava-se pouco a pouco em uma câmara de açougue; ele, predador e criador e ela, carne e ossos.
A consciência dela oscilava com a violência dos golpes. Vou ser estuprada, meu deus, a voz em sua mente dizia, ele vai me roubar, me violar e depois me despedaçar, mas a intenção do menino não era uma cópula infrutífera, onde violência justificava tudo. Com habilidade, ela foi colocada de bruços, sem forças para resistir; queixo erguido, fazendo-a olhar o mais alto possível sem que seu pescoço quebrasse. Seus ombros se anestesiavam com a tração feita pelo agressor, implorando alívio; ele a manobrava, como um profissional, um açougueiro profissional, colocando a carne na posição a ser cortada.
A cabeça, ela pensava, desesperada e desorientada, ele vai cortar minha cabeça meu deus do céu, ele vai arrancar a minha cabeça e levar embora.
O garoto puxou a sua faca. A mesma faca do batismo dos bois, a faca que o ajudara a encontrar o ângulo. Posicionou-a no ponto certo, em algum lugar entre a nuca, na raiz dos cabelos, e as vértebras. É o fim, a garota pensou. Abordada e imobilizada por um menino magrelo, com força descomunal, cheirando a morte e horror. Uma criança com uma essência tão velha e tão desprovida de lembranças e inocência que fedia azedo.
Ele enterrou a faca a fundo, com um único golpe de mestre, sentindo algo escapar da ferida, roçar na sua face, sussurrar no seu ouvido e se perder no ar desperdiçado. A garota não fez barulho algum. Ainda faltava algo a se descobrir, mas em breve dominaria todos os elementos de seu ofício; era uma questão de dar tempo ao tempo.
Não trocaram palavras desde que foram introduzidos, vítima e agressor. Não eram necessárias, mesmo gritos ou gemidos; a vida secou sozinha, pela lâmina da faca do garoto. Entretanto, naquele exato momento, de algum dos Boxes do banheiro, alguém gritou forte, atrapalhando-o.
120.
Talvez a sensação de ter sido descoberta pelo assassino do banheiro tivesse sido igual ou pior a sensação que ela tinha quando seu marido chegava em casa, bêbado, chutando as portas e gritando; ou talvez o simples fato das coisas poderem descer tão rapidamente para uma condição ainda pior, ainda mais degradante e humilhante, falassem a favor de seu desespero descontrolado.
A garota recém-assassinada jazia no chão, com uma poça crescente de sangue sob o seu rosto. Em um primeiro momento, o executor juvenil estava em pé, sobre aquele corpo, e, em um outro, esfaqueava a porta do boxe como uma máquina. Nesse meio tempo, ela se esgueirava por baixo das divisórias, arrastando-se no chão e gritando pelo socorro improvável. Olhar para trás, com a perspectiva de uma cobra, e ver o assassino arrombar a porta do boxe para rastrear a sua fuga por baixo através da marcas da menstruação parecia não fazer importância alguma. Seus filhos e marido mortos, mostravam os flashes da sua mente, em retratos de família, eram as únicas imagens possíveis no apogeu do desespero. Ela rastejava e rastejava, mas o último dos boxes parecia nunca chegar; o espaço se distorcia, conspirando contra a sua vida.
Ela não olhava mais para trás, nem para os lados; movia-se com seus pensamentos fixos, longe daquela cena horrível, e perdia-os à proporção em que sentia o tempo escorrer de suas mãos, perdendo as coisas antes de ganha-las, ganhando as coisas para perde-las.
Nesses intervalos de agonia, ela ousava olhar para cima, tentando localizar o seu executor. O primeiro lance que teve com a fisionomia dele fora apenas um vulto escuro, sobre as portas e divisórias do banheiro, como uma aranha humana. No segundo, para seu susto e horror, a fração de segundo foi mais que suficiente para lhe dar uma noção detalhista de quem era aquele infeliz; um menino magro, doente e abatido, com uma enorme faca na mão, olhos amarelos e opacos com imagens de morte saindo de sua pupila para rodar ao seu redor. Apenas um moleque franzino, com lamento correndo nas suas veias fortalecendo-o.
Tinha o tamanho de um de seus filhos, mas poderia ter qualquer idade. Qualquer idade.
Ela continuou a se esgueirar, e finalmente se viu fora das divisórias, saindo próxima à porta, com o corpo da garota e o executor logo atrás. Ergueu-se cambaleando, deixando lágrimas e mênstruo pelo chão do banheiro, escorregando em suas próprias secreções. Socorro, gritava, socorro. O barulho do mundo externo não deixaria ninguém escutar a sua súplica.
Quando o menino puxou-a pelo cabelo, jogando-a no chão, seu único impulso foi se segurar na alça de metal ao lado da pia e arranca-la acidentalmente. Em um outro reflexo de sobrevivência, ela girou a haste que estava fincada no concreto contra o assassino, atingindo-o na coxa. Ele soltou um grito quase infantil, e chutou-a no chão como um marginal ensandecido; a faca em suas mãos ansiava por mais uma vítima e por mais um ponto de abate. Então vai ser assim, ele pensava, eu vou matar essa desgraçada e desta vez vou descobrir o que há por trás do meu ângulo. Eu vou ser o criador, ecoava dentro da cabeça dele, vou ser o criador que vai matar todo mundo.
Ela não tinha mais reações; tudo girava e se conformava mais escuro. Quando os chutes pararam, ele a colocou de bruços e preparou-a como em um ritual maldito. Não havia mais ações, nem resistência, apenas lembranças do que havia sido uma vida infeliz. Enterros e velórios dos entes queridos, chupando o seu afeto para dentro das covas rasas a transbordar de mênstruo.
Valia a pena morrer daquele jeito, longe de casa, sem ninguém para se lembrar de si?
O menino ergueu a faca, marcando o ponto no pescoço dela com concentração; um artesão do inferno.
Valia a pena?
A faca desceu pela segunda vez no banheiro.
209.
A polícia achou os dois corpos na manhã seguinte, quando um bêbado que procurava um lugar coberto para dormir se apossara do banheiro encontrando a cena do crime. Pouco havia a se fazer e, pelo tipo de assassinato, ambas mulheres golpeadas meticulosamente no mesmo ponto do pescoço, o assassino que vinha aterrorizando a cidade permaneceria solto até uma próxima vítima. Com mais aqueles cadáveres, totalizavam-se dezoito mortes com o mesmo padrão.
O maníaco da faca estava bem longe; não havia nada além de pistas inúteis incapazes de incriminar alguém. Um executivo tarado, um adolescente perturbado, talvez um trabalhador enlouquecido, questionavam os investigadores. Os dias se tornavam cada vez mais violentos, como retratos se manchando de sangue a cada novo anoitecer. O rastro de mortes deixado por aquele maldito executor já era irrecuperavelmente grande.
Colheram suas pistas, levaram os corpos e isolaram o lugar, como bois em uma rotina de vida e morte, esperando, esperando, esperando.
234.
Desde a sua última presa, o garoto não se sentia mais o mesmo. Algo vinha crescendo dentro de si, como um embrião indesejado, atormentando-o e avisando-o que a sua descoberta, sua evolução, teria um preço amargo. Como um novo sentido que se desenvolvia a cada nova facada, ficava cada vez mais claro que ele seria punido por manipular a carne e a alma dos homens. A sua fome pelo ângulo proibido se mostrava cada vez mais próxima da extinção, por mais que ele desejasse possui-la por todo o sempre.
Ninguém vai tirar isso de mim, pensava e corria pelas ruas, como um animal ensandecido, ninguém vai roubar a minha descoberta. Ele já sabia que aquela sensação ruim, inchando nas suas vísceras, era muito mais do que uma ameaça ou um mero sexto sentido. As marcas que ganhara ao longo daquele tempo de predador eram mais evidentes do que em qualquer outro momento da sua vida. Nas vitrines da cidade grande, entre as centenas de vultos que se refletiam na superfície brilhante, ele se via completamente diferente do que estava acostumado a ver: um garoto pequeno, velho mas frágil, quebradiço mas firme um degrau acima na evolução das espécies.
O seu rosto, mesmo que longe, parecia-lhe uma rachadura na vitrine. Então parou a sua corrida animalesca e ficou observando e explorando seu reflexo.
Eu sou o devorador da morte, o devorador do fim; seus lábios se rasgavam em uma única tira, transversa e vermelha, dando apenas o movimento que simularia a pronúncia de tais palavras. Ele, o executor, sentindo-se acuado depois de tantas pessoas em tão pouco tempo. Ele, o garoto do açougue, que preparava os bois e derrubava-os, um a um. Ele, o descobridor de um ângulo cujo poder e propriedades ainda desconhecia completamente. Nunca tivera infância, nem espírito de criança; era uma larva doente que se alimentava com dor e ódio. Sua memória mais expressiva antes dos bois era a de um cubículo apertado, dividido com outros cinco pequenos e com uma mãe caquética. O resto eram apenas manchas travestidas em fúria, que ele não conseguia lembrar.
Seria destruído em questão de tempo e não conseguiria solucionar a peça que faltava em suas descobertas. Um maldito elemento a ser aprendido para que as mortes deixassem de ser uma mera experiência para se tornarem combustível de verdade. Então, fugindo pelas ruas da cidade sem rumo, o menino se preparava para encontrar aquele que lhe puniria.
301.
No momento em que a lâmina entrou no pescoço dela, a sensação mais imediata não foi dor ou pânico; como um disparo elétrico, percorrendo as sinapses de sua medula espinhal até o último filamento de neurônio e retornando de volta por um outro trajeto at_ o lugar de origem, ela sentiu o seu corpo inteiro se amortecer e perder as forças. Em uma questão de segundos, não restava mais nada dentro de si além da sua consciência; as suas incursões respiratórias foram diminuindo e pararam por completo e o seu coração reduziu os batimentos e agonizou em arritmias que prenunciaram o cessar absoluto.
O seu sangue, a se perder pela solução de continuidade criada pela facada, escorria para o chão e para o redor de seu corpo caído, formando um molde no piso fedorento do banheiro. Ela conseguia ver apenas o seu braço direito, caído diante de seus olhos, como um membro inerte que nem parecia mais seu. E essa mesma visão, com a parada do funcionamento de seus órgãos vitais, perdeu o foco at_ se tornar um imenso borrão de cores escuras.
Ela não se desesperava mais. Por mais que fosse terrível sentir a morte abraçar a sua carcaça, todo o medo e angústia acumulados durante os seus últimos instantes de vida vazavam para fora de si como o mênstruo que ainda escorria pelo meio de suas pernas. Vazava e vazava para batizar aquele novo estado de existência.
Então, quando a sua consciência parecia completamente isolada dentro do que restava de seu corpo, sem mais vínculos com aquele lugar que ela chamava de mundo, que a torturara tanto, que a privara de carinho, afeto, calor e conforto, ela sentiu que não havia mais nada que a prendesse naquela realidade. Os seus sonhos pareciam então surgir por todos os ângulos de sua mente, como memórias tímidas que desejavam se tornar real mais uma vez ou serem simplesmente relembradas. Uma a uma, todas ao mesmo tempo. Seu primeiro parto, as pulsações do seu filho vivo dentro do seu útero, o conforto de estar com os seus pais quando ainda era uma garotinha, os dentes amolecendo para a troca, os primeiros passos, o leite materno, o seu nascimento
o seu nascimento, uma lembrança harmônica e primordial, incapaz de ser vislumbrada por ela enquanto criatura viva e real. As manchas na sua consciência, sobrepostas por aquelas lembranças tão intensas e trágicas, se moldavam então em um outro lugar, quente e úmido, refúgio e dor. Não demorou muito para ela descobrir que havia deixado a carcaça para trás para reencontrar o útero. Sim, mais do que um espaço para se flutuar e se embalar em sonhos, ela estava dentro de um mundo seu, que se modelava aos seus anseios e necessidades, sem que ninguém a ferisse. Imersa em líquidos e em conforto, ela ruminava todos os seus instantes de vida, bons ou ruins, simultaneamente e além do tempo.
Não havia mais dimensões, ou imposições da realidade. O que era sonho e fantasia, tornava-se diante dos olhos dela o real, e o que um dia havia sido um mundo verdadeiro, atrofiava nos confins de seu ser. Seus filhos e marido mortos, a sua terra natal, nada mais importava. Sua menstruação irregular e exagerada, sua ansiedade e dor de estomago, todos se refaziam em novos sentimentos, diferentes da sensação de perda pura e humana. Ela estava renascendo para um outro mundo.
Quando seus olhos reabriram, dentro dos líquidos da bolsa em que respirava, as manchas e lembranças se tornaram formas sólidas, como se o útero em que estivesse fosse uma caixa de vidro. O seu cordão umbilical, comunicando-a com o corpo de sua mãe, faziam trocas de sangue, afeto e lamento. Cada pedaço daquela realidade surreal sendo deleitado e temido na sua cabeça.
Então, finalmente, ela sentiu a sua morada se contrair, desejando manda-la embora, de volta para o mundo; não aquele mundo que ela conheceu em uma outra vida, onde sua carcaça era frágil e debilitada, mas um lugar mais negro e mais belo, paradoxo e nêmesis, onde sonhos se manifestariam com muito mais força. Quando a bolsa que a continha rompeu, ela foi jogada para fora do útero e chorou, nos braços de alguém, do povo das fadas. Começando a morrer ao sair do útero, pensou difusa, a vida não era assim mesmo? Morrendo ao sair do útero.
Então renasceu, em um outro lugar, longe e obtuso.
462.
O porco encontrou o garoto magrelo com pouco tempo; seria impossível escapar do seu faro poderoso, capaz de rastrear qualquer um em qualquer lugar. Quando esse momento chegou, o menino estava escondido no mesmo lugar onde a sua trajetória de morte e libertação começara:
O açougue.
Encolhido e assustado, ele aguardou por dias a chegada do seu inquisidor, no final do corredor onde matara tantos bois. Dali de baixo, ele pensava, era horrível demais de se olhar para cima, onde costumava ficar. Doloroso demais. Ficar ali o fazia se consolar pelo seu insucesso em descobrir o que o criador colocara dentro das carcaças; fora longe demais para uma criança sem inocência e culpa. E, aos olhos do porco, cada crime seria cobrado e devolvido em sua carne.
Então o porco olhou diretamente para aquele menino, velho e apavorado, no canto do corredor. Alguém como aquele infeliz, que colocara toda a mecânica do mundo a se perder acordando-o de seu sono milenar merecia o pior possível.
O garoto transpirava, eu vou morrer, eu vou morrer, eu quero a minha mãe. Cada passo que o porco, imenso, rançoso e horrível, dava em sua direção, alongava mais e mais as suas súplicas desesperadas e infantis. Finalmente o menino se sentia tocado pelo fato de ainda ser uma criança e por ter realmente possuído lembranças e passado, que agora doíam e agonizavam dentro de si como nunca antes. Minha mãe, eu quero a minha mãe, mamãe, ele gritava no escuro, encolhido como um feto abandonado, eu tenho medo de morrer.
O porco começou a devora-lo pelos pés. As suas mandíbulas enormes, com dentes de aço engordurados com lixo e carniça se fechavam contra os ossos do menino sem precisar mastigar para tornar todo o processo irrecuperavelmente doloroso. Mamãe, mamãe, o garoto chorava por alguém cuja imagem não se formava na sua mente. Seria um fim lento, como o criador mandou, lento, cruel e inumano. Depois dos pés, os tornozelos. O calor daquelas mordidas queimava a carne e fazia o sangramento parar, prolongando mais o desespero do garoto da faca. Não havia reação além de gritos e choro, que se abafaram em soluços e dificuldade para respirar. Mesmo quando desmaiou, já na altura das coxas e genitais, o menino ainda sentia, no âmago de sua consciência, uma dor opressiva e milenar capazes de envelhecer a sua alma por infinitas gerações de tormento e agonia.
Enfim, o porco retornaria ao seu sono.
528.
Não há mais nada a ser contado. Apenas as histórias das fadas, e as histórias de mundos dentro de mundos, que, quando unidas em uma única trama, formam o que já foi dito.
Entretanto, o menino ainda não havia renascido em um outro lugar. Mantinha-se dentro do útero de sua mãe, embalado nos seus sonhos, perdendo as coisas antes de ganha-las, ganhando as coisas para perde-las. Era a sua sina viver entre refúgio e dor.
Até que despertasse novamente, larva em borboleta, envelhecido como nunca, para desafiar mais uma vez o criador. A cada novo ciclo, mais persuasivo e terrível, reconstruindo na sua carne e na carne de quem viesse a atravessar o seu caminho a morte do afeto.