Cheguei ao endereço pontualmente às três horas da tarde e o Sr. Nicanor, zelador do clube há mais de vinte anos me esperava. Saquei do paletó o meu caderninho de anotações e o pequeno gravador e comecei a entrevista para a matéria que o jornal me havia encomendado. Fui logo levado para a sala de troféus que deixava claro que, embora tradicional no bairro, poucas foram as conquistas esportivas na história do clube. Apesar disso, havia vários troféus de ferro e alumínio dispostos sobre alguns móveis maltratados, mas um espelho estrategicamente colocado por trás fazia duplicar a quantidade de prêmios recebidos. Pelas paredes, diversos recortes de jornais locais, flâmulas e velhas fotografias exibiam um passado distante, mas que ainda honra Seu Nicanor, o sócio mais antigo do clube, que até hoje fala de sua equipe de futebol, principalmente da escalação de 1966. Com orgulho, apontava para a tradicional foto que mostra todos os jogadores devidamente uniformizados, metade do time em pé e a outra metade agachada, todos com os braços sobre os ombros dos colegas, como num abraço único e um traço que ressalta a união dos atletas.
- Aquele que está com a bola na frente das pernas é o Tibiriçá, o melhor atacante que nós já tivemos. – disse Seu Nicanor, exibindo um sorriso enorme que acusava a falta de dois dentes.
Ele me contou que Tibiriçá sempre foi um exemplo para todos os membros do clube e que até as mães usavam seu nome para incentivar as crianças a se comportarem: “Coma toda a comida para ficar forte e bonito como o Tibiriçá”. Ou: “Quando eu crescer vou fazer gols quinem o Tibiriçá”. Bom filho, bom irmão, bom amigo, funcionário exemplar, e um noivo dedicado. Não bastassem todas essas qualidades, um goleador como pouco se viu na história do clube. Aquela escalação deu três troféus ao “São Roberto F. C.”, foi a melhor de todos os tempos e revelou o craque que dava autógrafos e posava para fotografias como se fosse o maior destaque de um time grande ou a grande esperança da seleção brasileira.
- E o que aconteceu depois desse ano? – perguntei.
- Nós só conhecemos o começo da história. – disse-me o Seu Nicanor.
Com rápidas pinceladas e sem o mesmo orgulho de antes, me foi relatando a ascensão de Tibiriçá, enquanto eu gravava e anotava os principais detalhes. Disse que com o sucesso local sua fama repercutiu e extrapolou os limites do futebol de várzea e aos poucos foram aparecendo dirigentes de outros clubes interessados em conhecer aquele ídolo instantâneo de que tanto falavam. Era comum virem assistir aos jogos e logo depois procurarem por ele para saber do seu interesse em treinar em um time profissional. Tibiriçá sempre ouvia com toda a sua paciência e diplomacia peculiares, mas desconversava na primeira oportunidade alegando jogar por prazer e não por almejar uma carreira de atleta. Os principais clubes de vários estados fizeram a sondagem com propostas tentadoras, mas ninguém conseguiu convencê-lo. Ninguém.
Quando o assédio já havia diminuído e todos já sabiam ser inútil insistir, a sede do São Roberto foi visitada por um senhor elegantemente vestido que dizia ser empresário e precisar conversar a sós com Tibiriçá. Ninguém mais assistiu àquela reunião e quando voltou sozinho, informou que daquele dia em diante não mais pertencia ao clube e que havia aceitado uma proposta para ir jogar na Arábia.
A notícia se espalhou e ninguém acreditava que o seu ídolo teria coragem de dar tamanho passo no escuro. A família foi contra, os amigos tentaram aconselhar e até a noiva tentou dissuadi-lo da idéia. Tudo em vão. Em menos de uma semana Tibiriçá desapareceu sem se despedir de ninguém e mesmo o tal empresário nunca mais foi visto por ali. Seu Nicanor disse que durante algum tempo ainda tentou saber dele pela família, tentou acompanhar pela imprensa alguma notícia sobre o craque, mas de nada adiantou. Com o passar do tempo, o clube o esqueceu, a família o esqueceu e mães e filhos nunca mais citaram o seu nome, ou se o fizeram, foi como exemplo de como não se comportar.
Que destino teve? Seu Nicanor disse que vinte anos depois ninguém sabia se realmente foi para a Arábia, se obteve fama e fortuna, ou mesmo se ainda estava vivo.
Quanto a mim, como não fui reconhecido, agradeci, virei as costas e fui embora, não sem antes dar uma última olhada para a foto, sorrir e piscar o olho direito.
Edson Rodrigues
21/10/2001
(Lembrando 1962, quando eu e
meu irmão íamos assistir aos jogos
da Fábrica de Papéis São Roberto,
na Vila Maria, em São Paulo)