Alfredo era um pescador de mergulho. Simples, amante do mar e da natureza. Gostava de nadar e mergulhar, e seu habitat natural eram os corais, recantos de águas, agora turvadas pelo crescimento da cidade, na Ilha do Aconchego.
Vivia sua vida, limitado aos movimentos que se extinguiam aos poucos, pois num acidente no mar, suas duas pernas, foram feridas por um tubarão.
Alfredo tinha dois sonhos. Dois desejos, e neles acreditava com veemência: Encontraria um dia, uma sereia que o faria reviver de amor. E voltaria a navegar pelos corais do mundo, pescando e admirando toda a beleza submersa que nele houvesse, estivessem onde estivessem, pois que no mundo submarino ele seria feliz.
Um dia de manhã bem cedo, contornando a Ilha da Calmaria com o seu barco, viu ainda envolta na neblina, uma bela sereia morena, que, sentada sobre uma pedra, cantava uma melodia triste. Distraída, enquanto penteava seus longos cabelos, balançava sua cauda num suave ritmo, não percebendo a aproximação do bote.
Com os olhos vidrados, não mais tocou nos remos, e enquanto o barco deslizava mansamente, ele aproximava-se fatalmente do seu sonho maior.
Surpreendida, a sereia não pôde mais se esquivar e com um sorriso saudou o seu descobridor.
Sua existência havia sido desvendada e, após os primeiros diálogos, reticentes e surpresos, passaram a conversar mais descontraídos.
- E por que o teu canto é tão triste, se és tão bela e saudável?
- É o que te parece, mas na verdade não o sou...
- O que te abate então, ser encantador?
- Duas coisas me entristecem, caro senhor... Uma, é que não tenho parte do meu corpo. Como tu. Embora não percebas.
- De fato não percebo. E a outra?
- A outra... Justamente por isso, ninguém me quer no meu mundo.
- Eu te quero, então! Vem comigo e me faça feliz, que tu nunca mais chorarás também...
- Eu não posso ir para o teu mundo - retrucou-lhe a seria - mas tu poderás vir para o meu!...
- E como faremos? - Adiantou-se o pescador sem hesitar.
- O meu rei Netuno te dará, como a mim deu, a substituição das tuas partes perdidas, e poderes para que vivas no meu mundo, sob as águas.
- Teremos uma linda festa, então!...
- E tu me darás filhos maravilhosos!...
E assim felizes, desceram às profundezas, e realizaram os seus desejos mais intensos.
Mas... O destino quis que Netuno lhe cobrasse uma promessa:
- Sei dos teus sonhos, pescador. E não quero que tu partas com a minha princesa, enquanto eu vivo for...
- Mas... é que eu gostaria...
- Não te preocupes. Estou nos meus últimos tempos... Em breve, Atlântico, o poderoso, estará ocupando o meu lugar. Mais alguns anos, e vocês estarão livres para sempre.
E sendo assim, Alfredo prometeu-lhe isso, e nas cercanias da Ilha, entre amores e prazeres, ainda viveram por longos anos. Felizes, é bem verdade, mas sem que o pescador tenha matado no peito, a sua ânsia de liberdade, de conhecer todos os corais e a beleza do mundo submarino.
Daquelas águas turvas já quase se enxergava nada. E enquanto Alfredo contava os anos passarem, a beleza da vida submersa, poluída pela cidade próxima, foi se perdendo...
Um dia, Netuno morreu.
Alfredo quase não chorou a morte do rei, pois sairia dali, finalmente, para os mares de Angra dos Reis, Das Ilhas Canárias, do Atol das Rocas às praias de Fernando de Noronha, para os corais de Recife...
E quando feliz, foi buscar sua amada, para agora, sem restrições, saírem ao mundo, ela...
- Tem uma coisa que não te contei...- Cabisbaixa.
- Pois conte!... Conte logo, minha sereia!...
- Não poderei ir contigo...
- E porque não poderás? Por Netuno!...
- A minha cauda é uma substituição mágica. Perderá o encanto se eu sair daqui, de perto do meu reino. E eu não poderei mais nadar com desenvoltura, porém com sacrifício.
- Então eu te guiarei, te trarei junto comigo, e te puxarei para onde eu for!... Verás as maravilhas que...
- Os teus desejos não são os meus desejos, meu senhor... A beleza que eu vejo, está apenas em ti, não nos teus sonhos entre corais...
- Puxa!... Então terei que partir sozinho?!... -Entristecendo-se.
- Sim, se quiserdes, assim será. Porém mais uma coisa ainda não te disse...
- Então me digas!...
- Tu partirás, como quiserdes, mas teus poderes mágicos, assim como os meus, se perderão também... -Acrescentou-lhe com pesar. - Pois estão vinculados a mim...
- Minha vida se acabará... - Balbuciou o pescador.
- A minha também, meu senhor... Porque existem muitas sereias por lá, mais bonitas do que eu, perfeitas, sereias mais novas do que eu, e tu não voltarás...
- Mas eu voltarei, te prometo! Quem vai querer, como tu, um mutilado como eu? - Cortando-lhe o raciocínio.
- Se tu fores, portanto, não voltes...
- Então vem comigo! Tu verás as belezas desconhecidas, as cores que nunca vimos, as areias brancas e um múltiplo de seres, diferentes e lindos!...
- Não vejo, como tu, a beleza nos fundos de corais, nem nos teus jardins de cores extravagantes, que me valha tamanho sacrifício. É monótono para mim, ver os peixes desfilando entre as algas pluriformes, no seu ritmo lento. Apenas aqui, no meu mundo, serei feliz e em ti apenas, vejo toda a beleza. E sem ti, morrerei...
- O pescador inconformado sentou-se a uma pedra submersa, com as pernas encolhidas, e apoiou o queixo sobre os braços, cruzados sobre os joelhos e assim ficou, imóvel, olhando para o vazio turvo.
- Tantos anos esperando o poder, a liberdade de desfrutar a vida... E agora que posso, não posso... Agora, não quero... Eu quero, mas não posso... Eu posso, mas não quero... Ou não devo?...
E assim foi que, aos poucos, uma nova concentração de corais o encobriu deformando a sua imagem. Para sempre... Apenas se sabe que ele ali está, pelas bolhinhas de ar, que vez por outra, se desprende de suas narinas. E por uma sereia, que nas manhãs nubladas, numa pedra ao seu lado, cantarola uma triste canção...