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Contos-->Encontro com Lamarca -- 28/03/2002 - 18:50 (Athos Ronaldo Miralha da Cunha) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Como isto vai acabar?
Era a pergunta que mais o atormentava naqueles últimos tempos. Zé Bico vivia de aparelho em aparelho, a repressão, várias vezes, esteve próximo de pegá-lo e foi por sorte que da última vez não tinham conseguido seu intento. O medo e a aflição era uma constante na sua vida e no seu estado de espírito.
Muitos companheiros de luta estavam desaparecidos, alguns, julgava-se que estariam mortos face as informações vindas dos cárceres. Quem caia nas garras da repressão, certamente, estaria na lista dos desaparecidos. Segundo constava em alguns relatórios internos da organização os torturadores eram impiedosos e não estavam para brincadeira. Pobre do companheiro que caísse...
Solitário em um banco da estação ferroviária à espera do trem noturno que o levaria a Porto Alegre, Zé Bico divagava e sonhava. Sonhava com um mundo melhor onde construiria sua liberdade e vislumbraria seus filhos num país com democracia e felicidade para todos os cidadãos, mas para isso acontecer tinha muita luta pela frente e o inimigo, poderosíssimo. Zé Bico estava bem vestido, um terno escuro, uma camisa azul e uma maleta com alguns pertences. Nada que provocasse a desconfiança de algum policial que por ventura aparecesse por ali. Barba e cabelos bem aparados, estampa de um profissional liberal bem sucedido, mas no âmago da consciência, alma de revolucionário. Eram 11 horas da noite e o trem que vinha da fronteira estava um pouco atrasado. Zé Bico era o único até então na estação.
A escuridão da noite era tamanha e o infinito generoso que Zé Bico quase pegou no sono, despertando por ocasião dos latidos de um cão a poucos metros dos trilhos e logo em seguida o silêncio da noite foi quebrado por vários latidos sucessivos nos mais diversos recantos daquela imensidão noturna. Talvez esta ladainha seguiria mais algum tempo se não fosse a luz e o apito do trem na curva do aterro despertando-o daqueles momentos tranqüilos de uma noite que seria longa no chacoalhar do trem rumo à capital.
Confortavelmente instalado na poltrona do vagão, começou a mentalizar a reunião que participaria no dia seguinte em Porto Alegre. Seria uma reunião de suma importância onde seriam decididos os rumos da revolução socialista no Brasil. Segundo informações, uma das maiores lideranças nacionais da guerrilha estaria presente. Não poderia esquecer de colocar o chapéu e a gravata vermelha, que seria a senha para o guarda-malas da estação que faria contato antes de tomar um táxi, para isto deveria caminhar lentamente após o desembarque. Caso falhasse, o segundo contato seria um engraxate que estaria bem em frente ao Cinema Imperial, ao lado da carta testamento do Getúlio, na praça da Alfândega às 9 horas e se mais uma vez falhasse deveria abortar imediatamente a operação. O engraxate estaria de camiseta azul e com um boné do internacional.
E o trem entra noite a dentro, vez por outra as luzes de algum lugarejo chamava a atenção de Zé Bico, aquela vastidão noturna iluminada aqui e acolá pelas luzes fluorescentes dos vilarejos à beira do caminho, ruas e avenidas, trilhos e becos à espera do amanhecer.
Porto Alegre amanheceu ensolarada e o trem encaminha-se lentamente para o fim de sua longa jornada. A máquina Diesel corta a manhã cheia de vida da capital dos gaúchos e termina seu sacolejar na estação da Viação Férrea, naquela manhã de 04 de abril de 1968. Conforme as orientações recebidas, deveria se dirigir lentamente ao ponto de táxi, neste meio tempo receberia novas informações, caso houvesse algum contratempo a segunda opção seria o engraxate da praça. Pensativo dentro do táxi Zé Bico fica a imaginar o que poderia ter acontecido, pois o guarda-malas não havia comparecido, o jeito era aguardar e esperar o segundo contato, que deveria ser seguido a risca, abortar sem margem de atraso. Após a senha ter sido completada, Zé Bico respirou aliviado, pois seu interesse era grande pela reunião e não gostaria de voltar com as mãos abanando. O companheiro engraxate, que fazia parte da VPR em Porto Alegre, foi direto ao assunto fornecendo, de imediato, o endereço: rua Benjamin Constant no número 1604. Deverá aguardar em frente ao prédio, às 12 horas.
Sentados, em volta da mesa, estavam oito pessoas que nunca tinham se visto, faltava apenas o capitão e o silêncio reinava na penumbra daquela sala. Finalmente, encapuzado, o capitão penetra no recinto, senta-se na cabeceira.
-Bom dia, da próxima vez estejamos todos encapuzados. Nossa rede de informações é excelente e nós sabemos quem são e da onde vêm todos os presentes nesta sala. Na há necessidade de reconhecermos a fisionomia de cada um. Dito isso, começou a se apresentar. O que eu posso dizer é que eu sou o responsável pelo planejamento e estratégia da guerrilha, a minha formação é militar, inclusive com uma passagem aqui pelo Rio Grande do Sul.
Zé Bico pensou indagativamente: Capitão Carlos Lamarca. Quem diria...Como é que esse cara conseguiu chegar aqui? Não acreditaria se me contassem!
O capitão continuou.
-O quadro no Brasil é o seguinte. Companheiros! Temos que trabalhar com extrema segurança e com o máximo cuidado. O quadro nacional está muito grave, a repressão está fechando o cerco e cada vez mais, torturam inocentes de pequenos lugares, violam os direitos dos idosos para que a população e transeuntes fiquem pensando... se maltratam idosos e inocentes, imaginem o que não fazem com os culpados? E essa idéia está incutida no seio da população. No que tange à guerrilha estamos evoluindo bem, os seqüestros e os assaltos aos bancos têm surtido bons retornos, inclusive financeiros, para a organização.
Enquanto o suposto Lamarca falava, Zé Bico se distrai e vai para os braços de sua amada. O olhar fixo no cara encapuzado e a mente longe... com um sorriso, Mona Lisa nos lábios, pensava na sua revolucionária predileta, mulher de fibra, força de vontade e, principalmente, meiga. Sempre sonhou em constituir uma família com Amanda, companheira de sempre. Criar os filhos e trabalhar dignamente, mas não, tinha que lutar, tinha que revolucionar. Escapou um suspiro de Zé Bico: –Amanda!
-Que foi companheiro? Perguntou incisivo o capitão da guerrilha.
-Amanda, talvez ela seja a pessoa ideal, (tinha pego alguma das idéias no discurso de Lamarca) tem ousadia e perseverança. Na minha opinião, ela será uma liderança do movimento.
-Não tenho informações sobre esta companheira, de qualquer modo dê a ela minhas saudações. Para finalizar não esqueçam “um revolucionário ama a paz, faz a guerra como instrumento para ter a paz justa sem a exploração do homem pelo homem. Ousar lutar. Ousar vencer”. Despediu-se com até a vitória e saiu da sala. Foi a primeira e última vez que Zé Bico teve contato com Lamarca. Posteriormente, entrou em uma profunda depressão ao saber de sua morte.
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