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Contos-->O INSTINTO -- 01/04/2002 - 13:02 (Djalma Monteiro Pinto Filho) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O INSTINTO
Djalma Filho

- Aquele é o João Feroz?! - Madalhena fica boquiaberta ao abrir o seu armazém.
- Quem olha para aquele trapo humano é incapaz de imaginar o homicida que se esconde na pele do pedinte! - Edson fala sério para a dona do armazém.
João, da beirada do passeio, olha para o nada. Ele é um homem no limiar da sarjeta. Cara de cachorro magro, triste, só, aparentemente frágil e quase sem alguma resistência.
- Edson, aquilo tem cara de tudo, menos do tal João Feroz!
João Feroz. Um bandido - até certo ponto - romântico. Agora magro e velho, barba no rosto para esconder as cicatrizes, pernas arqueadas e andar de samambaia, coluna visívelmente torta por maus tratos, cabelos ralos com o passar dos anos, olhar de um amarelado profundo, completamente abstrato às ansiedades do mundo.
- Tem quatro meses que ele anda por aqui! - Edson entra no balcão e começa a se roçar sensualmente na bunda de Madalhena.
- Nem pra você me falar!... - Ela fala qualquer bobagem entorpecida pelo assédio do mais antigo freqüentador daquele armazém.
- Falar o quê?... Você parece que tem amnésia crônica pós-romântica!
- Eu???!!... Como me esquecerei das suas coxas grossas, da sua pele morna, das suas mãos macias e do... do seu cavalgar galopante?!!!
- Você deixa de se lembrar das coisas importantes! - Edson fala excitado.
- O quê, por exemplo? - Madalhena geme em êxtase.
- Da escala do vôo do seu marido - Edson fala olhando atento para a rua.
Em frente ao armazém, tudo estava quase deserto. Por trás do balcão, no entanto, Madalhena deixava as pernas se abrirem suavemente, enquanto as mãos amplas de Edson se apoiavam no balcão em um ininterrupto movimento de vai-e-vem. Para os amantes, a sensação de estarem por detrás do balcão, dava a impressão de parecerem invisíveis aos olhos do mundo. Estar em plano americano dava, para eles, a falsa certeza da não noção de pecado ao sul dos seus corpos. A falta de testemunhas camuflava, para eles, a dimensão exata de suas inconseqüências: dois seres humanos copulando com visíveis sintomas de irracionalidade!
O sexo é um ato que jamais deveria ser interrompido. Do despertar da libido ao orgasmo, ele deve ser visto como um ritual, uma dança de sons, ritmos e palavras que levam os corpos a tomarem posturas acadêmicas, profissionais, românticas ou anárquicas. Sexo é sexo e pronto! É instinto, vontade, desejo... uma compulsão visceral! Eu, particularmente, não considero nem o Edson nem a Madalhena reféns dos seus próprios instintos!...O sexo era, para eles, pontos de reticências em tramas paralelas mal resolvidas. Madalhena, mulher carente e mal casada, à cata de um naco de compensação; enquanto o Edson é um homem só no mundo, eterno navegante das marés que lhe dão bons cheiros de salitre.
- Água!...
Pronto! Estava interrompido o idílio, em quase pleno êxtase, do casal contaminado pela atração carnal por detrás do balcão do armazém. Depois do susto, a reconciliação quase imediata das aparências. Se não fosse pela respiração arfante de Edson e Madalhena, até que o João Feroz acharia tudo muito normal.
- Vocês também tão com sede?...
O olhar amarelo profundo de João Feroz, apesar de apático, fez com que o casal se recompusesse com a rapidez de um raio.
- Ah, é você!... - Madalhena vai recolhendo algumas mercadorias do chão.
- O que você quer aqui, João Feroz - grita o Edson para aplacar o flagrante.
- João?... Quem é João?!!... - o olhar alienado do João Feroz persiste.
As suas grossas sobrancelhas pareciam um ponto de interrogação. O atual mendigo, folclórico antigo e quase malfeitor, parecia realmente não ter nem noção de sua identidade.
- Você... você não é o João Feroz? - pergunta Madalhena com todo tato do mundo.
Sem ter, no mínimo, a discrição de tirar os olhos do belo corpo da dona do armazém, João Feroz falava babando na barba grisalha.
- Eu só tô com sede. Tem água?...
Impossível negar alguma coisa para aquela figura tão áspera e de sentimentos tão doces. A aparência rústica de João Feroz era a contradição do arquétipo construído pela ótica alheia. Suave e contemplativo, ele conseguia conquistar as pessoas, apesar do seu aspecto medíocre. A baba lhe escorria do rosto, os dentes visívelmente podres, os cabelos ralos sempre grudados ao couro cabeludo e a pele que mais parecia uma parede com reboco a descascar. O nojo, no entanto, era esquecido quando o João Feroz falava. O tom grave soava em modulações quase angelicais.
E assim ele foi ficando naquela rua. Um homem sem bússola, perdido nos descaminhos da sua própria imaginação. João Feroz aparenta ser uma farsa. No entanto, a maneira e os gestos do que lhe restou, faz parecer que todo o seu passado é mais real... bem mais real do que a ficção imaginada, ou suposta, pelas comadres. A comunidade acabava de adotar João Feroz: um meliante de alcunha sombrio.
João Feroz virou um verdadeiro quebra-galhos. Virou João das Verduras, João da Rua, João do Pátio, João da Faxina, João Carregador, João Lixeiro, João da Vida, João do Mundo... tudo! Tudo, exceto João Feroz!... Perigoso??!! Tudo parecia ser folclore, ninguém poderia sequer imaginar o que de tão aterrador o manteve preso durante quase dezessete anos. Quem, em sã consciência, iria desconfiar dos instintos do João? Tão prestativo, tão calado, tão protetor com as crianças e com os idosos... Onde se escondia esse João, tido como feroz, que chegou a ficar encarcerado durante dezesseis anos, oito meses e dezessete dias?!!!
- Dezesseis anos, oito meses e dezessete dias?... Como foi que você ficou sabendo disso, Edson?
- Jornais da época! Olha o que eu encontrei no quarto onde ele dorme!...
Estava tudo ali! Um manancial inesgotável para um folhetim trágico. João, sem bússola nem memória, guardou, durante mais de dezoito anos, sua história estranhamente absurda.
- Eu sempre desconfiei de barbas que escondem cicatrizes! - grita Edson.
- Fala baixo, Edson! - diz Madalhena lendo os jornais.
- Aquele olho amarelo, então!... É olhar de quem não presta!!!
Madalhena folheava as páginas com uma avidez insana. Eram jornais amarelados e esfarinhados pelo tempo, pequenos pasquins sem qualquer qualidade editorial. Era notório que foi vetado ao João Feroz o direito a uma defensoria pública decente.
- Você leu direito a tudo isso, Edson?
- Só os cabeçalhos. Esse homem é um criminoso em potencial!
- Esse pasquinzinho de Lagoa Grande conta todo o drama dele.
- Esse homem saiu matando por aí indiscriminadamente...
- Só os adúlteros! - adverte veemente Madalhena.
- Seis mortes! Você acha pouco?... Não confie em gente de fala macia!!!
Edson, apesar de ser um homem radical, não tinha tanta culpa assim em prejulgar João. Apesar de ser um leitor de cabeçalhos, o perfil do João, feito por um jornal de grande circulação, era dos mais tendenciosos. Parecia até que os repórteres teriam se inspirado em épocas românticas do jornalismo policial, quando desfiguravam os criminosos até transformá-los em monstros!... Eram narrativas belas, mas falsas, elas impediam a dialética do suposto autor dos delitos.
Da cidadezinha de Lagoa Grande até a capital, foram cinco mortes. Cinco crimes premeditados com requintes de barbáries. Todas as vítimas, ao todo três mulheres e dois homens, eram adúlteros declarados. João Feroz passava meses a fio na cidade, estudava minuciosamente seus habitantes, tinha a sensibilidade de escolher o adúltero mais visado da cidade e estava feito o enredo da trama. Se aproximava, ainda de sorriso bonito, cabelos bem delineados e na moda, roupas de boutique e com a voz de locutor de rádio. Com alguns dias de convivência, ganhava a confiança da vítima que lhe abria a porta da casa, lhe dava a chave do bar e até o cobertor da cama. Nenhuma arma de fogo em quaisquer dos crimes. Estranho, não?... No entanto, os objetos mais estranhos serviram como o móvel letal, coisas como saca-rolhas, aparelho de barbear, canivetes de estimação, almofadões enormes e outros até mais cruéis. Mas, por mais paradoxal que pareça, a causa da morte era contundente: asfixia precedida por fortes dentadas.
- Esse João Feroz deveria ter alguma tara em especial.
- Ele tinha um motivo! - falava Madalhena sem tirar os olhos do jornal.
- Eu mantenho o que eu disse: Esse João é um assassino feroz!
- João Justiniano de Queiroz! - apurando a vista nas letras miúdas.
- Como?...
- Tá aqui no "Semanário de Lagoa Grande". João Justiniano de Queiroz é o nome do nosso João Feroz!
João Justiniano de Queiroz! Jovem, bonito, solteiro e concursado para assumir um posto de Gerente da agência do Banco do Brasil de Lagoa Grande. Com seu olhar de peixe morto e sua voz de travesseiro começou a ser notado primeiramente pelas senhoras dos fazendeiros da região. Algum tempo depois, como titular em um programa diário na Rádio Difusora de Lagoa Grande, passou a ser o locutor preferido dos sonhos de nove entre dez das garotas mais românticas da região. Apesar de chegar à cidade como concursado do Banco do Brasil, em sua ficha cadastral não constava nome de pai, mãe ou qualquer referência familiar. A única referência que consta no seu passado é uma velha pensão no bairro da Piedade: a Pensão da Coló. E se tentarmos atropelar os passos do imperseguível tempo, com toda a certeza, essa pensão já foi demolida e a D. Coló, com toda a certeza, nem mais pertence ao mundo dos vivos. João talvez estivesse preconizando seu futuro!... Quem sabe?
Apesar de ser requisitado em bailes e festas, ele tentava manter a sobriedade. Não bebia, não jogava risada fora de hora e nem era namorador. Do banco para a rádio, da rádio para o banco era o seu itinerário. Escorregões?... Os normais para um jovem de vinte e dois anos: a passageira que perdera o ônibus, a carta respondida de maneira dúbia e a Zuleica. Ah, bela Zuleica, a prostituta mais cobiçada na cidade.
Até hoje, nem sequer os diários das garotas da época explicam o porque, como se em um passe de mágica, João resolvera se casar com a Marieta. Ela era uma garota antipática, pernas finas, esquelética, adunca, voz estridente e com uma arquitetura de deixar Brasília com inveja! Marieta Samaranchez!... Suas poucas amigas comentavam, à boca pequena, que era o dedo médio mais fino da região. O que ninguém poderia imaginar era que, a feia e fogosa Marieta Samaranchez roubaria um "sim", em pleno altar, da voz que já fez acalentar vários corações solitários com os ouvidos pregados ao rádio. João Queiroz, pacato funcionário do Banco do Brasil, casara-se com a afogueirada Marieta Samaranchez, a filha feia do espanhol que caíra de pára-quedas em Lagoa Grande.
Amor? Não, aquilo não se tratava do sentimento que poderia acomodar a vida de um homem. O casamento acomoda o amor. Paixão? Não!... Nem João nem a Marieta perderiam o senso crítico do próprio ridículo. Tudo fazia crer que fora uma trama, muito bem engendrada, para arapucar o João Queiroz. Quem não queria ter como genro um homem tão próspero, não só no cargo de carreira, quanto em emissoras de rádio até do sul do País? E, cá entre nós, qual o pai que não queria ver uma filha desengonçada e troncha "encaminhada" na vida? Ou seja, empurrar a filha para os braços do primeiro caolho na cidade cega de Lagoa Grande. Na intenção de casar sua filha, o espanhol rico nem se apercebeu dos defeitos não anatômicos herdados pela Marieta. Tal qual o pai, ela havia herdado perversões e taras não vistas a olho nu.
Anos verdes do João. Era um João tão ingênuo a ponto de se encantar com a primeira responsabilidade. Era aquele João que nem esperava um tempo para gozar, no amplo sentido, as delícias de uma união conjugal. Como todo funcionário de carreira, pensava ter filhos e ainda acreditava piamente em um cargo de secretário no clube local freqüentado pelo pai da Marieta. Entre tapinhas e abraços, convicto de que ganhara uma nova vida, João Queiroz não mais atendia a passageiras perdidas na estação, não respondia mais às cartas insinuantes das fãs e nunca mais tivera encontros furtivos com Zuleica.
- Disseram até que ele fez voto de castidade para a rua! Coitado do João, vai acabar virando corno nas mãos da espanholinha - comentava Zuleica com inúmeras razões para invejar aquela situação.
É... realmente a vida foi muito ingrata para com o João. Sem passado, mergulhou no escuro da podridão humana e ainda continua nadando no mar da ingenuidade. E quando o João perceber que a Marieta é uma tarada em potencial?
O casamento ia em banho-maria, no entanto, o maior inimigo do macho é o próprio orgulho. Vocês já notaram que os animais só mostram interesse pela fêmea quando ela exala cheiro de sexo?... Por que é que com os seres humanos seria diferente? Os puros jamais deveriam se apaixonar! Eles são simples demais para distinguirem atração, envolvimento, paixão, convivência, acomodação e até horários para as obrigações conjugais.
Por tudo isso, João Justiniano de Queiroz estava cheio de sentimentos confusos pela esquisita espanholinha. E em meio à lua-de-mel, ainda trabalhando para ganhar um extra, deixara gravado na rádio o seu programa para chegar mais cedo em casa. Até chegara a comentar com um colega sonoplasta:
- Atenda os telefonemas para mim, certo Badalo? A minha Marieta vai ter uma surpresa madrugada a dentro! - disse João saindo do estúdio.
Pobre João! Atravessou a praça correndo e entrou em casa sem fôlego. Os gemidos vinham de dentro do seu quarto. Uma mistura de ansiedade, carência em afeto, fantasias imaginárias feitas quadro a quadro no cineminha de sua memória, fizeram com que João Queiroz sublimasse os ruídos de prazer oriundos da Marieta e entrasse direto e confiante no seu quarto, como se fosse o único a poder usufruir daquela tanta intimidade. Tragédia!!! Sem aviso prévio, João presenciou, pela primeira vez em sua vida, uma cena de adultério.
A traição nada mais é do que uma verdade não dita, um desejo ou gesto que aflora quando existem brasas sob as cinzas. Traição?... Ao pé da letra, ela não existe. O que há é a falta de palavras, músculos travados e rostos frios que deveriam demonstrar qualquer tipo de semblante, exceto o inanimado!... Na traição os corpos que se cobrem, se escondem e se encolhem de maneira tão fetal, que nem um analista poderia descobrir os desejos implícitos no "não" gesto, na "não" palavra, no pouco medo, na muita angústia em mascarar a verdade. Traição?... Não existe. Basta saber soprar as cinzas com cuidado.
Para que negar? O sangue subiu para a cabeça do João. Um curta metragem de cenas, dos poucos dias de casamento, foi projetado na tela cinza. Mas nada pior do que a acidez de vômito que lhe vinha à boca, nada pior do que ouvir gemidos de uma mulher adúltera, nada pior do que as lembranças das juras de fidelidade... era a certeza mentira. Tudo em vão!... Os homens deveriam ter mais tempo ainda para se conhecerem. E para que o casamento então?... "O casal já deveria vir formado de outras vidas!..." - chegou a pensar o lado espiritualista do João Justiniano de Queiroz. Contudo, o seu lado animal arreganhava os caninos da justiça e tinha as mãos cruelmente fortalecidas pelo desejo de vingança. Instinto?... Não sei! Uma metamorfose se apoderou do corpo de João, transformando um cidadão de fala mansa e de olhar doce em um matador de situação.
A leitura dos jornais estava tão interessante que Madalhena se viu obrigada a despistar Edson. Começou então a fingir uma indisposição de última hora, dando a entender ao amante que iria durar a madrugada inteira. Ela estava apaixonada pelo personagem João Feroz, a ponto de imaginar as situações, os cenários, as expressões, o pescoço sem ar das vítimas, as dentadas e o estrangulamento. Nada mais excitante do que morrer pelo pecado do adultério! Qual seria a sensação de ser descoberta por um fascinante assassino?... e deixar que a vida lhe fosse tirada pelo prazer usufruído por ter carne, por ter desejos, por ter alucinações lúcidas, fantasias palpáveis e total criatividade naquelas pobres produções?!!!
O sangue, o estrangulamento e o vômito a excitavam! Tanto e de tal forma que, inconscientemente, ela resolvera descer até o quarto do João Feroz a pretexto de por os jornais da época no mesmo lugar. E, entre o mergulho e a tona, algumas perguntas banais lhe vinham à mente: "Por que as mulheres fingem-se sempre indispostas quando não querem sexo?... Será que, privilegiadas em tantos atributos, não poderíamos tentar ser mais criativas?".
Madalhena entra no quarto de João Feroz. Cuidadosamente ela começa a guardar os jornais em um pequeno baú ao lado da cama. A idéia da morte e a sensação de adultério, ou a sensação de adultério e idéia da morte lhe rondam a mente de forma tão prosaica quanto as dos pasquins. O quarto feio a excita, as paredes emboloradas estimulam sua imaginação. Os insetos voam, mas não a assustam, as unhas grandes e mal cortadas do João Feroz estão visívelmente expostas sobre a colcha. Eram essas as unhas que estimulavam sua libido.
- A que devo a honra, D. Madalhena? - João Feroz interrompe o zumbido do vôo das asas grossas de um besouro.
- Que brincadeira de dar susto é esta, João?!!! - foi a única coisa que pôde dizer com o coração em sobressaltos.
João Feroz entra no quarto desconfiado. Não demora muito a perceber que os jornais estão estufando estranhamente seu baú. Ele se aproxima, levanta a tampa e, quase alienadamente, volta a por em ordem todo aquele passado exauridamente vasculhado.
"Ah, João, como será você?... Você não é só uma voz macia e um olhar amarelado de anjo saído do purgatório. Estas pernas arqueadas e este andar quase adunco devem esconder o homem sensual e envolvente do passado. Ah, se você pudesse me contar um segredo!... Qualquer segredo!... Não há nada mais íntimo entre um homem e uma mulher do que um mistério em comum: uma frase, uma história, uma vontade... qualquer coisa que sirva como elo de cumplicidade!".
João tenta amenizar os desconfortos de Madalhena. Tira do baú um dedetizador de ambiente barato e fica observando as coxas entreabertas da Madalhena, uma visão quase que celestial!
"Sei, você tá louca de tesão! Você descobriu meias verdades sobre mim, mas jamais me conhecerá por inteiro. Você trai seu Motta quando ele viaja e, enquanto isso, o Edson assume sem pudores sua condição de amante! Ah, uma boa subversão de valores!... E se os amantes perdessem algo como a libido ou, então, o sentido de direção emanado pelas fêmeas?... E se houver uma insurreição de traídos? A abelha mata o zangão em pleno vôo nupcial!...".
Madalhena fecha os olhos e faz um vôo cego na direção da porta de saída do quarto. Estranha aquele visco e vontade em permanecer ali: naquele quarto infecto! O mais estranho ainda, por mais surrealista que possa parecer, foi a sua adaptação ao cheiro do João. O olhar, a cama em desalinho, o corpo, a voz e o segredo não dito já faziam parte de uma conspiração da vida. O passado, a barba por fazer, os mistérios, a cicatriz escondida, os crimes e o cheiro de esperma na colcha transformaram aquele ambiente rústico em uma bela fantasia típicamente feminina. Um delírio bem ao gosto de Madalhena.
"Ter um amante passional!!! Que loucura, Madalhena. Ah, mas como seria bom!... Estou cansada de paparicação. Quero fazer amor com gosto de sangue na boca e não ter medo de mãos espalmadas. Que louca excitação! Prefiro o tapa ao beijo, o suor a lhe escorrer pelo corpo, a sua respiração em cio, sua arranhadura enorme de unhas... sua barba grossa roçando por todo meu corpo. Quero o prazer do novo, quero o João-vadio, quero o seu passado! Qual será a sensação de se deitar e fazer sexo com um personagem só descrito em folhetins? Qual será a sensação de ter orgasmo no exato momento da asfixia?...".
João se deita na cama de modo despachado, sequer esconde o pênis que aparece pelas folgadas aberturas do bermudão. Se desaponta ao ver temor nos olhos de Madalhena. Temor dissipado aos poucos, ao perceber que aquela adúltera fora por ele encantado.
"Toda mulher, lá bem no fundo, tem vontade de ser estuprada. Se assim não fosse, o que ainda estaria a Madalhena fazendo aqui no meu quarto? Ah, mas eu não darei jamais esse gostinho para ela! Tá perdida no tempo, coitada! Se esqueceu completamente que o seu Motta vai voltar de um vôo nesta madrugada. Enquanto isso, o Edson está nu na cama do casal! Sinto a tragédia... o ponto final. Não posso mudar o rumo da história... Madalhena será vítima do seu próprio adultério! Destino é destino. Está tudo traçado!...".
Uma quantidade enorme de artifícios passou pela cabeça do João para induzí-la a voltar ao quarto do amante. Pensou até em escarrar no chão do quarto ou cuspir sobre a cama; mas, sagaz como ele só, percebera que o quanto mais repulsivo fosse, mais aquela atração mórbida estaria sendo alimentada. A normalidade daquela sensação era o total descomprimir com a auto-estima, com a sanidade e com padrões de higiene.
Apesar de ser um quarto situado no fundo do armazém, os ruídos vindos da rua eram facilmente perceptíveis. João consegue ouvir algumas palmas vindas da parte lateral do portão. Madalhena, no entanto, está em total estado de transe e devaneio.
- Ouviu?
- O quê?...
- Tem alguém aí fora.
João Feroz chega a se preocupar por alguns segundos. "Impossível!... O seu Motta tem a chave da porta. Será que ele chegou antes do previsto?...".
Atmosfera de tensão para João. Seus músculos só se descontraíram quando ouviram uma voz rouca de mulher vinda do portão.
- D. Madalhena, me arruma umas folhas de alumã! Preciso fazer um chá pro Vadico - diz a voz pigarrenta vinda de fora.
De volta à realidade, Madalhena parece ter acordado de um transe. Vai até a porta, volta e olha para o quarto e para o João. A noção da realidade a escandaliza!!!.... O João só poderia ser um mago! Um homem rústico e doce, matador e sedutor, um estrategista ou um alienado? Como seria possível se envolver e se perceber atraída por um homem sem um pingo de dignidade humana?
- Vou já, comadre Miúda. Espera só um instante.
Da porta do quarto, ainda hesitante, Madalhena tira uma penca enorme de chaves do bolso. Não se sabe se ingênuo ou sádico, João ainda lhe pergunta: - Quer que eu cate as folhas de alumã?
Madalhena some definitivamente do quarto de João Feroz. Aviltada em seu orgulho, ferida por mergulhar em sensações, até então, desconhecidas, questiona-se pelo amor de meia hora. "Cínico! O João Feroz é um tremendo cara-de-pau. Menos complicado é entender um amante nu, enrolado em uma colcha de cetim quente, do que cair de cabeça em uma atração doentia por um marginal de voz doce!".
No seu quarto, João vira faxineiro para passar o tempo. Tenta limpar, até chegar à exaustão, os vidros empoeirados, retira a colcha suja da cama, dá uma geral no sanitário; enfim, faz de tudo um muito para que seu quarto fique apresentável. Junto ao baú, ele volta a guardar os jornais espalhados por Madalhena e começa a chorar quase patológicamente. No entanto, apesar do aparente desequilíbrio, não se esquece de olhar para um despertador velho, estratégicamente posto sobre um engradado de cerveja vazio.
As horas não passam. Olhos atentos ao despertador sobre o baú, demonstrando cansaço e tédio, João teima em permanecer atento. O ponteiro do minuto se espreguiça no mostrador, nenhum barulho no ar para quebrar a monotonia, até os insetos parecem estar em crisálidas! Eis que de repente, passos tímidos e receosos no assoalho da casa. João sorri e se levanta da cama. Até o despertador parece estar movido a adrenalina, tudo voltou a se mover na velocidade deste século. João mau?... João cínico? Será esse o verdadeiro João Feroz? Um homem com moldura de santo e intenções demoníacas?...
De uma coisa ele tem certeza: a tragédia começou a se consumar. "Aquele andar tímido era do seu Motta!". Há barulho de pés nervosos no assoalho. Madalhena fora descoberta em flagrante adultério. Com toda certeza, depois de rejeitar o lado oculto da atração pelo decadente, ela iria preferir o amante nu em sua cama de casal, embrulhado em cetins. Apesar de velho e decadente, João Feroz conseguiu armar uma armadilha moderna e ardilosa para recaracterizar o adultério. Há uma correria de pés no assoalho, um grito abafado e um enorme calar de barulhos.
"Ela não queria sentir prazer com asfixia? Pois então, tenha prazer tanto no gozo quanto na morte. Quem irá chorar por uma adúltera?..." - pensou João.
Quarto de Madalhena. Susto. Depois de dois lances de escada, em um só salto, João chega ao local do crime passional. Seu Motta chora convulsivamente sobre os lençóis de cetim; suas mãos trêmulas e finas passeiam por sobre o corpo completamente nu da sua adúltera, da sua ex-mulher, de uma paixão inexplicável dos bons tempos em que era apenas um comissário de bordo.
Da porta do quarto, João Feroz se esqueceu até do Edson. Ao ver o corpo nu e frio de Madalhena, ele entreabriu os lábios provocando, no seu íntimo, uma gargalhada incontida. Mais sádico do que nunca, João se aproxima do corpo de Madalhena. Seu prazer arrefece, seu riso esmaece ao constatar o semblante de adúltera. Os olhos de Madalhena resplandem felicidade, ela morrera feliz!... Talvez durante o orgasmo ou sendo asfixiada pelo próprio marido. Seus lábios ainda estão semi-abertos, mesclando assim o prazer e a fantasia, ambos alcançados... mais vivos do que nunca!!!...
"Decerto, toda a adúltera morre feliz! Mas a Madalhena está realizada. Meu Deus!!... Morrer para ela não foi castigo, foi um ato extremo de prazer!!" - constata João ao lado do corpo de Madalhena.
Polícia na porta do armazém. No seu interior, peritos, repórteres, um delegado, vizinhos e o João. Todos se amontoam na sala de jantar da família. João Feroz estava assustado com a presença dos policiais, cada vez mais rápidos no arrolamento das testemunhas. Relembrando os tempos idos de cárcere, João aproveita a turba e se refugia em seu quarto. Do quarto para a vida! Com todas as culpas do mundo na consciência, João Feroz foge pelo fundo do armazém, irritado com o riso morto de Madalhena. O crime se tornou um castigo!!...
Inquérito instaurado. Motta é julgado e condenado pelo "crime do Armazém". Edson comprara o armazém, mas os negócios vão de mal a pior. Fizera dele um bar e hoje é o seu principal cliente, se tornou um alcoólatra. E o João?... Onde andará o João, foragido desde aquela noite fatídica do "crime do Armazém?...".
João Feroz deixou de ser João Feroz, continuou sem jornais nem passado; só se faz lembrado quando há um carro para polir, uma porta a consertar, uma instalação elétrica por fazer ou faxina em regra em alguma casa da vizinhança. Nada mais existe do João Feroz, exceto a lenda. Hoje ele é mais lembrado como o João quebra-galhos, João desaparecido, e, com o passar do tempo, João-sem-rosto! O tempo é impiedoso. O João citado não tem barba, não tem o segredo da cicatriz, ninguém jamais poderá imaginar o quanto era doce a sua voz e quão sedutor era o seu andar adunco, quase um pedinte em busca de afetos anônimos. Como o tempo é ingrato...
Tempo chuvoso. O bar do Edson está fechado e em completa decadência. Quase pálido, pintura a retocar, amarras na placa... o prédio parece não suportar mais a ventania do dia nem a chuva da noite. Com a barba por fazer, Edson sai só à rua para constatar a derrocada definitiva. Eis que, de repente, seu olhar vê uma figura com andar de samambaia vindo dos altos postes de néon.
- Aquilo tem cara de tudo, menos de João Feroz!!!
E não é que era mesmo o João!!! Decrépito, velho, dentes mais podres e cabelos mais ralos. Doente, fraco e sem forças, mais parecia um quebra-galhos de si mesmo. Tossindo muito e doente de fome, ele se aproxima de Edson sem sequer reconhecê-lo.
- Me arranja um copo d água, Sr?...
Edson não disse absolutamente nada. A perplexidade do espanto o manteve imóvel. Como seria possível tamanha decadência em tão curto espaço de tempo?!!! Mais uma vez, João Justiniano de Queiroz chegava ali sem identidade, sem norte, sem passado; no entanto, estava vivo. Aquela degradação humana não pode ser considerada nem gente, é uma aberração amorfa que ainda tosse sangue, escarra pus e fala com extrema dificuldade. A voz extrai todo o ar de sua cavidade torácica, que murcha quando ele faz algum esforço.
João protege-se sob o toldo, em vão. A chuva vem rasante... em canivetes! Edson lhe estende o copo de água, ele segura trêmulo, com visíveis dificuldades motoras.
- Tenho fome!... Aqui não era um antigo armazém?...
O sentido de sobrevivência fora o que, com toda a certeza, o conduziu de volta ao - talvez - último lugar que o acolhera e abrigara. Edson entra constrangido e sai com uma lâmina inteira de presunto tirada do congelador. Em um impulso instintivo, ele resolve abaixar as portas e descer pela escada ao lado, até chegar ao antigo quarto ocupado pelo João Feroz.
Ao deitar-se na cama, tem calafrios de remorso. O frio toma conta do seu corpo, ele também desce a ladeira, está decadente. Vai até um espelho e passa a mão na barba por fazer. Da cama para o tocador do banheiro percebe que já anda com dificuldade. Edson entra em pânico. Por quê?... Por que não falou com João, não reconheceu sua voz e lhe ignorou completamente? Edson tem sobressaltos de consciência. Na verdade, bem lá no fundo, dar um abraço no João seria reconhecer o seu próprio cadáver!
Enquanto Edson arde em espasmos, João está morrendo do lado de fora do armazém. O presunto lhe cai da mão, mistura-se com a chuva e com o catarro. Não há mais tremores nem delírios. O corpo de João Feroz está preparado para encarnar a morte.
Há ainda vida nas ruas chuvosas. Eis que um cachorro faminto, pressentindo a morte, entra na luta pela sobrevivência ao sentir o cheiro do presunto ainda fresco. Proporcionalmente tão magro quanto o João, cheira desconfiadamente o futuro cadáver, e ao prever que não haveria reação alguma, puxa o alimento suavemente de perto do João.
- Ahhhhhhhhhhhhhhh!!!!!!!!!! - grita João Feroz.
O vira-lata não escapa da sanha feroz do João. Ele vê no animal um ladrão, um traidor, uma pessoa não confiável... um adúltero! Sem saber de onde resgatara forças, João ergue os braços, segura o cachorro e começa a mordê-lo violentamente; seus dentes podres saltam, se partem e caem no asfalto se misturando ao catarro e ao sangue. Inconformado ainda ao perceber a respiração do animal, João aperta forte seu pescoço até que, finalmente, ele perceba a sua total agonia e morte.
Vira-lata morto, João agoniza e vai morrendo vendo a chuva caindo e o presunto no asfalto. Ele também fora vítima deste embate. João Feroz está morto. É... foi o instinto!








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