A paixão avassaladora de um pai por sua filha,
que morreu jovem e baleada.
PONTOS INICIAIS
Infeliz daquele que, ao listar os melhores li-vros do seu tempo, não cita romances ou poemas — vive, certamente, num ambiente nefasto, que dá azar. A perso-nagem principal deste pequeno romance foi-me de difícil apreensão, pois tive de lutar contra preconceitos íntimos e houve necessidade de que nós, autor e personagens, nos li-vrássemos das peias do nosso tempo, rica em estruturas di-tas adultas e que se autodeterminaram consertar o mundo, mas que, invariavelmente, degeneraram em violência. O li-vro trata também de uma especial relação de amor, que a muitos é tida por degenerada: a paixão avassaladora de um pai por sua filha. Conto a história exatamente como acon-teceu, cheia de meandros e detalhes constritos pela ambien-tação da hipocrisia humana — que, confesso, quase destru-íram o que havia de doce em minha alma.
Mas quem passar pelo torpor das dez pedras que são colocadas ao longo do caminho, chegará ao fim.
CONTATOS IMEDIATOS
Perdão, filhinha, mas o Inglês vai romper o pacto de silêncio: Marina era filha legítima de Cordeiro de Deus e amante de Cláudio, o irmão mais novo e desconhecido.
Pintado na tragédia de Penápolis, não suportou a revelação hedionda feita por Misses, tomada por ciúmes descontrolados, e que hoje vive desesperada, cravada no espinho do remorso, pela alegria ceifada assim tão cedo na vida. Dizem-na "A Louca de Londres", mas quem saberá com precisão o que sofre?
Minha filha morreu de preconceito, essa coisa inde-cente.
O Inglês Nojento
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... e os peixes-voadores, os tubarões, as gardênias e as orquídeas, o sol, o leste do Estado e o cimento das cores vestiram-se de luto-arlequim, no branco das pétalas das flo-res, nessa estrada de Nossa Senhora Aparecida, a santa bra-sileira que também consolou e amou meu pai, que ama "Batom e Ruge" e suas histórias.
Beijos e estrelinhas, papai, também reconheço esse anódino lábio azulado, intenso colar de metáforas.
Seu doce dente de pérola, Marina
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Eu tenho muito pouco a dizer além da palavra per-dão, mas você vê, eu já não enxergo,
"Gota de Sangue."
Louca de Londres - A Zarolha
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Uh... Uh... Uh... Uh...
Sinto, Bert, ninguém já o consola.
Talvez o dinheiro.
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Cláudio morreu de tubarões
numa enseada da Irlanda.
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O Inglês não escreve em português e não gosta de gente de circo.
Assinado:
Louco da Lanterna.
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... leia a história de minha filha, que morreu jovem e baleada.
O autor.
A MORTE DE MARINA
Havia um toque de Deus no olhar daquele homem, pregado ali no meio da rua. Um quê de indignidade igual à dos homens simples, e que ainda não perderam a fé nos fi-lhos do Pai. Não que a morte de Marina, ainda há pouco sob a neblina fria da manhã, pudesse fazer mais estrago nos nervos do pai que nos do amante, mas aquele homem sofri-a.
Um sofrimento resignado, parecido com o dos con-denados que marchavam para as possibilidades da morte que grassava nas montanhas geladas a norte do Tamisa. Montanhas solitárias e sem volta, onde a foice é uma fer-ramenta que rompe de imediato a ligação do ser humano com o mundo e, no mínimo, quando inexata, deixa cicatri-zes.
Imagino que o leitor perceba, pois Cláudio pensava na infinita capacidade do ser humano para adaptar-se a toda sorte de privações, mesmo àquelas que num olhar desavi-sado possam parecer desumanas ou cruéis.
— Nada disso! Nada mais odioso que o tédio insu-portável dos tempos de paz, pensava lá com seus dedos e botões o homem de terno impecável, e que tinha o estranho franzido de "Deus em Estado de Mácula" dentro do olhar.
Eram olhos fundos, graves, e de grossas olheiras, o olhar dAquela Coisa parada no meio da rua.
O amante e o algoz de Marina.
O pai, um gigolô cujo centro do mundo parecia si-tuar-se no meio das pernas da filha, era um filho da p..., um cínico das circunstâncias.
Cláudio gostava daquele cheiro de rua fresca, cin-zenta. Tragou profundamente o cigarro, rebordou o olhar típico dos miúras e deu um tiro nos acontecimentos.
Ejaculava pelas narinas, mas respirava calmo e afi-ava os cascos.
— Por quê, Cláudio, por quê?
— Lancelot das Águias, "se lembra", papai?
Parecia um boi, essa é que é a verdade.
Não saberia dizer se era o frio ou o âmbar suave da nicotina que envolvia o ambiente, pois Marina uivava den-tro daquela cena: afinal, sexo e castidade nunca foram se-gredos para a amante de Cláudio e a serva do Pai.
Nada etéreo, pois eu me fazia acompanhar de dois investigadores e comparecemos ao enterro de Marina. De tudo e de todos desconfiava: estava no féretro de Fada Ma-rina, minha doce filhinha adorada, que morreu jovem e es-taqueada nos nervos de Cláudio, esse garoto que tinha chei-ro insuportável de dálias. Ninguém comentava.
Apareceu no enterro um cigano com cara de cera e dentes amarelados, entrando pelos cantos de uma luz mor-tiça e acompanhado de um séquito próprio de gente mam-bembe do cais. Abriu calmamente uma maleta de couro macerado e retirou uma flauta. Pôs-se a tocar sobre o cai-xão de minha filha e entregou-se a uma dança estranha, ao mesmo tempo em que se reclinava sobre o corpo, invocan-do sua presença. Eu já estava para interferir, quando uma mão calma, pressionando-me os ombros, alertou que eram amigos. Essa gente era amiga de minha filha e faria a cele-bração do corpo.
De forma lenta, mas firme, a música foi envolvendo e inebriando. Injetei cocaína.
Do mesmo canto da luz mortiça surgiram as cobras e um tambor começou a tocar dentro da minha cabeça.
Veio a cascavel, a turbina rodando nos ladrilhos. Estacou no bote, armou no guizo, e rodou novamente nos ladrilhos. Jogou no flanco do ataque, controlou as vestes na castanhola, as espanholas rodaram nas castanholas e caíram nos cantos das pedras. E as cobras nos foram amigas: veio a jararaca, sibilando no ar, engastando no ar, veio rasteira e explodiu no ar a dança das cobras, nos ladrilhos. Os toques rápidos das línguas, os beijos diretos, instáveis no ar, nos cantos da boca, nos olhos, e deitaram lentamente o corpo nu de minha filha nas pedras molhadas do cais. Incensa-ram-na.
As pessoas que usavam colares, tiveram-nos rompi-dos, e os olhares altivos foram amainados.
Os bicos dos seios de minha filha morta intumesce-rem e foram lambidos pelos decotes, nas bocas das feras engastadas. Sugaram-lhe um leite esverdeado. Houve um risco de fósforo que iluminou na faísca dos olhares, e saca-ram de facas, esculpindo, à força, o relevo do talhe de Ma-rina nos postes de concreto do cais. As serpentes incendia-ram-se acima do corpo e, face a face das cobras, o corpo de minha filha ergueu-se, vertendo sangue em cascata, brotan-do das flores que cobriam o caixão. Em todos, Marina pin-gou gotas de suor, metalizando os detalhes das expressões. Lembro-me disso como se fossem fotografias. Tiradas as-sim, de forma estranha e “contra a corrente, furiosamente em direção ao passado”.
E a música continuou forte no féretro, sob o aroma ácido das feras. Serviram gim seco ao som das tubas e cai-xas, e poliram o brilho cerâmico dos olhares, ao fogo de-sesperado do ritmo das castanholas, no seu renitente “blec-blac”...
Estranho é que não me assustei: embora não conhe-cesse aquelas pessoas, conhecia muito bem minha filha, e um comportamento irreverente e complexo assim era de se esperar da parte dela. Até porquê, nessa época da minha vida, pouca coisa que era do mundo podia assustar-me.
A INFÂNCIA DE MARINA
Em Cunha, no chifre leste do Estado, existem gar-dênias açoitadas pelo vento, no sol típico do pino de verão. O vento ainda bate pela tarde, que procura Paraty.
— Quando vem de lá, daquele taquaral, você levan-ta vôo e toma o rumo de Salesópolis, serpeando no Paraíba. Contorna São Paulo no plano do Campo de Marte, avança no planalto e desemboca na majestade de um vale, ainda a reboque da tempestade. Deságua direto no centro do Estado Paulista, rumo noroeste: é onde o rio Tietê adquire a carac-terística de um rio de verdade, o território da mãe de Mari-na.
Somente assim, na linguagem cifrada de pessoas urbanas que não precisam das horas, é que pude saber um pouco sobre a vida da Serva.
Teria nascido ali, um lugar desses cheio de rio e ár-vore que os urbanos adoram e os nativos odeiam. Filha de pai desconhecido, de mácula circense, o que por enquanto basta para dizer do tipo de gente. Não que o circo, em si, trouxesse algum perigo para as donzelas da época, mas o Inglês odiava circo, e observe que repito a palavra "odeio". Ela traz embutida o tom exato do Inglês, quando sonhava sumir do mapa e enganava a “Sueca”, a mãe arrumada às pressas para a garota de sardas e conchas que chorou no céu de Juquehy.
Teria partido sem dizer palavra e deixara uma caixa cuidadosamente embrulhada no centro da sala de Cordeiro de Deus, o provinciano, e de quem diziam que era, por as-sim dizer, afeminado. Aquela caixa ficou uns tempos fe-chada — insisto, sem dizer palavra — olhando para a ima-gem das andorinhas de louça barata, coladas na parede.
Parecia desafiar os pingüins, calados em cima da geladeira.
E foi juntando gente.
O que teria deixado Cordeiro, o afeminado, para o Inglês Nojento?
O tempo foi passando, uma semana talvez, e nin-guém abria.
Nem tinha cheiro, a maldita caixa. No burburinho que se formara, as beatas levavam nítida vantagem, pois eram muito mais realistas que os casais de namorados, i-maginando um presente ou carta de amor.
Poderia ser, mas não foi.
Que surpresa reservara o Inglês, gente de circo?
O mistério da primeira pedra?
A coisa foi tomando um certo vulto e ninguém de-sembrulhava. Houve gente que jurou que ela mexia, tremu-lava de vez em quando. O fato é que nunca entenderam mais nada, após a revelação daquela estranha prenda.
"O medo se instala assim, meu jovem, lento e insi-dioso, e é propício à fantasia..."
Quando, finalmente, a própria mãe da serva encheu-se da coragem típica dos condenados, um golpe rápido de vento levou a caixa para o lado de fora, derrubando o vaso de vidro barato, com flor de plástico.
O movimento ganhou vida própria...
Nada que lembrasse as festas de reis de Cunha ou de São Luís do Paraitinga, mas um girar trôpego, mais len-to, engasgado até, que não desenvolvia. Arrastado, estra-nho, aos solavancos. Um jeito de uma cobra mal matada, se é que se pode ser exato.
Qual não foi a surpresa da vida no local quando a caixa, depois de aberta, liberou um cheiro simples de gar-dênia, que retocou o vento apenas levemente: soprou direto na boca do Tietê, apontando o sertão paulista. Vuumm... vuumm...
Alguns até peidaram e saíram pulando e dançando como arlequins dizendo herr... herr..., levando as mãos às bocas, em gesto de recato no território dos jecas.
Tudo tão simples assim.
Como uma lágrima.
Gente louca, mas adorável.
No meio da praça, A Zarolha, de quem dizem “A Louca de Londres” (cujo nome um dia teria sido Misses), e onde ainda se conta a história da mãe da criança, que mor-reu de sabres e carabinas; abandonada pelo Inglês, esse tipo de gente nojenta de circo, como você já sabe.
A mãe, matada de quatro, esticada na segunda pe-dra. Estamos ainda na segunda, oito mais ainda virão: serão marretadas.
ADOLESCÊNCIA
A grua da câmera parecia uma cobra. Entrou pelo enorme rasgo que o sol abria na paisagem de Juquehy, tudo tão longe na vida de Marina, que a garotinha que tinha sar-das e brincava na praia de sardas ou de conchas parecia a fusão de um diamante: era a filha de um qualquer, de um de nós.
Não que o dedo de Deus fosse importante na con-cepção do momento local, mas o Inglês que se casara com a mãe arrumada às pressas, a “Sueca”, não suportava o ca-lor tropical e entrou no navio muito mais cedo do que pro-metera, levando Marina junto. É onde nossa viagem come-ça.
Marina tinha apenas onze anos e um olhar letal.
Nada que prenunciasse a inocência do laço de fitas, no colarinho de seda sempre branca, adornando o sol de Juquehy, mas o doce, o macio hipnótico dos olhos refletin-do conchas e sardas. Tomou consciência disso muito cedo, desde sua "segunda vez":
— Em nome do Pai eterno, do Remir dos Pecados, que agora a converte na Serva do Cristo, promete nunca mais..., e o padre calou-se.
Por dentro da neblina que o confessionário impunha ou exalava, o homem novamente calou-se e sucumbiu ao transe complacente daquele olhar que isentava o pecado, porque carregava a inocência da absolvição.
Aquele olhar...
Ainda nova, Marina agradeceu à “Sueca” pela edu-cação celta que recebera e esgueirou a mão pela batina que exalava suor e medo.
O silêncio foi longo. O contato não houve. Um lon-go suspiro, por entrevéus.
Marina entendeu por que vinha: ela expiaria a cul-pa, já que não adquirira o complexo.
O padre a amava, onde o erro, a luxúria?
— Eu lhe perdôo, filha, em nome do Pai, do Filho e dos cínicos, eu lhe perdôo de séculos de dureza e contrição. Não há pecado onde não existe vida...
Era um padre diferente, aquele, mais amado e mais dentro do mundo. Apaixonado pela Fada e barrado pelo Confessionário — ambos sofreram de toques proibidos. E antes que a cena pudesse adquirir um passear erótico, Ma-rina afastou-se com seu olhar de cobra ou de cabra, nem saberia dizer, pois a cena foi de tirar o fôlego, meu amigo.
Um sorvete de morango selou aquele primeiro na-moro que lhe fora sonegado e muitas vezes depois repetido nas paróquias de Juquehy: jovens tardes de outono, onde os moços perdem a inocência e vão lentamente se converten-do em adultos, seres movidos a complexos de culpa.
Marina não tinha culpa, não adquiriu a falsa consci-ência do pecado e era feliz em gaze e neblina.
"Não pode haver pecado onde não existe culpa”, já repisava a simplicidade das fadas litorâneas.
A cena abotoou-se num colchete, e afundaram a terceira pedra.
***
Em alto mar, no enjôo das ondas do Médio Atlânti-co, o Inglês cuspiu o olhar de cão raivoso embebedado pela calma da filha e ligou o rádio de ondas médias, sintonizado na costa brasileira: o vômito do olhar não foi mais do que um retesar lento, que levou o corpo para o cachimbo de ó-pio e as agulhas de cocaína. O Inglês, além de fútil, morria de amor, essa doença que imaginava só matasse latinos. In-do — e não voltando, diga-se de passagem — parecia so-frer de "banzo", embalado nas ondas da Rádio Oceânica, que transbordava Marina.
O barco tomou o rumo das correntes que o fizeram desembarcar na Inglaterra e penetrou no submundo frio da escória inglesa, que é por onde a história recomeça, com introdução conseqüente.
MOÇOS VENENOSOS
Marina, como você já sabe, odiava médicos e não suportava gesso.
Eu poderia arrancar uma lágrima copiosa do leitor, colocando a menina de sardas numa situação lentamente trágica, mas irei direto ao assunto: o baque foi surdo, rápi-do e seco. Não deu chance, foi tudo de uma vez, e Marina acordou zonza num leito de hospital, com a perna direita engessada.
— Não sei não...
— É grave, doutor?, perguntou Marina, completa-mente letárgica e paralisada pela dor.
— A pancada foi violenta e pegou na cabeça, o que não dá para entender é como foi quebrar o osso da perna... e as funções vitais, foram preservadas? A respiração, o o-xigênio, tudo foi tão rápido... (o médico não percebera que Marina acordara e continuou o colóquio com a enfermeira sobre isso, sobre aquilo).
Nada que pudesse esclarecer, mas, por via das dú-vidas, recomendou repouso absoluto no hospital, por dez dias. Dez, observe.
Foram os dias mais terríveis que Marina viveria.
Comia um arroz sem nada, misturado com chuchu sem tempero. E, além disso, o gesso pressionando. No dé-cimo dia recebeu alta, mantida a condição de voltar na pró-xima semana, coisa que evidentemente não fez.
A noite de Juquehy restabeleceu o ritmo, e a moça de sardas encontrou o médico, um jovenzinho iniciante que acreditava no que dizia, pois não houvera ainda sofrido o vergaste do tempo. Uma simples "cuba-libre" soltou a lín-gua do Senhor Dez, que é mais ou menos como Cláudio se imaginava. Começou uma conversa que Marina não podia estar ali naquela mesa, já sem o gesso, não podia comer carne, comida gordurosa, não podia beber, e não, não e não.
— Não! E enterrou a quarta pedra.
Marina achava que esse era um dos equívocos das amizades, impiedosamente ignorado nos tais botecos hu-manistas: a restrição do prazer. Talvez seja por isso que re-solveu virar fada: a proposta de Cláudio era de uma vida de muito não. (Dez, Marina).
Quando você comer um bife, daqueles sangrentos que os vegetarianos odeiam, lembre-se de que a opção de comer capim ou carne é sua, e que Marina não ligava para essas tolices de garotos que citam pesquisas e dormem muito pouco, geralmente drogados e tarde da noite.
Se ela não ligava, por que você ligaria?
Marina partiu e deixou uma receita que transtornou o jovem médico:
— Um pouco de tudo e de tudo um pouco. Muito da carne humana, sem culpa, geralmente servida em bande-jas de prata e lenços de seda. Assim como eu aprendi com ela, a minha mãe, e de quem um dia você saberá a história.
Era de uma petulância insuportável, aquela garota.
(Dez, Marina).
Sentada na cadeirinha de praia, com as pernas repu-xadas e dobradas no joelho, num enroscar absorto que só a vestal sabia dar, fixou o olhar no horizonte e permaneceu completamente imóvel. Desafiava a maresia, afrontando o vento oceânico. Cláudio não sabe se estava bêbado, aliás, Cláudio sempre pouco soube, mas viu nitidamente quando começou a sair fumaça daquele transe, da boca, dos olhos, das narinas. Apenas enganou-se na fumaça, pois era nebli-na, coisa que só veio a perceber mais tarde, quando se sur-preendeu deitado na praia, olhando as estrelas.
Marina comentou:
— Vê aquela lá, na sideral da Ursa Maior?
— Aquela que brilha um pouco mais?
— Aquela sou eu, Cláudio. Tenho certeza. Papai sussurrava isso deitado aqui, nesta mesma praia...
(O cão feroz insinuou-se novamente...).
Marina olhou de lado, como que procurando um o-lhar na escuridão e sentiu o arrepio mortal, impiedoso...
Enroscou um pouco mais o corpo nu nas pernas do jovem médico e perdoou a inocência do enfeite, que fingia não perceber o quanto o patamar de sua vida mudara. A boca de Marina foi descendo pelo pescoço, roçou no mami-lo e tomou rumo sul — Cláudio subiu nas estrelas e nunca mais foi o mesmo.
Dizem que se tornou um excelente médico, pois começou a considerar o complexo da vida de verdade, em todo o seu trabalho. O estranho é que, na vida que se vive, era um Cláudio pós-desvirginado e atônito. Tornara-se a-dulto pelos seios e bocas da Fada do Litoral, mas magoara-se pela liberdade que obtivera. Você sabe, a maturidade quase sempre cobra um preço doloroso, principalmente de gente fresca.
Dois irmãos, opacos imolados, na quinta pedra.
No vagueio da mesma mãe, matada de quatro, esti-cada nas quatro pedras.
Na soma das estacas: dez pedras.
Dez facas, enterradas no peito.
Assinado: O Inglês Nojento.
A MOCIDADE EM LONDRES
— Não sei se você concorda, mas essa Lady não tem jeito de uma franga? Sei lá, um jeito meio destroncado, que vai colocando um corpo alto, esguio, bonito até, mas num rosto suave demais, numa boca correta demais... Pare-ce uma franga, declarou.
Marina nunca suportou o bafo da garça inglesa, a-quela medonha do quarto andar, que parecia ter três olhos: dois para fora e um para Cláudio. Não que o ciúme torrasse as noites calmas de Marina, mas ele não tinha a sua matu-ridade e não a deixava dormir, de tanto que brigava com a cama.
— Não sei não, mas que parece uma franga, pare-ce..., e meteram a marreta na sexta pedra.
A porta batida com violência acima do comedimen-to não deixou dúvida: era Marina que chegava e foi logo expulsando as comadres inglesas que viviam convidando para um insuportável chá das cinco, típico de garças que vivem com ciúmes de frangas.
Marina era jovem e tinha o frescor de uma puta bra-sileira: não suportava o "ronca-e-fuça" de comadres de an-dar, dava por dinheiro e fazia do sexo um meio de vida ao qual se dedicava com afinco, mais por princípios que por necessidade.
Não se sabe direito, pois Marina falava pouco. Quando feliz, abria sempre um largo sorriso de dentes de pérola. Um jeito de se vestir vulgar para a época, mas a-prendeu rapidamente que a seda realçava melhor a curva do seio impecável.
E tudo era assim mesmo, Marina fazia sucesso nes-se espaço que medeia: nunca poderia negar que era filha do pai, um inglês sórdido, como vocês já sabem.
A cultura litorânea não permite crianças que se cri-am ao vento: “ou você é rico, ou você é pobre; ou você é lacaio do rico, ou você se ferra”, teria dito um dia.
Filho de peixe, peixe é, maninha.
Se o leitor chegou até aqui, não tem mais volta, pois vamos entrar nas tragédias que ocorreram com minha filha no mundo dos adultos.
É hora de decidir claramente se continua ou não, pois não haverá concessões.
A chave de fenda que aperta o parafuso que Marina desregula será quase sempre um exercício de metáforas, as-sim como as cervejas.
Coisas vagas, tomadas calmamente nos botecos humanistas.
Tédio é a palavra correta.
Você sabe do que estou falando: um lenço de seda vermelha, despencando por sobre o metal do desejo come-dido, dá impressão de sangue em qualquer lugar do mundo, não dá? Daqui para a primeira menstruação dela é um pulo, e tudo pode ser entendido como uma homenagem à fragili-dade da mulher nova, não tipo franga ou potranca, mas pu-ta mesmo. Daquelas que nos povoam a infância, e que só nós sabemos o quanto amamos.
Procurarei não ter frescura e serei respeitoso, embo-ra possa perder o controle: Marina é a mulher que sempre amei. Condescendência ou explicações de barbudinhos de fala mascada, quando babam que as "louras" são burras, se-rão sempre um comportamento que considero ofensivo.
Vulgaridade é um traço da existência, gosto dessa mulher, que dizem vulgar.
Discussões desse tipo são abaixo da crítica e Mari-na é loira.
Bonita e loira, o primeiro passo da tragédia.
Os demais desvendam-se por si, nos próximos capí-tulos.
SERES ADULTOS
— Entende agora por que tenho ódio de gente de circo?, disse a ágata inglesa, no seu "flat" impecável.
Colocou a xícara de chá sobre a toalha que flutuava no ar translúcido da manhã luminosa do mais puro chão londrino e voltou-se para Cláudio:
— O pai verdadeiro, um tal de Cordeiro, deve mo-rar em Penápolis, naquela rua onde você ainda vê uma gota de sangue. Só não entendo por que um pedaço de mim morreu junto com ela. Aquele olhar, aquela postura admi-rável... não eram de Bert, esse palerma que não fala e vive enterrado nessa poltrona aí do lado. E nem poderia ser do Cordeiro, um macumbeiro afeminado! Quem diria, você, o “meeeeuuu” Cláudio, filho de um macumbeiro afeminado! E ria enquanto falava, mas Cláudio aparentemente não li-gava, acostumado que estava ao gim na vida de Misses. E ela continuou, pensativa:
— Mas você é tudo do pouco que me resta, Cláu-dio, e ambos sabemos que só Marina nos uniu. É possível que a morte dela nos separe. Misses começou a fazer um docinho de choro...
— Nada que seja assim tão simples pode explicar a morte do nosso lenço de seda, Misses... ainda acho o maldito Inglês, se estiver vivo. E ele terá que dar muitas explicações. Quem poderia imaginar que, ao chegar em Juquehy e matricular-me naquele internato, sumiria? E que nunca mais daria notícias? E que deixaria Marina, minha irmã, veja bem, Misses, minha irmã!, nas mãos da “Sueca de Juquehy”, uma gente daquela categoria? E que eu cresci e vim para Londres sem sequer saber que Marina era minha irmã, Misses! Você consegue entender a extensão do pro-blema, Misses? Marina era minha irmã! E pensar que me apaixonei por ela, cheguei a ter relações com ela, meu Deus! E Bert, quantas vezes, quantas pessoas, Meu Deus! Admito tudo, mas relações entre irmãos, Misses? Ainda bem que forcei o aborto! E se o filho fosse de Bert, hein? Jesus! É melhor que ela tenha morrido, mesmo!
— Ora, Cláudio, não seja dramático. O Inglês era apenas um garoto naquela época e, ao que soube, vivia drogado. Era gente de circo, gente sem parada. Colocou você no internato, Marina na mão da “Sueca” e desapare-ceu. Você teria feito o mesmo. Pouco se soube sobre ele, até que, após a morte da “Sueca”, apareceu na vida de Ma-rina e trouxe-a para Londres...
— E você acredita que a trouxeram para Londres porquê? Dinheiro, Misses, dinheiro! Certeza que sabiam da fortuna de Bert e que me procuravam! E acabaram achan-do, foi naquele café, lembra-se? Um encontro ao acaso, a-parentemente tolo e inocente. Depois, Marina entrando na nossa vida daquele jeito, do jeito que entrou... ela não en-trou, ela tomou conta da nossa vida! E o Inglês sem dar no-tícia... não lhe parece estranho?
— Ora, Cláudio, você é muito imaturo, paixãozi-nha. Marina nos fez bem, e cuidou de Bert de uma forma que jamais eu cuidaria...foi uma luz para nós, amorzinho... vem... pena que morreu... peninha...
E Cláudio continuou remoendo paixões ínfimas e cruéis, próprias dos seres humanos em estado de choque, enquanto Misses carregava no gim. Aliás, Cláudio vivia em estado de choque, dava importância a coisas que não têm importância e só pensava na morte de Bert. Beliscava qual-quer galinha que visse pela frente. Era um coquete irreme-diável, mas, por essa época, simpático. Não sei se seria ca-paz de matar.
ADULTOS VENENOSOS
Como você já sabe, o dente era de pérola e a ino-cência de sardas e conchas. Criou-se num ambiente mistu-rado, o que formou uma visão cosmopolita. Era culta. Uma puta brasileira, o esmero de uma geração, agora morta e ferrando a vida de Misses e obcecando Cláudio, esses a-dornos que a vida precisa para se realizar.
Como viver, meu amigo...?
Teria Marina deixado uma filha?
Uma dessas garotas de colégio que nos encaram a-inda no verdor dos treze anos e nos deixam tontos, sem fô-lego?
Impossível que não, ela esteve sumida uns tempos, voltou tão azulada e fraca, nunca a tinha visto assim.
— Só faltava uma filha!
Uma filha Não!
Um enorme Não.
Um Nunca, um verbo jamais, Marina!
Não foi uma filha.
Teria sido um pensamento não correspondido de ter uma filha, o que é absolutamente diferente.
Um aborto de filha, para ser exato.
Marina já fizera vários, mas ela queria aquela crian-ça, implorou. Colocaria um nome bonito, sonoro, toquinhas coloridas e tudo, mas acabou perdendo o bebê, desassistida em algum lugar inóspito, sozinha e longe de Cláudio, de quem nunca mais seria como fora antes.
Admitiu tudo, tudo sempre aceitou, mas um aborto solitário foi incompreensível. Ofendia o mundo.
Cláudio saboreou o vagar do pensamento e partiu para cima de Misses, que já se despia e suava. A ágata in-glesa era fogo. Correu a mão pelo corpo de Cláudio e loca-lizou muito rapidamente o que precisava. O corpo teso da inglesinha não dava moleza. Colocou-se por sobre o de Cláudio, ainda semi despida, e perpetrou uma cópula que só Marina poderia inspirar, naquele triângulo perdido de Londres. Com a intensidade do gozo, qualquer um juraria que fez neblina, envolta na gaze de Baco.
— Por que não deságuas, Cláudio?
Disse isso de forma estranha e solene, com os olhos entupidos de gim ou mágoa. O lábio era grosso e úmido, de contorno perfeito e beleza reticulada. Afinal, não era à toa que Misses compunha o vértice de Marina: parecia chorar, enroscada no lenço de seda vermelha, cavalgando o corpo nu do jovem médico.
Uma faísca saiu do olhar dissimulado, coisa que Cláudio não pode notar, ele tinha resquícios de Deus, você sabe.
(Ao que se conta, Misses também não queria aque-la filha de Marina).
— Não sei, Misses, este relacionamento não parece sem frescor, sem nossa "Gota de Sangue?"
"Ah... que seio doce, agora mordiscado, lambendo os lábios da puta imaculada."
E foram suando e falando palavras vulgares em meio a frases exóticas que gozaram aquele instante na au-sência da Serva, que brevemente se vingaria.
"O cálice do veneno é uma coisa que se sorve aos poucos, meu caro."
FOLGUEDOS ADULTOS
Os dedos de Bert tamborilavam no volante macio da BMW que vencia os fiordes chuvosos a norte de Lon-dres. No rádio, "Pink Floyd" tocava "The Wall", e Bert a-chou que pudesse fumar, embora os vidros estivessem to-talmente fechados por causa do frio intenso. Misses não se importunaria, já que dormia como pedra, e ele poderia re-memorar o longo trabalho que acabara de fazer, pois teria pelo menos meia hora pela frente, até chegar à cidadezinha à beira-mar, onde passariam o fim de semana.
Vã tolice, pois Misses tinha um nariz de ágata e lo-go protestou contra o excesso de liberdade. Apagou o ci-garro na língua, de lavada, e houve tempo de sentir o macio do ar que sugou a fumaça, enquanto se produziu um ligeiro vácuo no cinzeiro hermético.
O rádio saiu do ar, e a estática interferia.
Estranho... mesmo horário, mesmo dia do acidente de Marina...
Transes oceânicos...
O espetáculo estava pronto e ia começar. O carro estalava.
Bert procurou nas ondas do rádio a música lenta e acariciou os seios da jovem esposa, que se enroscara no ca-saco de pele e aparentava dormir; mas a estática despertara Misses, que estava com fome, excitada, e ela reagiu imedi-atamente ao toque do esposo.
O sibilo da vestal, o sonho metálico dA Erótica, a caçadora despertada...
Parecia confusa, mas decidida.
Arrepiada, ansiosa, já se despindo, como se o casa-co pesasse.
Decidida, repito.
Que mal haveria? Eram jovens, na plenitude da vi-da, e seria praticamente impossível que um guarda mais ri-goroso não compreendesse, se fossem surpreendidos.
Misses, de boca sempre reticulada e úmida, enros-cou-se um pouco mais. A força do aperto dos braços fez saltar um decote de seda, de onde se derramaram os seios perfeitamente róseos e torneados, desafiando Bert.
Sorria a 150 por hora. Perdeu a noção do perigo...
Bela como poucas mulheres no mundo.
Sorria leve, maliciosa, retirando a calcinha de renda fina, aromática, de um rosa divino, peculiar. (Meu Deus...).
Aqueles seios desafiavam!
— Oh... Bert, querido... e avançou como gata no ci-o, sempre em direção ao sul, que é por onde as fadas come-çam.
Lambendo primeiro a glande, depois espiralando e descendo de forma ritmada, foi engolindo tudo, permane-cendo com o pênis inteiro na boca. Começou a sufocar, en-roscada nos botões da calça de Bert, pois a excitação não deixou tempo para nada. (Misses sempre adoravelmente a-trapalhada...).
Bert confundiu o sufoco com o gozo e pensou em falar espera (!), mas tudo já estava sob o comando da fada: o novelo da neblina percorreu o interior da BMW e foi tra-gado lentamente, entrando pelas narinas de Misses, fuman-do ao contrário, introduzindo A Coisa Estranha, virando a sapa, inflando A Fada, seduzindo o coração da inocência transformada, turbinando.
Deu azar, e as velas se acenderam... Puta que pariu, Misses, você é foda! Misses flutuava, Jesus... e presa pela boca! Meu Deus do Céu, eu adoro você, Misses!
Perdi o controle e “revirei o zóio”.
Entrei na cena e carquei o ferro, cravando a estaca em Misses. Destampei Bert a dedo, também, que continuou acelerando a BMW e falou assim, meio abobalhado: “que povo esquisito...”
Do jeito que entrei, saí — lambendo rápido. Enter-rei a tripa e deixei a Inglesinha louca e o marido na “saro-ba”, completamente aparvalhado, você sabe, esse tipo de gente coquete.
Aquilo foi demais para Bert, que nunca demonstra-ra controle nas situações mais estapafúrdias em que vivia se metendo, e bastou para que a situação se desenvolvesse. Não suportando a tensão daquela escultura, afundou no mar de seios perfeitos e sem marcas de "soutien", pernas magis-trais, boca úmida, vermelha.
Uma língua poderosa, embora Misses fosse delica-da e macia ao tato, esse tipo de pele que você acha nos cais da Inglaterra, que trata suas fadas com sombra e neblina. Depois retoca detalhes borrados vermelhos, no seio ou na boca. Alguns exageram.
Você sabe, Misses tinha sido isso, também: mulher muitas vezes tocada e retocada. "Batom e Ruge", à revelia. Y love you, Misses, a culpa é sua. Aliás, aqui tem “cu-pa-todo-mundo”.
O estrondo enorme apagou tudo e borrou a BMW de sangue.
Bert foi parar no hospital, ficando tetraplégico e impotente.
Misses foi socorrida a tempo e logo espalharam, a contragosto da ética policial inglesa, que ela fora encontra-da desmaiada, com a metade, Minha Nossa Senhora, de um corpo cavernoso troncho na boca, ainda mexendo um pou-co. Para as garças inglesas do prédio, foi um prato cheio, mas, para quem mordeu e, principalmente, para quem per-deu, pode-se imaginar que a situação é bizarra, fundamen-talmente triste, e dolorosa, pode-se garantir.
Poderiam, pelo menos, estar ouvindo "Rolling Sto-nes" com o "Mick Jagger" cantando "Satisfaction", e não "Pink Floyd", puta coisa de mau gosto.
***
Misses jurou cuidar de Bert até que ele morresse, mas em pouco tempo começou a planejar o assassinato do marido, que afinal de contas ela era muito nova e assim não ia dar mesmo, e tal, e tal.
Cláudio apareceu na vida de Misses, acalmando-a nas noites mais difíceis, e Marina acabou por completar o estrago.
Ficaram todos mutuamente dependentes, menos Marina, é lógico, já que Bert nunca teria sido nada mais a-lém daquilo que sempre demonstrara: um completo desas-trado. Só que perfeitamente rico, o que fechou o cerco em torno do palerma, e permitiu que Misses vivesse constan-temente embebedada pelo gim.
"Pelo menos se fosse Chablis..."
(A garça inglesa do andar do lado não se cansava de fuxicar).
***
E assim se passaram os anos em que viveram na mais completa harmonia, um relacionamento franco, sofis-ticado e saudável. Infelizmente, o conflito de Bert estava instalado, já que não falava, não se mexia, mas permanece-ra receptivo aos prazeres do sexo "voyeur", comportamento que fora obrigado a adotar, tendo em vista as circunstân-cias. Eventualmente chorava, e essa era a única forma de produzir algum ruído. Um choro gutural, lento, que se avo-lumava em soluços curtos e desencontrados.
Somente com o tempo Misses teria descoberto que a masturbação acalmava aquele estado débil e doloroso, e aplicava o lenitivo na competência própria das "normandas de ágata", munida de uma pinça especialmente mandada preparar, houvesse visita ou não na sala, o que era motivo de escândalo e estupefação.
Era curioso observar as franjas que aquela cena às vezes suscitava, pois não suportavam condescendência: gostaram da vida como ela se apresentou. Misses, desde muito nova, aprendera a comportar-se com dignidade e ga-lhardia diante do inevitável. Bert, se pudesse, provavelmente diria que amava ainda mais a esposa do que naquela manhã fatídica: era mulher amadurecida, pronta para a vida do jeito que a vida é. Olhado de um certo ângulo, poderia ser aceitável: combinaram uma vida normal, sem afetação, um ajudando o outro. Sexo misericordioso e terno, meu caro, possível em qualquer lugar do mundo onde existam pessoas civilizadas.
Misses usava um lenço de pirata na cabeça e es-premia cravos, olhando no espelho. Depois, colocava uma bandagem de esparadrapo pequena em cada cravo e rebo-lava pela casa, pintando as unhas e assoviando no pivô dos dentes. Era, na minha opinião, evidentemente louca.
“E ainda regada a pitadas de hipocrisia e gim”, teria dito o cão raivoso, rugindo sua baba venenosa e cínica, mas percebia-se que até o Inglês profano tinha uma ponta de dúvida no comentário que fizera.
Pessoas educadas, my love. Travando na ventoinha, girando nos cata-ventos. E nem liam jornais.
Sofriam de preconceito intelectual, o pior tipo de coisa que existe, como você já sabe.
O INGLÊS NOJENTO
Marina maquila o desenho da mulher mais bela, pois, "vista assim do alto" e protegida da Serra da Bocaina por seus mais claros espaços, no entrechoque dos morros, localiza-se a cidade de
"Cunha,
A cidade das serras,
a cidade que encerra todos os nossos lares".
"Mais parece um céu no chão", mirante do morro mais alto, de onde se descortinam os horizontes do Estado de São Paulo.
O manto azul de Nossa Senhora Aparecida estende-se por todo o vale do rio Paraíba, cravejado de brilhantes e dores dos romeiros de muitos anos. Tardes de domingo ba-tidas pelo sol de batom, que vai emoldurando o vale majes-tosamente torneado pela Mantiqueira e pelos contrafortes da Serra do Mar, num serpear único sobre o tapete negro da Dutra e encontra assim, em torneados rápidos, a cidade de São Paulo, o palco das injúrias dos migrantes interioranos.
Uma vegetação soberba desenvolve-se ao longo do rio, avançando pelas margens, rebordando arrozais, nos brejos salpicados pela Santa de Aparecida.
Em cada pequeno lugarejo o Inglês montava o cir-co, junto com a fauna própria dos mambembes, e exibia-se apaixonado nos espaços do lugar...
Por quê, afinal?
O Inglês era tomado pelo fogo da juventude, tinha o mundo pela frente e nem de leve suspeitava que, na meia idade, seria o poço amargo de ácido e fel até agora descrito. Por que se teria tornado tão vulgar e asqueroso? Por quê? O Inglês, o equilibrista principal, não seria amado pelas mu-lheres?
Saberemos a capacidade exata do leitor para perdo-ar, pois o Inglês, por incrível que pareça, também morria de amor pela senhora que foi matada na praça do campo pe-napolense, depois de esquartejada por sabres e carabinas.
Aquela, a puta. A mãe.
A que pariu as tais "Gotas de Sangue".
Tomado um dia de certo frenesi que só acomete gente de circo, pegou o trem que o descarregou direto na Praça da Luz, caminhou quase em estado de choque até a Júlio Prestes e entrou num vagão que demandou os rumos de Penápolis, onde mora gente louca, mas adorável. Diri-giu-se imediatamente ao lugarejo onde nasceu Marina e não encontrou mais a mãe livre "de todo cuidar", mas pie-dosamente encerrada numa cela chamada de lar pelas bea-tas, o que secou a vida nos olhos da pobre mulher.
O riscar de uma faca, cortando o brilho da Dalva da Madrugada, foi o que bastou para que vertesse sangue da jugular do marido de encomenda.
Marina não entendeu a cena, mas pegou-se em de-sabalada carreira mato adentro, guiada pela calma do In-glês. Uma criança na mão do pai, um garoto de quinze a-nos. Foi chafurdando nos campos mais planos que a mãe quebrou o pé e foi abandonada, pois os parentes do marido de encomenda estavam no encalço, portando sabres e cara-binas.
A lágrima que desce do olho neste momento é dura, e não pouparei o leitor da saga da despedida,
pois o batuque da morte
no tambor da floresta corta o coração
da fada desavisada, dos quatis e das antas,
mas coloca o sorriso do "Caboclinho Mamadô"
no canto que a coruja pia.
No ritmo de síncope
do andar do tamanduá-bandeira,
no golpe salivado do lobo guará
e nos botes das jararacas,
no berro das capivaras que invadem
o território sagrado da jaguatirica,
vem o transe blasfemo daqueles que comungam
o beijo da "mata-que-mata",
das torrentes de topázios, esmeraldas,
safiras e rubis,
das turmalinas, lápis-lazúli, pepitas,
berilos e turquesas, do ouro que brota do chão,
como se fossem intrusas alterosas,
e a espuma de pérolas pregadas e postas ao sol
desorganiza toda a vida que vê pela frente,
ventando nas ventas do "boi-bumbá",
no surdo que marca o compasso da partida.
A morte das nossas fadas vem do tempo
em que a bota do Anhanguera
fincava a bandeira na terra do selvagem,
da matança desenfreada,
e instalava no coração do Estado de São Paulo
o verbo empalar,
espetando índio, pai, criança,
puta, matando tudo, salgando tudo, afinal.
Entraram os violinos mais graves,
e deu para ouvir o som dos gritos das traineiras,
das bandinhas de interior ventando no rio Tietê,
fingindo que jogavam pó de estrela,
que incensavam deuses,
criando altares para mortos que nunca existiram.
Cruzes largadas na beira do rio Tietê,
cruzes intrusas, mais uma cruz,
preconceito, afinal.
Lágrimas, muitas lágrimas, Marina...
Foram milhares de olhos de sapo, de cobras,
rãs e lagartos, pererecas piando, olho olhando,
o surdo balançando,
o violino entrando e agudizando
as plácidas surdinas,
no repique dos atabaques e dos agogôs,
no grito das araras e no silvo dos macacos,
girando no pau da roda,
o surdo marcando, o "pau-Brazil" quebrando,
a foice desmatando, cortando, a corte incensando,
as crianças e as mulheres se fudendo,
tudo ajudou na passagem,
tinha muito olho olhando:
— Filhinha, querida, Mamãe vai para um lugar que não dói, e a verdade deve ser revelada. Perdoe a Mamãezi-nha, aqui neste Campo Santo, pois não sei quem é o pai. Perdão, Inglesinho Jovem, adeus Claudinho, Misses, Sini-nho... venham, meus amores, abracem a Mamãe e beijem os pais, que sempre serão perdoados... Eles sempre serão perdoados.
Marina foi lentamente se convertendo em doce de mel, escorrendo uma gosma vermelha pela boca. Envolveu o Inglesinho num abraço diáfano, virando mulher, e ofere-ceu o macio do seio para o "Finalmente Homem". Pediu o defloramento:
— Seta desvirginada! Ah..., irmãozinhos...
O Inglês Equilibrista, na excitação do pau que fica duro no momento que deve, aceitou a solenidade e envol-veu-se no ambiente das verdades que somente o sexo revela — deixou que a sucuri entrasse fecunda no meio das pernas da Fada, que assim, desde logo, foi aprendendo a "engolir a cobra", mesmo com a tragédia em andamento.
Marina nua e perolada era um fogo à parte, esquen-tando o braseiro e mexendo o doce, com os seios desnudos e o vestidinho de renda levantado.
As eras que saíam da boca e dos olhos pareciam vi-vas e novas, e ela foi trepando no Inglês sem ser ensinada, mas quem já brincou de "pau-de-sebo" ou de "balança-caixão" sabe do que estou falando.
Marina viu com os macacos
e engastou-se no pênis do Inglês Equilibrista,
sempre girando na roda dos matutos domingueiros,
nas praças das capelas.
Depois veio um vento que girou e transformou tudo em fogo e neblina, pingando sêmen por todos os lados, e a floresta amainou.
O Inglês Equilibrista foi depositado nas estrelas mais calmas, onde aprendeu a falar com Deus e depois não sabia descer.
Isso, meu amigo, era Marina — tomou a responsa-bilidade da prole.
Como não amá-la?
A mãe compreendeu a cena e morreu calma, porque se certificara de que a filha havia aprendido o fundamento da vida mais fácil. Foi sua primeira lição de felicidade, pois, até então, vivera com medo do zumbido dos homens que matam por coisas tolas, entronizadas pela moral que blasfema contra Cristo, quando penetra na vida das crian-ças e as endurece tão cedo.
Morreu íntegra, esquartejada e resistida, de quatro, flagelada e estaqueada, nas facas explicadas. O céu chora, mamãe.
Hoje ainda existe uma cruzinha no local, adornada por vidrilhos azuis e uma medalha da Padroeira do Brasil, que a tudo vê e perdoa, os pais e os filhos das putas. Bela, Mãezinha... Às vezes alguém coloca uma vela pequena no local, e esta é a única informação precisa que tenho, pois me encarrego da penitência e quase nunca choro; e não dói, porque até mesmo uma puta pode ser amada, “Maria Ma-dalena”.
***
Saíram do matagal perto de Penápolis, em estado deplorável de fome e servidão. O Inglês, muito sabiamente, nunca mais voltou ao circo, pois fora jurado de morte.
O que levara o Inglês a agir de modo tão perverso?
Leia esta carta:
"Papai, é preciso fazer alguma coisa. Encerraram mamãe numa cela de pedra e a mim não reconhecem como filha. Como se não bastasse, ainda planejam alguma coisa para mim, tenho ouvido sussurros por onde ando. Venha depressa, não há o que esperar."
Assinado: Marina.
E tinha perfume de Marina.
E já tinha perfume de gardênia, embora usasse uma tabuleta pregada nos olhos marejados, dizendo assim:
“Procura-se um Pai”.
(Observe, caro leitor, que estamos muito perto dos torpes, dos ambientes abjetos onde nascem as prostitutas infantis. Nós estamos falando da infância dela: o terreno, para mim, é sagrado, e tudo me dói e espicaça).
Foi o que bastou para o transe, e até hoje o Inglês se pergunta se a força de sua ação veio da carta, da mãe, ou de Marina. Deve ter sido Marina, imagino.
Rumaram direto para Juquehy, que àquela época era um vilarejo isolado, à beira-mar do norte paulista. Foi onde o Inglês veio a crescer, tornando-se um homem amargo e viciado em ópio, pois abandonara a amante de pé quebrado no meio dos charcos, à mercê de ferozes caçadores.
Consolava-se lembrando que seu único objetivo era salvar “a filha” que, até aquele momento, era-lhe uma ilustre desconhecida.
Era apenas uma caixa, estranha caixa, essa...
Seria a caixa que todos trazemos guardada no fundo de nossas mais complexas recordações, e que, às vezes, a-brimos de forma inconsciente? Ou seria apenas uma passa-gem confusa, como que revelando prenda ou Pandora? Seri-a, enfim, a caixa das nossas passagens do lado de lá, e de que quase nunca nos recordamos? Venha, meu amigo, va-mos desvendar a Caixa.
... a mãe dA Serva foi entrando no portal dos brilhantes e sorveu da substância que a morte, quando chega, traz consigo: uma espécie de líquido anestésico, um deixar-se ir e vagar por aquele mesmo campo onde antes fora morta, acompanhada dos filhos (e Claudinho, onde se teria metido? Ou seria agora apenas uma suave lembrança?). Lembrou-se de sua vida anterior e sentiu na língua o vivaz das pitangas e o cheiro limpo do corpo delicioso da puta dos charcos, agora já não dolorido. Foi compondo uma visão de prazer, encontrando Deus ou o que imaginasse que fosse, depois de esfaqueada. Na catarse da crucificação e empalada na madeira, agora já em completo transe, um naco de carnes disformes mas ainda quentes e vivas, passou para o mundo nebuloso dos sonhos, de onde não mais voltou.
E pegou-se a falar palavras rezadas na vertical, de ponta-cabeça:
— Posso jurar, por meus filhos, que sou feliz! Ofe-reço o meu corpo a tudo que é sagrado na Terra ou fora dela e reafirmo: morro feliz! Ou será que até mesmo morrer é pe-cado?
A corda rodava no ar, e os selvagens uivavam de prazer. Afinal, ali estava Aline, a mãe de Marina: pronta pa-ra a vida, uma garota de apenas vinte anos, assim tão nova e enfrentando demônios asquerosos e fardados, muito cientes de suas lanças de metal. Mas por que teriam ensinado a essa jovem mulher que tudo que é vida é pecado? Ou pecava pe-lo simples fato de ser mulher, mulher de verdade, e não es-sas velas de cera comuns de se encontrar pela vida?
Contra o céu negro dos laivos em prata, recortada na lua branca, a silhueta de Aline projetou-se no vento e a cor-da estalou. Aline lançou um choro de uivo que entrou pelo mundaréu da mata e os seios explodiram no decote, verten-do o leite da criança injustiçada. Uma boca vermelha de fada pareceu sorrir, de forma resignada. Uma lágrima de vidro, de teimosia ou de enfeite, pousou-lhe na maçã do rosto. No lusco-fusco da noite fria, os primeiros estalos da madeira pa-reciam querer aquecê-la, como se fossem línguas de fogo, como se as tochas dos homens fardados pudessem consolá-la. Os beija-flores arremessavam por entre as chamas ten-tando protegê-la, mas de nada valeram contra a força dos metais brandidos daquela gente louca. Por fim, cansados, sugaram o néctar das flores que brotavam de seu corpo e transformaram-se em anjos, chamando por Aline.
Ela ainda podia ver, nas primeiras filas do espetácu-lo, todos aqueles com quem antes copulara, e que agora a ameaçavam com rugidos de lobos, chuchando cuspe e sali-va, uivando para a lua e com as línguas transbordando pelos desenhos das bocas. Tudo que antes podia ser e era belo tor-nava-se, assim, de uma tasca, violência anunciada. Morria para redimir, morte ingrata — por que tal martírio, Pai?
Ei-la ali, agora e sozinha, a Santa do Encantado! Que mundo estranho esse, que ainda ontem lhe beijava os pés e que hoje a condena e acusa de lasciva! E qual boi ou bode encantado, badalando guizos e sinos, agora lhe organizaria o féretro?
Com seus grandes olhos de bezerra assustada prega-dos no céu, Aline jurou ser feliz e berrou pelas águas do mundo. Poderia um príncipe, desses que andam em corcéis brancos, surgir do fundo da noite e salvá-la? Ela e seu eterno laço de fita? Alguém que a tomasse pelos olhos, pregando seu corpo com alfinetes, nua, no firmamento do céu? E que a ofertasse ao lanço do acaso? Façam seus lances, senhores, por que não sonhar? Um príncipe! Que viesse calmo e pou-sasse a mão suave em sua fronde, acariciando-a como se a-caricia uma criança no leito, naquelas noites de tempestades que eram sempre aguardadas porque eram noites de cari-nho? E que lhe beijasse os seios? Que fosse gentil e fizesse amor com certa delicadeza? E quando todos os homens dos arrabaldes viriam, com vinho e cerveja, alegrar as noites da Senhora Atormentada?
(Coisa estranha, essa: ficariam estupefatos os santi-nhos do mundo se soubessem que muitos dos circunstantes gozam nessas horas, pois a inconsciência anestesia a dor, e entra-se num mundo sem culpa, repleto do bizarro da vida. A selvageria aflora de forma espontânea e maníaca. Muitos até urinam, perdem o controle, estremecem de prazer. Não que fossem pessoas ruins em si, afinal eram seres humanos sem nenhum tipo de afetação. Pessoas que eu e você ama-mos. Afinal, meu amigo, a morte sempre foi um espetáculo pelo qual pagaram lances e não é fácil, imagino, conviver com essa estética depravada. Mas este era o preço da ocasi-ão: mesmo morrendo, Aline permanecia estoicamente ino-cente. (E não era por vingança).
Ainda assim, ó Deus, por que não sonhar?
Poderia lembrar-se, com a retidão de seu corpo agora frágil e macerado, que Cordeiro também viria, contando his-tórias, e que todos adormeceriam tranqüilos nesta mesma tenda de tule branco que agora a envolvia. Ela e sua camiso-la de renda, Cordeiro, Marina, Sininho, Claudinho...
Um lar, uma família feliz na tenda de tule branco, recordações. Ou seriam espíritos familiares os que agora vi-a? Onde estaria Aline afinal, se já não se sentia? (A inocên-cia parecia ser um segredo de sua vida: mantinha-a incons-cientemente calma, mesmo que as forças do mundo estives-sem em desacordo).
Seria colocada em prova, o lance final! Suportaria e morreria em pé?
No meio daquele vilarejo de gente louca, no interior do Estado de São Paulo, mais precisamente perto de Pená-polis, tudo o que sempre aprendera em vida seria necessário, pois a roda começou a girar e Aline estava morrendo: os o-lhos esbugalhados, dançando no amarelo das tochas, não deixavam dúvida. O corpo, descontrolado, urinou, e ela prometeu morrer sem dor: foi o tempo de um engasgue e o osso da espinha estalou, travando-a por completo. Aline so-luçava e era como se fosse uma boneca de pano ainda viva. Começou um movimento próprio, uma espécie de dança macabra instalada no meio da multidão. A força do precon-ceito fluía daqueles homens ímpios, instilando ódio, mas A-line resistia. E o nó da corda foi apertando e ela foi morren-do sorrindo e perdoando, lentamente, quase que resignada, linda, em meio aos lírios dos charcos. Às vezes, com as pan-cadas, afundavam-lhe as faces no brejo, e podiam-se ouvir claramente os gritos ensandecidos das gargantas sólidas de preto brandindo falos, intimamente clamando por sexo. E parecia que petrificavam, olhando desconfiadas e mortiças, falando palavras baixas e cochichadas no seio da floresta que prometia um pacto de silêncio. (O pecado da mãe da fa-da é que era inocente e sexualmente liberada. Mãe e filha, jóias contra um fundo fosco, espécies de Luz del Fuego ou Mata Hari do seu tempo).
Já não respirava. Aline foi tomando uma tonalidade viva e arroxeada, os nervos queimando, estourando e repu-xando. As unhas dos pés, que antes eram de uma tonalidade rosa, agora revelavam-se de um preto profundo, enquanto o corpo esguio retesava-se na corda, balouçando ao vento, lançando cores de irídio. A fumaça não foi mais do que in-censo embelezando-lhe o altar do corpo, era mulher bela. O calor e o cheiro de carne queimada entraram por todas as na-rinas, e Aline foi virando um totem de estrelas, fundindo-se no fogo, um rodamoinho, bela como ninguém jamais conce-bera. Foi quando apareceram as mariposas e colocaram asas em suas costas, colando-as aos trapos das vestes ensopadas de sangue e suor. Um vento cheio de água foi chegando, mas nossa amada já não vivia.
Aline não sentia mais dor e era um resto de carne queimada, balançando na corda. Os escaravelhos subiram pelas lascas da madeira, adornados com suas lanças espatu-ladas. Formando uma torrente de brilho esverdeado, uma ponte curva apoiada em si mesma, cravaram as presas na cabeça da mãe da fada, num último gesto de fúria. Sorriram, os olhos brilhando dentro dos capacetes, e alimentaram seus filhotes, regurgitando carne em suas bocas. Voaram para as lamparinas das casas das cidades ao redor, onde as pessoas mascavam fumo e bebiam aguardente de cana-de-açúcar, e penetraram nas latrinas, onde descansaram seu sono, por as-sim dizer, dito “justo”, e que responde pela insanidade do mundo.
Enquanto isso, num desenho no ar do céu, algumas almas perfumadas lavavam e beijavam o sexo ainda quente de Aline, na vertente da estiva. As libélulas recolhiam-se e os vaga-lumes apenas ensaiavam seus primeiros bailes. A noite foi caindo dura, envolvendo as pessoas duras e sem culpa porque, naquele local, existia vantagem em se viver de forma selvagem. A vida foi se recolhendo e a morte de Ali-ne foi levantando seu vôo, junto com as mariposas, as ando-rinhas e seus chilreados felizes, enquanto as lacraias-das-poças, por fim, fartaram-se nas carnes felizes, lambendo-as com avidez. Aline ainda sentia algum prazer, mas as sobras de seu corpo eram já um pasto seco e não tinham sequer uma gota do sangue doce e quente da vida. Percebeu que vi-via já em outro mundo, mas havia alguma coisa que a man-tinha presa. Estendeu as mãos num gesto de madona e ofer-tou um olhar de súplica para os céus ensandecidos. O prín-cipe de Aline, fundindo-se a ela, foi surgindo de dentro da terra, retorcendo como se fosse uma broca chicana, girando lento, furando o ar e beijando-a. Beijaram-se longamente, um beijo eterno, de muitas épocas, de muitas vidas. A massa disforme de sangue, suor, barro e escaravelhos era já côdea morta nos braços da multidão e de nada adiantaram os beijos e lágrimas atônitos porque Deus, quando chama de verdade, não manda recado. Pega e simplesmente leva. Para Aline, tornou tudo mais suave, pois, enquanto lhe cuspiam na car-ne, ela já se divertia com o amado da bodega, vivendo do la-do de lá. Meu primeiro amor estava há poucos instantes em outro mundo, e eu já sentia saudades...
(... mas uma alma transparente de vidro leitoso bri-lhou no céu do Brasil naquela noite, voando em direção ao Oceano Atlântico, para os lados claros dos espaços da Serra do Mar, abrindo os horizontes. Era a alma de Aline, que ru-mava celeremente para Juquehy, pensando em influenciar uma loirinha linda, dita “A Sueca”, e que seria a segunda mãe da nossa Rainha).
Marina, que àquela altura já tomava as estradas que dariam no mesmo local, viu a estrela cadente e sentiu-se for-temente atraída para as encostas do litoral norte do Estado, principalmente porque gostou daquela estrela passando no céu, deixando pozinho, e que rumava para Juquehy. Foi uma espécie de encontro de Marina com a mãe, mas antes que a mãe nascesse, se estamos nos entendendo.
“Mãezinhas do Brasil... Garanto que não existe dig-nidade nisso, mas como explicar tanta coisa perante os céus se não contando a vida como de fato foi?”
CRIMES
A risca da binga explodiu na noite de Londres e co-locou asas eternas de libélula nas costas da fada brasileira. O túnel que se desenrolou à visão desamparada daquele corpo, expiado no chão, passava necessariamente por Juquehy, Cu-nha, Penápolis, por todas as terras da infância de Marina, que ainda transpirava o frescor das madrugadas de cores "pink", brilhantes.
Teria o cão raivoso assassinado Marina? E quem se-ria, afinal, cão?
Vamos falar de coisas eternas, pois o assunto de-manda algum tempo e certa dificuldade, já que intui a possi-bilidade da vingança.
Por quê, afinal?
Não sei se o leitor já percebeu, mas o cão raivoso amava a filha que virou fada. Nada que seja assim imponde-rável, mas que responda às necessidades que temos de ex-plicar estas tragédias que nos pegam de repente. É quase i-nexplicável. Vem tudo de uma vez e não dá chance, vai di-lacerando por dentro, como se a Mão Invisível retorcesse a cabeça, puxando a pele nos cabelos, descascando o corpo, virando do avesso, deixando puro músculo.
Você fica nu e se depara com o fato.
O que fazer? Geralmente ninguém faz nada e fica em estado catatônico, sem saber direito por onde anda; final-mente pensa em Deus, essa espécie de receptáculo de tudo que não compreendemos. Ainda bem que ele existe, pois certas coisas não têm perdão. Digo ele assim, minúsculo mesmo, fica perto, que é onde todo pai deve estar.
Eu teria matado Marina, sem querer?
Ou seria isso, de "sem-querer-querendo"?
Duvido, mas é possível, já que a coisa humana, onde está instalada, é imprevisível. No estado em que me encon-trava à época, então, não dá para saber. Para ser sincero, nem sei se ela morreu. E não se fala mais nisso.
O cheiro leve de gardênia, o lenço de seda vermelha, um farfalhar do vento no pó da escada do alpendre... não sei, não sei, absolutamente estou confuso.
Misses ou Cláudio, o Inglês ou Bert, por que não matar qualquer um desses, já que Marina é imortal? Não sei, a neblina é imortal justamente porque tem vida efêmera e trágica: faz parte da condição do mito, um jeito de ver a vi-da.
Fadas não morrem, fadas se vão...
Devo ser inocente, mas desconfio de mim.
Às vezes choro, e só ela me entende.
Ah..., Marina... Ah...
***
É em desabalada carreira que vamos encontrar A Fa-da, na viela escura do cais do porto, olhos "pink", na luz da lanterna.
O cão roda no tambor.
O cachorro louco faz um filho no pó, girando na luz do poste. A lâmpada explode no guincho do morcego, e os cacos de vidro rompem a asa da mariposa, que vai caindo, à deriva. O lacrau estala o aguilhão e apara a queda. A ferroa-da é fatal.
Um tiro seco, desses que vara a espinha da sereia, faz cambalear a fada e quebra o salto da sandália de couro de tigre. O cano da arma cospe ódio em Marina, que retesa o corpo e cai espetada, na turquesa da fera. A peçonha da constelação de Escorpião toma conta da Ursa Maior e suas garras travam o meu amor, que vai morrendo de morte aper-tada.
— O céu briga, minha filha, e você paga o pato, nas urticárias da vida sem culpa.
— Resiste, puta imaculada, no concreto da pedra!
— A morte abstrata é a que a palavra revela, Marina.
— Puro devaneio, putinha!
Mais um tiro, no peito, e vamos encontrar A Bela vazando sangue pelo retinto do lábio delineado vermelho, leve escorrer pelo canto, pingando no chão da pedra fria. No altar das margaridas bentas, pendentes do rosário invertido da batina do assassino, parece que ardia fogo no coração da fada votiva.
"É cruel, meu Deus, mata rápido."
Nenhum grito, só uma gutural lenta, movimentos tí-sicos, vomitados, engolfando sangue, e bile escorrendo na-quela maldita sétima pedra.
A lanterna aproxima-se cética e cambaleante, miran-do no olho da fada, produzindo efeitos de zoom só imagina-dos em Bertolucci ou Gláuber Rocha. Que canalha é esse que mata A Deusa devagar? Com requintes de cinema? O que fazer, Deus, o que ataca?
— Papai! Papai!
— Marina! Meu Deus! Onde, filhinha, onde? Não vá! Não faz isso comigo! Fica, meu amor! Dói, filhinha? Eu serei teu, por toda a vida, meu lencinho...
E aproximando a lanterna da fada, num esforço su-premo de ignomínia, o louco retalha na face a marca da Bes-ta, um leve toque de bafo inglês, ironia da foice metálica.
Que imensidão de cinismo e crueldade, nessa morte lenta, assim...
Não... não foi o pai quem matou Marina, de forma que o Inglês está, de cara, perdoado.
Pais não matam filhas, caro leitor, o que mata é pre-conceito.
Continuaremos a investigação brevemente, pois isso não pode ficar assim de jeito nenhum.
“Por toda a vida, eu lhe juro, lencinho...”
Bordado a agulha e dedal: Inglês Nojento.
***
Venha, leitor, dê-me sua mão e vamos entrar juntos na cena da bala que trespassa a Fada, porque, sozinho, eu também tenho medo. É necessário despir-se de toda Cultura. Falaremos do "vibrato", da praia, do sertão, dos estados de choque, mas agora vamos destruir o "concerto", porque a morte é um fenômeno solitário e tem a textura do esmalte, você vai sendo envernizado a pinceladas, elas não são góti-cas. Venha.
Marina começou a chorar leite e construiu lentamen-te o arquétipo do olhar que as crianças inocentes e estupefa-tas lançam no instante da vaidade que certos narradores al-covitam.
Dispa-se disso também, porque agora a "onça vai beber água".
Não pare.
Enlaçou o pescoço e puxou-nos para perto de si.
Eu, você, e ela, leitor. Rodando, rodando...
Um abraço perdoado, "olho-no-olho", faiscando.
Apareceram os soldadores com seus olhares de faís-cas elétricas soldando mulheres nuas nas estrelas do céu. Veio um zumbido baixo e constante, grave, de milhares de volts e ampères, a solda pegou direto na jaqueta do pré-molar. Convulsionou a Fada, fisgou pra valer, e ela ficou "secando" tremendo, dissolvendo "Sonrizal", três bocas conspícuas.
O zumbido laceou e voltou agudo, as mulheres nuas retesaram-se, com seus sexos soldados na oitava pedra, aos gritos, ao vento, um rio leitoso de pérolas e vísceras de con-chas.
(Deve ser duro, isso, morrer baleada de duas balas, e depois vem gente que solda, com olhares de soldas elétricas, quase pictóricas, no "pau-reto" que parece a "estaca-que-finca", nos olhares abraçados, Marina hipnotizava...)
Venha, amigo, retire a carcassa do bom gosto e en-tre, pois não tem mais jeito mesmo.
Vamos secando e rodeando,
armados de soldadores,
entre graves e agudos tensionados,
os braços estendidos e ligados
na rede de energia das mulheres do cais do porto,
um varal de mulheres nuas, penduradas,
empaladas,
lua, água, mar, terra e gente brilhando,
relâmpagos das soldas.
Três bocas, três olhares salivados e faiscantes,
rodando na pedra, no ritmo do tango,
soldando, dissolvendo o sal
da fruta, matando a Fada.
Tome da solda e aplique
na rótula,
assim ela já pára de mancar também,
ficou bom?
Outro ponto, e afundamos direto no dente,
está gostando?
"Furou, Sorriso de Pérolas?"
Vamos descendo, mais rápido.
Mais rápido!
Solde o seio!
O umbigo!
O púbis!
Pronto, ela está ali soldada, baleada de dois tiros, e nós já demos o terceiro.
“Me solda também, amigo, eu quero morrer com ela, bordado no lencinho. Por toda a vida e até a morte, em Ju-quehy, juntos, minha filha.”
O que mais a gente quer? Precisa mais, afinal?
Marina precisava, era inocente. O olhos de Marina estão aqui, na palma da minha mão. Tome-os e dê a eles um fim merecido. Que descansem em paz, é tudo o que desejo. Que não mais permaneçam a fitar-me na escuridão da men-te. Que não mais chorem lágrimas que imagino sangue. Que não mais solucem, não suporto mais a inocência estupefata.
— Papai, que beleza existe e insiste em morar só nos meus olhos?
— Que brilho lindo e cintilante nos seus olhos!
— Brilhante lágrima iluminando os olhos?
— Não, não, não... é o reflexo dos nossos olhos...
— Morre tranqüila, filhinha...
Sentiu?
Cheire. Devagar... Sinta o cheiro. Misture.
Devagar... orquídea com gardênia...
Meu lencinho... em Juquehy... juntos...
***
Vou dar uma estatística: as pessoas não morrem co-mo na TV ou cinema. Não tem nada de espetáculo, nem mú-sica nem nada. Não tem Cultura. É insosso e dá vontade de cuspir. Muitos vomitam. Não entrarei nessa, não finco esta-cas e, definitivamente, não vou além.
Nós acabamos de desembrulhar a caixa, e foi uma puta quem ensinou. Chega. Os próximos capítulos tratam do Conluio, do Perdão dos Adultos e da Coisa Estranha. Garan-to que valerá a pena termos sido lindos, nessas experiências atávicas.
Assinado: Louco da Lanterna.
CONLUIO
O rochedo que avança na baía de Juquehy tem uma orquídea pregada no lado oceânico, indicando que não foi colocada para turista. Aquela orquídea negra ali na rocha, batida diariamente pelo vento de sal marinho, desafiando a lógica da mata, tem uma história. Nas noites mais claras de lua cheia, quando a calma precede a ressaca da maré alta, você pode ver os peixes-voadores por sobre a espuma macia da água, num estranho cortejo "azul-neon" — hipnotizados na beleza da flor retinta, que desafia o bom senso. Pequenas estrelas, vindas não se sabe de onde, pululam esvoaçantes ali por perto, num rebojo eventual da água levemente maro-lada, esgarço provável do ataque das espadas, ou de um tranco mais severo, o que quase sempre indica a presença de tubarões.
E lá se vai um peixe-voador, que se entretinha em olhar as flores...
Parece haver um estranho conluio.
Só pode ser!
É isso!
Parece simples e reto, como tudo na natureza: uma orquídea estranhamente nascida ou colocada, que diverte e ilude o incauto peixe, enquanto os tubarões atacam. Um conluio!
— "Como a cilada se combina entre a beleza crista-lina da flor e a fria pele das espadas..."
— "Tudo agora se encaixa perfeitamente..."
— "Como seres de mundos distintos temperam a es-cama de sangue frio com a eternidade das flores, em que o único objetivo é a morte do peixe-voador, o inocente de plantão..."
Está parecendo familiar, amigo?
Ou a morte de Marina e o acidente de Bert já não di-zem nada?
Marina morta, Bert atolado na cadeira de rodas à mercê de circunstâncias pelo menos desumanas, o pai amar-go, Inglês indecente, tocado pelo álcool e pelas agulhas? Só Cláudio e Misses parecem bem?
Mas como?
Misses também não se acidentara?
A inglesa de ágata seria um devaneio?
Um conluio, meu Deus!
Como teria o médico se combinado com o louco da lanterna, no sentido de matar a fada interiorana? Isso eu também não sei, mas é algo que necessita ser esclarecido. A pista, provavelmente, está na orquídea que mira o oceano, pregada naquele rochedo de Juquehy.
Foi com este enigma na cabeça que tomei o rumo de Juquehy, já agora uma bela marinha torneada para milioná-rios que têm filhas parecidas com Marina e Misses, destina-das ao mundo das fadas, mas que eventualmente cruzam com loucos de lanternas. Mal imaginam os pais que as cila-das são organizadas na infância e não seguem o ritmo pon-derável da lógica, não há o que fazer. Pode-se sofrer menos, rogando a ajuda da "Santa de Aparecida", e garanto que a providência divina é algo totalmente aceitável, se você con-sidera a vida do jeito que ela é: uma espécie de "vibrato" do mar, da praia, do rio, do sertão, e dos seres humanos em constante estado de choque. E que a morte, assim como a vida, faz parte do concerto. Portanto, "não estejais inquie-tos" com o que pode acontecer um dia, mas com o processo do acontecimento diário em Cunha, Penápolis, Aparecida ou Juquehy, terras da infância de Marina, como já se sabe.
O PERDÃO DOS ADULTOS
Em Juquehy, fui tomado pelo abalo da paisagem e somente acordei no outro dia, em estado lastimável e leve-mente mareado. Há muito não descia ao litoral e estava cambaleante quando contratei o barco que me levaria do la-do de lá do rochedo, em frente ao Hotel Timão, onde resol-vera iniciar minha busca.
Um tanto desesperado e perdido, mas enfim...
— Vem cá, meu amigo, ainda falam de Marina?
— Quê Marina? Uma que dizem por aí, “meio de an-tigamente”?
Parei por ali.
Alguém que fala assim de Marina, "meio de antiga-mente", é insensível às chagas do ser humano. Não vale o barco que aluga, e resolvi não perder meu tempo com gente assim. Caminhei ao largo, de forma estranha e pudica, um "branco de planalto". Eu era uma bolha de sabão, deslizando e sem rumo. Havia perdido a vontade de viver. Estava por um fio. Deslizando... deslizando...
Assim: puft.
Não sei o que deu, mas estourou uma química e um largo sorriso de pérolas abriu-se no sol de Juquehy, uma bo-ca adolescente e borrada de batom, o que me prostrou de imediato na areia da praia. Um sorriso manso e pacífico, próprio de pessoas que estão de bem com a vida, em com-pleto "vibrato": o arco-íris rodou no céu claro da praia, de-senhado na água da manhã. Estourou uma bolha.
Começou a juntar gente, um cachorro estranho e a-gressivo que vive por ali, um beija-flor, gente com bafo de pinga, com hálito morno de "Steinhaeger", esses quebra-nozes da madrugada, e uma fada nua e manca apontou no horizonte.
Todos viram!
Juro que todos viram o enorme colar de pérolas sor-rindo no horizonte, brincando com os peixes-voadores, às vezes zunindo até a encosta da serra e voltando, às vezes es-voaçante na praia, misturando orquídea com gardênia, flores que têm histórias.
O movimento desorganizou-se e desenhou um arco-íris invertido e sorrindo, Coisa Própria, Dama da Neblina, uma calma imensa, doce. Bolhas, muitas bolhas.
Permaneceu naquela posição de sorriso por um lon-go tempo, inundando, perdoando, gotejando todas as águas da infância lúcida, da adolescência amiga...
E eu era um beija-flor, voando feliz de bolha em bo-lha, as bolhas estouraram, assim, puft.
Nós fomos amigos. Tenho certeza de que sempre fomos cúmplices.
Pude ver que Marina sorria e estava feliz, o que para mim foi um choque, já que não conseguia me libertar da i-déia de minha filha morta, pregada na cruz de Cristo e meus complexos de culpa. Pude ver com bastante precisão que es-tava bem, seu sorriso de seda, nada que pudesse comparar com dor ou tragédia.
Veja bem: Marina sorria e era feliz!
Mais do que isso, transmitia felicidade, envolvia e era perceptível, tendo em vista o imediato perdão que o pes-cador balbuciou.
Como não se lembrar de minha filha, a Fada da Ma-drugada, o Dente de Pérola, A Deusa, "Gota de Sangue", a criança que embalei no colo nesta mesma praia?
E uma paz enorme foi enchendo o peito do Inglês Nojento, que pela primeira vez em muitos anos debulhou lá-grimas brancas de sal de verdade, dessas que aliviam sécu-los de dores e muros ornados com "espinhos-de-cristo" me-ticulosamente colocados ao longo da vida.
A libélula rodopiou no ar, em velocidade estontean-te, e veio ter com o pai, quando pude ver que até a tragédia tem explicação, se você mira no olhar limpo das crianças. Aquele olhar azul brilhante, encimando o sorriso de pérolas, fitando-me lúcida por entre a dança das bolhas... eu não sei, eu tinha criado e cultivado gelo em todos os cantos do cor-po, mas aquele olhar era inefável, redentor.
Minha filha vivia, estava bem, era o que importava! O que mais o comum mortal Inglês poderia querer? Por que mais, meu amor, se, a ti, sempre tive por minha?
E toda quarta à tarde, com chuva ou sol, ali pode ser imaginada a mesma cena que explica Marina: um enorme rasgo de perdão que inunda o ser humano e dá sentido ao verbo viver. A menina de sardas e conchas que você sempre vê do lado, o sorvete de morango, paróquias de Juquehy, de Cunha, Guaratinguetá, Jundiaí, São Luís do Paraitinga, Pe-nápolis, Cravinhos, Ribeirão Preto, Araraquara, Limeira, Sumaré, Campinas... é tudo a mesma coisa, faz parte do mesmo complexo mundano, dos territórios pródigos em fa-das de jade; do rodar humano que envolve as pessoas co-muns, que as leva para o mundo, e que odeiam gente de cir-co. Ou que não gostam de gesso.
Perdoei imediatamente o circo dos adultos, o gesso que endureceu o louco que matou minha filha naquela séti-ma pedra, A Besta, perdoei Cláudio, se é que ajudou, e a-bracei o mar imenso, nadando direto para o rochedo, a nona pedra, onde fui ter com minha filha. Pregada na cruz da cos-teira do lado de lá, bela, puta, pura e simples, orquídea açoi-tada pelo vento, e que só pode ser vista nas quartas de lua, no contramar das flores de gardênia.
Bocarras de espadas, trancos de tubarões, tudo isso é muito pouco perto do efêmero da vida, da tragédia e da aci-dez da vingança. O bálsamo do perdão tocou fundo na alma do homem desajustado, gente simples dessas que se vê pelas esquinas. E foi quando pude finalmente compreender que Marina amou e foi amada com dignidade, meu amigo, em-bora o pai só tenha percebido isso um tanto tarde na vida.
E por ali, conferindo que sua filha era feliz, o Inglês Nojento deixou seu corpo e não mais o buscou.
COISA ESTRANHA
No entanto, o enigma não foi desvendado.
Como se sabe que Marina era filha legítima de Cor-deiro de Deus, o afeminado?
É simples, Cordeiro de Deus era o único negro da praça penapolense, instalava o batuque no local, tocava o tambor na floresta fechada, sempre no canto onde a Coruja "pira". Explica o Calvário que minha filha sofreu, pois, além de puta, era bailarina, assim como o pai, negra como o pai. Oxigenava o cabelo.
Deu para o Inglês Nojento "sua primeira vez" quan-do ainda nem menstruava, chorou leite. Era um Doce de Mel escorrido no vermelho, uma "seta desvirginada".
O Inglesinho Jovem era apenas um garoto de quinze anos que fora socorrer a mãe e a filha de preconceito de pu-tas, que gente de circo não tem. Ficou amargo porque aban-donou a mãe, não porque "comeu" a criança confessada co-mo — "não sei quem é o pai" — palavra da mãe na hora da morte, que é quando a verdade se revela.
O Inglês Equilibrista, já àquela época, não se abalava com mortes, mas com o abandono das pessoas queridas. Era diferente.
Ou não dá para confiar na palavra da mãe?
Dá, porque ela era puta mesmo, "dava" pra todo mundo, na surdina da mata. Não tinha credibilidade para es-ses negócios de saber quem é pai de quem. Engastou-se no Cordeiro, esse foi seu erro de "blasfêmia" — engastou-se num negro afeminado.
O enigma buscado nunca foi o da morte, mas o da paternidade.
Quanto a Cláudio, Misses, Bert, o Padre, as mães...
Bem... sempre foram tratados como vítimas inocen-tes das senzalas onde viveram.
Assinado, tudo como nos pontos iniciais desta histó-ria:
Louco da Lanterna,
que também foi perdoado após esta confissão na Pa-róquia da Praia onde se instalou o Cruzeiro.
Isto não é um romance ou um conto, isso é um libe-lo. Eu te amo, Marina.
***
E rompeu na espuma da água, no corte da laranja do sol, uma garrafa verde e arrolhada num laço de fitas rosa, um recado das pessoas que vivem no mar. No escapulário do vermelho da luz do céu, um batom. Uma escova de den-tes. Na lufada do vento dourado, um “Agnus Dei”, camba-lhoteado. Um preservativo, uma cibalena. Um espelhinho. No oratório da luz esverdeada, uma foto minha em branco e preto. Um beijo roxo no vidro da moldura, na lateral da bo-ca, escapando da pátina branca. Espetada no cerzido do pa-no, uma agulha. Um dedal, um camafeu, uma jura de amor eterno.
No ondular da onda, o esfarelamento da luz mirou na garrafa e balançou as estrelas no reflexo da água limpa do oceano. O manto azul ergueu-se no mar e organizou o orató-rio para a mais bela santa brasileira...
Marina surgiu... emergindo lenta... dos seixos da a-reia úmida e marolada para, finalmente, encontrar-se com seu amor.
Nas asas da fada onírica, no vôo lento a raspar nas ondas, diluindo a tinta do quadro, a figura do pai desenhou a pintura. Havia muito vento, muitas fitas estralando, na dança da aquarela lenta. Na face ruborizada e inocente, na irides-cência das sardas, as conchas agradeceram o gesto de Mari-na, que jogou o colar no mar, em direção à lua, como se houvesse uma espécie de acordo; e as conchas recolheram suas pérolas, pois estavam com saudades delas.
Respingando flores e espargindo aromas delicados, a boca divina soprou terna no peito da fada, abrindo o vestido. As ondas de blusas e colchetes desabotoados entumeceram os bicos, no linho transparente das roupas arrancadas, no re-flexo do ocaso.
O sol foi tingido de vermelho, na ponta do pincel, e a boca do pai desceu pelo decote, sugando os seios da filha — beijou-os com volúpia — com violência comedida. Marina entregou-se, levando-o ao colo. O amante explodiu na cena, rasgando a tela do quadro, lambeu a filha, e amaram-se na página do papel.
Com as mãos amarradas ao totem do sexo, o amor da mulher mais bela pulsou na pauta da música, nos colares quebrados e balouçantes. No mar perolado, as hordas de va-ga-lumes ritmaram. Velando o movimento, estalando as pérgulas, as valvas tensionaram e espargiram o perfume narcótico do sexo: a vida tornou-se rútila, um violeta quase extremo.
A lua apareceu redonda, enorme e exata, no “chuá-chuá” das vagas dos peitos molhados, no contraste prata do rochedo, de onde pendiam faixas de seda púrpura, esvoaça-das, envolvendo as pernas perfeitas.
No encontro da vida abençoada, onde se enfeitaram os beijos úmidos, os seios de Marina roçaram nos lábios do pai, no ondular da água na pele, como se os corpos danças-sem. No lençol da fragrância, as costas se soltaram, ondu-lantes, completadas no desejo dos toques lentos, intimizados pelo enxoval de ágatas cintilantes. A areia retirou-se lenta, bordando a praia e os corpos de vôngolis cúmplices. A fada respirou, afundou na água e misturou-se ao magma feliz das rochas ígneas, muito além do platô continental. E permitiu a cópula nadando na arrebentação, no fundo do mar argênteo do Costado de Juquey, gerando bolhas na cama do estuário. O sêmen de Deus, o mistério da vida, envolveu os corpos em girândola. Marina foi fecundada pelo padrasto e nada já lhe causa espanto.
Calma, no colo dele, descansou:
Nos olhares suaves, como foram os de sempre.
No enfeixamento das cores, que para eles se enfeita-ram.
Nas palavras doces e bem colocadas.
Nos vocábulos benditos e sussurrados, na cortina ne-blinada.
No fecho do mistério desse amor, que não se decodi-fica:
— Para sempre, por toda a vida, papai.
— Sim, meu amor, por toda a vida, minha filha.
— Morrer sozinha já não me parece difícil, papai.
— E nem a mim, meu amor.
— Por que tão difícil para declarar esse amor, papai?
— Puro preconceito, minha filha.
E o Cruzeiro foi levantando seu vôo daquele roche-do, retorcendo na pedra, quebrando com facilidade.
Começou a girar, a princípio lentamente; depois foi adquirindo uma velocidade impressionante, torneando na espuma da água, recolhendo o casal.
Marina estava muito linda, adornada com as sapati-lhas do costume, no figurino da vida das gardênias mistura-das, girando forte, bailarina. Cinzelando no matiz, fincada na borda da luz, livre, redimida e redentora, no recato da co-erência, decente.
Torneando nas fendas e abotoando as faces, fechei meus braços na força máxima da ternura e enrodilhei o cor-po semi-desfalecido desta mulher estupenda, cicatrizando junto, por toda a vida, sem fim ou começo, porque tudo sempre me pareceu eterno. Era como se obedecêssemos a um código. Não compreendíamos, mas parece que sempre nos cumpliciávamos.
Fomos entrando no mar, nus e ruidosos, nas franjas da praia, brincando de guerra de água. Verticalizados, nas pontas dos pés, brincamos de areia. Sorríamos e choráva-mos, pegando a água na mão, respingada no vento, nas on-das encrespadas da maresia violácea. Dançando na estupefa-ciência dos olhares felizes, nas lágrimas dos sorrisos ternos, nós, as vidas procuradas, nadamos rumo à echarpe da praia e afundamos no mar. Brincando de beijos na espuma da arre-bentação, desaparecemos nas rochas, no cardume tímido. Reaparecemos no meio das algas, no código próprio, beijan-do de língua na boca. Continuamos nadando abraçados, ao sabor da corrente, e fomos virando peixes, mirando o hori-zonte. No cortejo dos golfinhos, enquanto a lua estendia seu manto prateado, brincamos de procurar corais. Subimos na-dando no tapete de água que escorria do rochedo, luz acima, e a lua nos recolheu, amável e cuidadosa. Dos fitilhos bran-cos e rosa dos nossos corpos, pendurados na lua que subia lenta, no clarão do céu, brotaram flores. O ramalhete enfei-tou o luar, e não nos furtamos à gala dos toques lentos e ín-timos. Nós, os filhos sem pais, viramos os filhos da lua, no colo dela, porque nós concordamos e porque precisávamos. Porque Deus quis. Sempre achamos, como naquelas noites de Juquehy, que a lua também.
Na condição do mistério desse amor, que a si não se decodifica, pagamos a jura. E, no colo da lua — amamenta-dos por ela — conferimos novamente nossas juras eternas, felizes em meio aos arrulhos tríduos.
Promessa cumprida, Sorriso de Pérolas, Santa do Costado de Juquehy.
A LUA DA MEIA-IDADE
Quedamo-nos adultos, de infância recuperada.
Olhamos, lá de cima da lua, o mundo movimen-tado que se agitava embaixo. Na floresta que margeava a enseada, observamos os bichos, que a tudo assistiam, e percebemos que as coisas estavam em seu lugar. Um barulho ensurdecedor de vida. Razantes de andorinhas azuladas, chilreando e derrubando as mazelas da vida, descomprimindo as dores, pintando veias nas tábuas e enfeitando as cristaleiras da mata com seus esvoaços de penas. Apaixonamo-nos por andorinhas.
E resolvemos decolar, olhando as andorinhas. Elas, brincantes, experimentando o gosto da gente, bi-cando. Nós, experimentando as penas. No meio das re-voada. Voando pelo mundo, invadindo os bambuzais, indo a locais que ninguém, nunca, jamais, foi. Ácaros contra a luz do sol, sob a inocência das folhas das alfa-ces.
Observamos contraluzes. Escorregamos por dentro dos veios dos berilos, das águas-marinhas, das conchas, que mais pareciam casas avarandadas onde o Siroco morava, da água em cântaros, dos jarros de la-vanda. Sob o olhar dos gafanhotos, pulamos nas esme-raldas, comendo as sementes das uvas enfeitadas de turquesas vinho. Escorremos pelos lençóis ao vento, pe-los telhados, pelas telhas e suas goteiras, beijamos as bocas com gosto de sílica, falamos claramente na alma dessas pedras quietas, elas estão bem assim.
Conhecemos cigarras de pérola, vestidas em tu-les algodoados. Sorrimos para as caranguejas do man-gue, de olhos de lunetas carmim, ardentes em suas ca-mas de capim-cidrão. Afagamos o cetim dos casulos das mariposas imantadas de seda adolescente, num lo-cal onde nunca faltava água.
Os espartilhos rendados das jabuticabeiras eram de uma beleza limpa, as costas das antas eram claras, o porte definido. Amamos tudo que tocamos. Os corpos derramados das aleluias sobre o veludo vermelho, ar-fando. As tulipas roxas em genuflexórios, o vidro do cinzeiro, a fumaça dos cigarros apagados. Passeamos pelos holofotes acesos que iluminavam as túnicas dos içás e tudo foi adquirindo espectral, só nos tocou o que amamos. Só o amor nos foi crível. Desenhamos cora-ções a canivete — o aço avivando os entalhes — seios revelando a gala de nossas vidas no tempo em que o ta-to, em nós, passeava.
As cigarras pingaram-nos cera de vela, envol-vendo-nos em caules frêmitos de crisântemos. No sô-frego de nossas luvas retiradas, as mãos cravadas nas árvores, raspamos as cascas, que rangiam e coçavam. Imaginamo-nos de arroz, enchendo as panelas dessa gente pobre dos pântanos, essa gente que era fabricada de nossas próprias águas e bagas, do suor dos nossos corpos. A beleza foi-nos atributo da alma, foi brilho que enfeitou o copo.
Matamos a fome do mundo — o mundo não ti-nha mais fome e nem preconceito. A tudo enfeitamos com vaga-lumes suaves e perfume de cedro. Nossa roupa melhor foi o olhar dessa gente do mangue, a sua beleza assustada. Vivemos ali, e nada vestiu melhor o íntimo de nossas almas que as mãos espalmadas de nossa gente, acariciando-nos e retorcendo-nos, como às camélias. Para nós, instalaram ramas no caramanchão, prepararam camas nas clematites, erva-cidreira, cana. Descansamos. Ali bebemos água e fizemos amor. As alças do vestido de Marina descansaram no corpo sua-do. Massageei-lhe os ombros e fomos quadros, retalhos da luz na pátina, taxas de cravos lambendo vidros esti-lhaçados e bordados nas toalhas.
Fomos tudo que Deus criou. Bailamos no talo das flores das noites de outono, onde nascia o jasmim e a violeta desmaiava. Onde os galhos das roseiras esta-lavam, extraindo pingos vermelhos dos pretos profun-dos dos gerânios, gozando das seivas espremidas. O romance do devaneio nos foi eterno, nas línguas chupa-das, nos lábios feridos em genciana, repletos de miosó-tis nascendo, hálitos de canela.
Possuímo-nos no lajedo de mar e do charco. Banhados de óleo de espermacete, fomos subindo os ri-achos da mata, sorvendo fortes o cheiro da água doce e os corpos gostaram do acre do cheiro fórmico, da es-grima lenta dos grilos em transe, da agulha imantada de aço jarrete, enfiando na linha, do ácido láctico das va-cas mugindo nos remansos da água salobra.
Do formol da vida dela, entrando na minha.
A tudo estive atento: nas beiradas dos mangues, vimos pencas de vida sendo geradas no casulo das la-gartas da seda e depois caindo nas poças. Observamos ninfas, cloacas abrindo-se e fechando-se no chão, bura-cos por onde a terra respirava. Ungimo-nos de gosmas sedantes. O jorro opala da jactância, a explosão das amoras no pejo da muscardina, a oferta das mulheres nuas dos bosques, dos homens sensuais dos barrancos.
Fomos felizes, onde nascia a vida feliz do pão, nas fornalhas do mundo. Debulhamos as bonecas dos milhos, perto dos estábulos das fazendas, e inebriamo-nos da narcótica sede dos escaravelhos, que se reprodu-ziam em algazarra sob o capim úmido. Estalamos nenú-fares aos sorrisos, derriçamos dedaleiras e estouramos prímulas noviças, ainda em suas ramas.
Invadimos o solo por baixo das árvores e fomos sugados pelos caneleiros. Os gomados das caldas lava-ram-nos, o “aloe-vera” hidratou-nos. À beira dos arro-zais úmidos, junto aos lilases e jacintos, fomos perfu-mados pelas alfazemas. Viajamos pelas veias das árvo-res e saímos nas folhas, onde a revoada de andorinhas novamente nos recebeu, no arbóreo. Na vontade delica-da da chuva tempestiva, nossos corpos abraçados ex-pulsaram lágrimas e líquidos, misturando-nos aos es-touros das painas, e caímos nos brejos, onde nos rece-beram as traíras lampréias, as lacraias.
Lá em cima, os pássaros bicavam as nuvens do mundo e nossas almas revoavam.
Nas árvores próximas, enquanto os coleiros sor-riam, as açucenas gorjeavam na dança da luz na água, o arco-íris laçando o céu. Fomos nos transformando em morcegos, subindo os espaços novamente, agarrando-nos às cascas das jaqueiras, aos galhos, sempre subin-do, musculares, para enfurnar-nos na lise lisérgica do mundo.
Instalamo-nos nas flores, oferecendo pólens às abelhas e, sob o bailar dos estames, beijamos anteras. Flores-de-lis. Feras vespas da essência, enlaçando o romance, trançamos primaveras na beirada das flores, onde construímos a flor da nossa vida, instalada na ja-queira mais alta. Os bichos nos abraçaram, os pássaros nos aceitaram — parece que havia um plano maior, uma força que supervisionava e impulsionava. Sem re-ceios e sem medos. Uma vida diferente da outra e por nós escolhida. Nascemos e morremos, estados catárti-cos, sem torpor, átomos de vida. Morremos para que vivêssemos, era o preço da ocasião. Voamos, esse é o termo. Junto com os pássaros, que sempre entenderam. Sob os auspícios de Deus, que confundiu-nos, sensuali-zou a relação, atraiu-nos ao local. Como se fôssemos salmões: seres que nascem nos rios, vivem no mar, mas que voltam para morrer onde nasceram, foi da nossa na-tureza.
Hoje vivemos nas árvores que crescem nas bei-radas das cidades e entregamo-nos ao acaso da vida. Não nos move consertar a Obra, submetemo-nos a ela, somos partes dela. Cada vez mais percebemos a sabe-doria dessa força maior que a tudo impulsiona e que se realiza independentemente de nossas vontades. Apren-demos que somente a alma feliz é útil nessa engenharia, seja gente, pedra ou bicho. Tomamos do jugo do Filho, que é leve, Ele só nos pediu a observância de sua Lei, a Lei maior do amor sem preconceitos, sem ímpetos de ajustes, e aceitamos calmos o que a providência nos re-servou. Um pouco de dor tempera a vida.
E, ainda hoje, lemos livros à luz da lua, parece que a gente não envelhece. Voamos sobre os lírios dos campos — é verdade, eles não guardam nem fiam e, a tudo, provêem. Não precisamos de nossos corpos, vi-vemos independentes deles. Somos fortes, elos últimos da corrente, temos individualidade. Vivemos milhões de anos e o medo, enfim, já não nos move. Se fazemos parte da Obra e a morte já não nos é estranha, quem, contra nós, pode armar-se de força buliçosa?
DÉCIMA PEDRA
Morri para que o amor por meu pai vivesse, ele re-clamou por mim.
Embora vivesse drogado, amou-me profundamente, como só os pais podem amar os filhos — assim como amei meu bebê, que sequer nasceu.
Quase nada do que meu pai dizia era confiável, vivia constantemente drogado. Mas a gente não escolhe as cir-cunstâncias que nos tocam e, de uma forma ou de outra, so-mos jogados no roldão da vida. O fato é que sobrevivemos e, considerando tudo, valeu a pena.
Somos felizes, é melhor assim — ser feliz em qual-quer circunstância. Olhar para frente, sempre, e nunca per-der o espetáculo das laterais, essa foi minha norma.
Senti-me Marina por instantes sólidos, a roda final-mente se fechou e, por momentos, a todos compreendi. De-pois, tudo se apagou na minha vida de criança, nos campos de Penápolis, na adolescência em Juquehy e Cunha, no sol do litoral norte do Estado, nos claros espaços da Serra do Mar. Nas paróquias, nos beijos lascivos de Bert, naquela luz da lanterna, no corpo do meu pai perto do rochedo. E até em Cláudio, abandonado no mar ao sabor dos tubarões. Não pude controlá-los, foi mais forte, foi da minha natureza. Meu filho, um inocente que sequer viveu por causa dele, um aborto, reclamou o seu quinhão.
E quanto à Besta? Quem poderia imaginar que um simples namoro da mocidade poderia provocar-lhe ódio a ponto de matar? É isso, o mal está instalado no mundo. E haverá outros, como ele, enterrados nas paróquias, masti-gando vidas em silêncio? Não sei, minha vida já é muito complicada, é melhor simplificar.
Volto para o lugar de onde vim.
Tudo vai adquirindo um sentido de contorno exato, eu, subindo para a lua, o Inglês afundando no mar de Ju-quehy, minha vida dentro da dele, ele, dentro da minha, co-mo deveria ter sido desde o início. E ali estão nossos corpos, derramados na água salgada, sob os olhares ávidos das gai-votas que, como nós, passam famintas sob a força imponde-rável do acaso.
Hoje, papai, a tudo interpreto de forma muito mais singela: nós fomos almas que fizeram confusão na hora de nascer e, por isso, nascemos em corpos errados. Quantas há que, como nós, não habitam corpos que lhe parecem estra-nhos?
Eu amo você, Inglês Nojento, o único homem de verdade que eu tive na minha vida.
Assinado: Marina, já adulta.
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