Na rua 23, do bairro São João, existe uma senhora que vive sozinha, sem filhos, amigos, família. Tudo que tem são três gatos de distinta coloração: um preto, outro branco e um terceiro pardo.
Ela quer comer, abre o lixão e devora os detritos de frango do feriadão. Ela sente frio, enrosca-se nos três gatos esquentando seu couro já caído. Ela quer divertir-se, senta-se na beira da calçada e assiste ao "show" da televisão ao vivo: homens bebâdos a dançar descalços, crianças famintas a traficar.
A fatalidade de Salete: definhar-se de fome, frio ou solidão. Mas, no dia 13, na rua 23, do bairro São João, perambulando pelas ruas, Salete tropeça em uma velha garrafa de cachaça Valverde.
Uma fumaça cegante a envolve, Salete que não se decide entre a loucura e a sanidade, acha estar em um de seus devaneios, quando de dentro da garrafa sai uma criatura de larga espessura e baixa estatura, com uma vestimenta colorida e desprovida de membros inferiores.
Com uma enorme dor nas costas, devido ao grande período de tempo espremido em uma garrafa, a criatura passa a emitir estrondosos gemidos antes de dirigir a palavra à velha.
Salete, já desconfiada de que se tratava do gênio da garrafa, sequer deu atenção aos berros do infortunado, mas se providenciou de pensar no que desejaria quando chegado o momento. Após um longo período de reclamações, o gênio diz:
- Já deves saber quem sou, maltrapilha senhora.
- Sim. E como diz a lenda terei direito à três desejos, pois és o gênio da garrafa.
- Por parte tens razão, infeliz criatura. Entretanto terás um único desejo realizado, pois somente personalidades ilustres têm o direito a realização de três pedidos.
Salete que nunca ganhara nada na vida, sequer uma migalha de pão, nem retrucou à tamanha corrupção. Apenas, disse:
- Seu gênio, nada tenho e nada temo. Por isso, já telespectadora de muito sofrimento e desgraça, peço-lhe, como único desejo, que me adiante a despedida dessa cruel encruzilhada.
Espantado, mediante mórbido pedido, o gênio, desconcertado, disse:
- Sinto muito, mas isso é com o Homem lá de cima. E, ainda assim, acho difícil, dizem que a coisa tá preta, uma superlotação danada. Porque não fazes um outro desejo?
- Não quero mais nada! Manda-me ao cretino Jesus Cristo.
O gênio, incapaz de realizar o pedido de Salete, vê-se constrangido e diminuído. Mas, eis que uma infeliz idéia lhe surgiu: apossou-se de uma adaga, a qual mantinha em seu bolso, e com um golpe veloz, abriu o pescoço da velha de lado a lado. Realizado o desejo, o gênio imediatamente volta ao seu lar, a garrafa.
A velha ficou estirada na beira da calçada, a derramar o sangue, que era lambido com voracidade pelos famintos gatos de distinta coloração: o preto, o branco e o pardo.