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Contos-->Melhor que uma adivinhação, uma flor exata -- 20/05/2000 - 11:41 (Maria Abília de Andrade Pacheco) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Era uma moita de boninas que se aventurou no meu jardim. Trazida pela aragem gratuita do vento, no bico de um pássaro? Talvez, desde que era uma planta nativa...
Era uma órfã refém das mãos invisíveis do destino. Importava esse antes? O que contava é que ela era. Ser flor, ah!, só uma coincidência.
Enraizada de uma vez por todas em minha trilha, barata desidratada na prensa de meu diário, fazendo eco aos meus pensamentos, compartilhando um pedaço de minha história, cirandeando minha existência, era dessas visitas sem espera. Era aquele vendedor de bugigangas, de sapateiras e matérias plásticas, esse moço mesmo, ou aqueloutro, tanto faz. Tempo mais sem romantismo! Era eu, dentro, aparando as unhas, e uma moita lá fora vicejando antes da poda certa. A vida se cumpria conforme o arranjo musical que cabia em seu gosto.
Uma planta nativa, como tantas outras, mas de uma generosidade! Por qualquer suspiro já se enchia de flores, mesmo sem nenhuma rega, sem maiores exigências que não aquele chão seu. Uma roseira amélia, fêmea forte, sem lágrima de vaidade. Pau para toda obra, tinha crescido ali graças à minha negligência em capinar matos daninhos invasores de jardins floridos. Resultado de meus adiamentos, afinal como eu iria sentar para resolver o caso de uma moita pagã no meio de um jardim? Sim, eu tinha um jardim meu, propriedade minha, com escritura e tudo, e isso por si me bastava. As boninas eram mero ruído – algo por ser desbastado, isso quando desse, quando desse.
Tudo isso digo agora. Na verdade, minha primeira vista o que enxergou foi uma touceira de espinhos plantada para arranhar meu jardim de porcelana, não bastassem os ponteiros espinhentos de meus relógios sempre adiantados, o silêncio dos eletrodomésticos quebrados. De verdade: só não decepei rente a moita por absoluta falta de espaço na agenda de prioridades que o momento exigia. Pois até matar aquela plantação exigia algo de mim que ia além das minhas forças extenuadas, eu que andava mortinha, fatigada de dar dó. Tarefa de mais para energia de menos. Eu, tão importante em meus comparecimentos, lá iria me curvar a gastar uma caloriazinha de energia, se não para executar o ritual com minhas próprias mãos, fosse para chamar uma boa alma que viesse cortá-la? Imagine, nem! Então, coube-me aquele destino dos que não levantam palha para cumprir suas tarefas. Como não sou dada a queixas, deixei a moita na dela, sobranceira, expandindo-se, expandindo-se, ganhando terreno, regada por – uma vez eu vi – xixi de vira-lata, água do mesmo pote de que ela saíra.
Pois bem. Justiça seja feita, as minhas violetinhas, suas vizinhas de condomínio, tinham adubo, terrinha vegetal, água em gotículas para não magoar as folhas, e coisa e tal, ao passo que a pobre da moita de boninas ficava lá, recompondo-se de seus caminhos percorridos, entregue à sorte do vento e da chuva que viesse. De vez em quando, em meu ritual de rega das plantinhas de enfeite (as violetas), que pareciam artificiais de tão perfeitas, eu lançava um olhar sem querer para a moita viçosa e sólida que aumentava mais e mais de tamanho (as boninas). A bicha não atingia já uma altura de bom meio metro? Eu olhava como a dizer: fique aí, feiosa, que meu carinho você não terá! Um dia virá um raio que lhe tostará de vez. Invasora! Criaturas como você já nascem sentenciadas à poda completa pela raiz.
Mas hoje, vendo-a me presenteando com florezinhas tão delicadas, me bateu um sentimento de culpa desgramado. Tem gente que tem sorte com violetas, que me conta que as suas florescem o ano inteiro. As minhas não são assim tão imediatas. Sugam-me saprófitas, querem água em boa dose, de preferência que não lhes estrague o penteado de folhas delicadas. E até que tenho sorte: ainda não tive a coragem de adotar a fragilidade da avenca; meus desdobramentos em cuidados, até o momento, se limitam às violetas, filhas difíceis, que, a qualquer descuido de pensamento, murcham e se retraem. Meu castigo é não vê-las florescer, é não ter a graça de sua beleza, presente almejado de toda uma vida. Como se elas me gratificassem com essa cegueira, guardando para seus pistilos suas decências e melindres, suas confidências. Cheguei a pensar, durante muito tempo, que essas plantas não me quisessem como sua mãe adotiva. Difícil crer que eu tivesse olho grande com as minhas próprias filhas, mas bem parecia. Era eu ver uma linda violeta num balcão de supermercado, impessoal mercadoria, que a trazia para casa e, de repente, lá estava ela murchando e tombando, sonolenta. Isso quando não morria de vez ou se tornava estéril para sempre. Uma bruxaria, como eu sempre ouvira, essas pragas de secar mão, meus olhos tão sequiosos de flores, a eles só era permitido o vislumbre.
Mas eu não ia me curvar a essa ditadura de violetinhas dodóis. Eu não queria, de fato, sonhar com o lilás de suas flores delicadas, por isso tomei meus cuidados: evitava folhear papéis de estampas dessas flores, nunca mais passei perto de um canteiro, evitei olhar janelas vizinhas de medo de avistar uma violetinha lépida ao vento. Minha condenação parecia não ter fim. Meu purgatório era o limo em lugar do que os outros viam flores. Minha educação sacerdotal me ensinara: não sonhar não sonhar não sonhar, mas: construir – essa a palavra chave, “construir” - sonhos com o que se tem em mão. E em mão mesmo eu tinha eram uns vasos de violetas sem graça, estéreis (como eu?). Meu presente semi-árido. Eu não nascera para cultivar nada, para gerar. Eu me conformasse com as estátuas de gesso, com os manequins de loja, com as bonecas de porcelana. Ingratíssimas vidas! Ando-endo-indo, as minhas parcelas somavam-se, mas o resultado da conta nunca era uma florzinha singela, uma que fosse.
Uma vez uma amiga me confortou: não pense que as flores não gostam de você. Sempre haverá uma flor neste mundo para alguém. A sua não é a violeta. Pode ser outra.
Qual! Podia ser outra, sim, mas não dessas que todo o mundo tem, isso não. Ai, meu Deus, agora eu devia empreender mais um esforço, o de correr atrás de alguma flor exótica ou sei lá! Ai, mas por que tanta dificuldade comigo? Eu buscava, vida afora, o simples e imediato, algo assim como aqueles espelhos de moldura alaranjada vendidos por camelô, feitos para pendurar num prego cravado certo, bem no ajunto dos azulejos, ai que bom passar minâncora nas espinhas, usar leite de rosas, e outros tantos mais etecéteras, tudo tão ao alcance, meu Deus! Mas eu era muito diferente, eu era outra, quem afinal eu era? A que sonhava em branco, sem enxergar futuro, era essa. E então passei a significar alguém que o mundo não queria, comecei a vociferar contra essas imperfeições do homem que o fazem tão homem, comecei a querer adivinhar – adivinhar! - uma brisa de felicidade mínima, e “adivinhar” é coisa que abomino e temo até a raiz do dente.
Foi assim que criei um mundo dominado de seres vivos verdes, esses vegetais, e imaginei-os todos plantas carnívoras a me sugar o que restava de seiva. Cheguei mesmo a me indagar: se a tais criaturas fosse dado o direito de escolher um dono, seria eu a eleita? Nem preciso dar a resposta, preciso? Comecei a enxergar um princípio que regia toda a minha vida, não apenas esses meus desencontros verdes. Por exemplo, roupas de lojas não me serviam - o corpo invisível que servira de molde àquele vestido certamente não tinha sido o meu. Chinelas havaianas, com o uso entortavam-se em meu pé disforme, num sacrifício calmo de ajuste ao desajustado de minha anatomia e, com o tempo pareciam uns chapéus para os pés, um troço muito feio e esquisito. Eu era muito eu, escorregadia na multidão de mil olhos.
Comecei, então, a buscar o que de normal nas coisas, e foi aí que pedi a Deus mil vezes e dez mil outras novenas: ser uma formiga num formigueiro, sem cara nem corpo nem mente, só com a certeza de um fim a cumprir.
Não havia remédio para meu desespero. Assim que eu transpunha a porta da sala e avistava aquelas vidas encruadas em seus vasos de plástico, algo dentro de mim se quebrava, e eu me via de novo longe de meu espírito, parecendo que eu era a grade do portão, ou uma janela, algo muito de ferro e concreto e opaco, sem espelho. Lembro até que um dia cheguei tão fatigada que passei batida por aquele laboratório de desespero, aquele hospital dos horrores em que se transformara meu jardim. Naquele momento, eu tinha uma canseira nas pernas, um peso nas costas, tanta avaria, que sentei ali mesmo, no chão, e retirei os sapatos que me comiam as idéias desviando as angústias para as unhas. Tanto incômodo desviou-me do habitual grito de desespero às violetas, e pude entender que a dor física era um santo remédio para esquecer problemas comezinhos. Mas o autoflagelo não é lá boa técnica de aplacar desprezos. Por isso, resolvi tentar outro caminho. Foi assim que passei a colecionar violetas secas em quadros, como uma vingança. Claro que tudo teve efeito reverso, como era de se esperar... Ver flores tão viçosas e de cor firme, mesmo embalsamadas, me aguçavam a vontade de ver um botão minúsculo espoucando daqueles arbustos vivos do jardim. Nada, nada, nada. O mundo continuava sua viagem sem volta, o silêncio permeava os espaços, tudo estava preenchido, numa zoeira sem fim naquela nave que conduzia tantas vidas, e a folhagem ali, esperando o quê? Contrariando sua própria natureza, que era ter flores e nada mais, fazia-se grama só para me exasperar. Um teste da mãe natureza a esta humilde alma. Provação muito cruel, diga-se.
Enquanto um turbilhão liquefazia minhas idéias, em seu canto a moita verde invasora, pouco a pouco, deu de brotar flores e flores, às pencas, em todos os galhos. E daí? Eu é que não tinha olhos para aquele espetáculo, pois meus anseios estavam entretidos com o sortilégio das violetas, prisioneiros de uma verdade vendida e comercializada: quem nasceu para ornamentar vidas são as violetas, não as boninas, ora bolas! Foi que então, não tenho vergonha de contar, foi que então resolvi num átimo aquela contradição. Bastavam-me os questionamentos diários, a filosofia embutida em cada cela a que nos condenamos; chorar as pitangas que não vingavam, enquanto a outra lá, ria suas flores, deliciando-se? Tesoura nela! E foi assim que cortei, galho a galho, sua exuberância, com a fúria de quem vinga a dor-de-cotovelo no primeiro ombro que passeia. Vez por outra, tive que fazer um grande esforço físico para conseguir romper um galho. Como cortar uma árvore! Foi uma meia hora de assassinato. No fim, a moita despencou-se. No chão, sobraram folhas e flores. As boninas pisoteadas mancharam o piso de um sangue rosa-escuro. Não senti pena. Na verdade, resolvi minha história e por isso estava contente, cheirando a leite de rosas.
O problema foi que, depois de toda essa cena, não tive mais coragem de insistir em cultivar violetas. Sem nenhuma premeditação, olhei os vasos plásticos, as folhas murchas sem viço e dei cabo de minhas angústias, presenteando uma vizinha que tinha o dom de fazer tudo florescer com toda a minha plantação violeteira. Quanto à moita de boninas, recolhi os restos mortais em um saco plástico de lixo, amarrei as bordas e depositei-o na lixeira junto com os outros refugos, onde mais? Sem nenhum remorso. Eu não matava baratas? Então? Agora sacrificava boninas.
Fui para o trabalho apaziguada, sabendo-me bonina numa multidão de violetas bem nutridas e regadas, mas, antes de tudo, feliz com o dever cumprido: livre de plantas rasteiras e, de uma só feita, livre dos ditames de uma vida delicada de quem se faz belo e indispensável só por ser agradável aos olhos. Meus cabelos eram só meus, meus dedos de juntas grossas me pertenciam sim, minhas pintas inusitadas me revelavam de norte a sul, eu me conhecia cada poro, e pronto. O mais era o mundo. Assim, “nunca mais” tive de enfrentar a angústia de passar pelo meu jardim de violetas mal-agradecidas. E bem se sabe o alívio de poder afirmar algo tão eterno como “nunca mais”. As violetas haviam sumido num passe de mágica. Tão fácil! Muito mais do que insistir nos meus caprichos, que mais pareciam ser os delas. A moita de boninas fora o cordeiro imolado, o preço, o característico inausente de todos os acontecimentos do cosmo.
Um pensamento: se eu decepara rente a touceira, então por que agora aquela folhinha verde? Digo isso porque, pouquíssimos dias depois, uma folhinha verde renascera no mesmo lugar onde tombara sem luta a tal moita. Acheguei-me e presenciei. Outros brotos sorriam do fundo da terra. Um milagre! E assim foi. Todos os dias, um broto novo, a cada momento uma surpresa nova. Sim, uma surpresa nova, agora digo, sem medo do pleonasmo -- e como é bom gritar uma surpresa, novíssima e inédita! Tive até a impressão - sim, a impressão, porque meu bom senso não me abandonara - de que presenciara o exato momento do arrebentamento de mais um broto. Não me contive e me deixei, um pouco desconfiada, acariciar cada nova folhinha. Com as mãos em concha, dei de beber às raízes, sem magoar a cabeleira esvoaçante dos galhos. Com pouco, lá estava nova moita, prenhe de lindas boninas encarnadas! Como podia ser aquilo?
Meu coração obrigou-me a buscar respostas. E encontrei-as uma a uma, sem muita pesquisa, tudo ao alcance. A bonina escondia o coração no umbigo da terra. Os cabelos floridos eram mero disfarce. Tosavam-lhe as madeixas, e o coração, lá embaixo, pulsando, pulsando, pulsando... A minha flor! A bonina Eu, e a Márcia, aquela amiga, tinha razão, afinal. Essa era minha flor, cuspida. Agarrei-me às alegrias daquela vida que nada me pedia senão um espaço de fincar as raízes para guardar o coração. Em recompensa, finalmente eu tinha meu buquê sonhado!
Não durou muito, e um dia... cadê minhas boninas? Aproximei-me rapidamente e pude ver o toco da raiz cortado rente ao chão, tal qual eu fizera outro dia. Quem fez isso? Que aconteceu? Cadê o raio? O machado? Onde as armas?
Sai a empregada: cortei o mato do seu jardim, gostou?
Com as mãos na cintura, eu nem lhe respondi. Não valia a pena. Afinal, seus olhos eram os do mundo. Também não lhe agradeci a boa vontade súbita de fazer um trabalho extra sem que eu lhe pedisse. Guardei minha ansiedade para o próximo milagre, que, desta vez, eu tinha certeza, viria certo, como da outra vez.
Enquanto isso, as - que antes eram minhas - violetas me sorriam sarcásticas, da sacada do apartamento do prédio vizinho à minha casa. Sem nenhum ressentimento, corri para a rua e parei em frente da janela florida para contemplar a beleza daquelas flores. Mas, não sei, pareceu-me que elas tinham um quê de bicho amestrado, algo assim como quem vive no fio da navalha, alguém que “ou floresce, ou morre”. Acho que era só uma impressão ou, confesso, um desejo para justificar aquela florescência toda. Enviei-lhes um esboço de sorriso e continuei a contar pedras de volta a minha casa. Em meu terreno semi-árido eu tinha agora um coração transplantado, a vida pulsando firme em meus subterrâneos.










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