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Contos-->A Peixada -- 30/12/1999 - 20:37 (Lustosa da Costa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A PEIXADA

Na manhãzinha do dia em que seria assassinado, o tenente Benedito Sampaio acordou assobiando, de tão feliz. Assobiando, fez a barba, tomou banho e depois bebeu o café, acompanhado de tapioca quentinha com leite de coco. Estava com a cabeça longe. Na filha do cordeador da Prefeitura com quem iria às devoções na Catedral. Pensava ainda na peixada de curimatã que a Chaga, cozinheira da pensão, lhe preparava, famosa em toda a estrada de ferro, da boca do sertão de Crateús até a pancada do mar de Camocim e de que a Olímpia fazia tanta propaganda.
Cedo, sobe até o alto da cadeia onde ouve, impaciente, a queixa diária dos presos contra a falta de luz à noite e o tratamento que lhes dispensava o carcereiro, o Eufrasino, um mulato, de voz macia, muito falso, envelhecido naquele trabalho vil e sádico, habituado a extorquir dinheiro dos detentos até para lhes permitir receber visita da mulher e dos filhos. Prometeu vagamente uma providência, o pensamento longe.
Volta ao Hotel “Rendez vous des Amis” a fim de tomar banho para sacudir a poeira da caminhada e vestir a farda de gala. Ia assistir à missa das nove horas na Catedral da Sé, que era oportunidade de toda a cidade mostrar elegância. Depois, iria deixar a filha do cordeador da Prefeitura, em sua casa ali pertinho, na Praça Nossa Senhora das Dores.
Antes passa pela cozinha, só de curiosidade, para indagar da Chagas como vão os preparativos do almoço.
“Tou caprichando, tenente”, diz a cozinheira. Chaga tinha 1,40 de altura, era quase anã, entroncada, torta, zarolha. Como tal, era apontada pelo doutor Aristeu Honório Parente, como a “mulher mais feia da América do Sul. É o retrato da alma da patroa”, acrescentava, movido por velhos ódios políticos.
Sampaio pega a colher de pau para provar do molho em que o peixe estava sendo cozido:
“Agora, não tenente, que ainda não pegou tempero”, protesta a Chaga, com pruridos de artista cuja obra ainda não se concluíra.
Olímpia, com o cigarrinho pendurado no canto da boca, soltando fumaça pelo nariz, chega à cozinha. O tenente fica encabulado.
“Desculpa, dona Olímpia, vim só ver se o caldo está apurado”.
“Não tem nada o que desculpar, tenente. Encomendei essa cambada de curimatã com o Maximino foi pro senhor mesmo. Botei umas Bock Ale no refrigerador também. Agora, aqui prá nós tenente, lugar de homem não é na cozinha, não”.
Corado do carão, o tenente vai saindo, de lado, o jeito desconfiado naquele homão vermelho e corpulento.
“Obrigado, dona Olímpia, a cerveja até dispenso, mas o peixe do jeito que a Chaga sabe fazer, chega a ser um pecado.”
“Pois, trate de deixar a Chaga trabalhar como só ela sabe.”
“Certo, tá certo, dona Olímpia, mas haverá uma pimentinha malagueta bem ardida para o molho?”
“E haverá de num ter? Há de tudo, tenente, sossegue. O molho, o pirão, a cervejinha. Agora, vá para a missa cumprir as suas devoções.”
* * *
À janela do Hotel, “Rendez vous des Amis”, Olímpia Catingueira comenta os acontecimentos com um amigo que passa, o Manuel Florêncio Borges. Aponta, com os olhos, para o interior da sala-de-visitas, onde uma criança, já vestida pra viagem, brinca com o gato da casa, a mãe igualmente pronta para partir, está sentada no sofá de palhinha, segurando a sombrinha como se nela se apoiasse. A seu lado, de pé, de guarda-pó, chapéu na mão, o chefe da família, inquieto, consulta o relógio de bolso.
“Esse aí, Mané, parece cerveja quente, de tão avexado.”
“Quem?”
“Esse cara aí com a criança. É do DNOCS.”
“Este, de guarda-pó?”
“Claro, seu Florêncio, porque o outro todo o mundo conhece de cor e salteado, o seu Jamil, galego, viajante dos Pessoa de Queiroz que, tão festeiro e namorador, termina casando aqui, em Sobral.”
“Já vi! Esse casal com a criança...?”
“Pois num é? O trem só sai às duas horas da tarde. Ás 8 horas, ele pagou a conta. Desde às 9, está todo paramentado para partir, de guarda-pó, já encheu a quartinha d água para a viagem, de cinco em cinco minutos olha o relógio, achando que o automóvel do “Foguinho” não chega a tempo. E num são nem dez horas. Vige Maria, Ô homem avexado! Parece que foi batizado com água fervendo ...”
“Que cheiro bom? É peixe, né, dona Olímpia?”
“É um curimatã que veio do Jaibara para o tenente.”
“Só quem pode é o tenente...”
“Ele merece”, diz Olímpia. “Graças a ele, não preciso mais dormir com o meu rifle serrado debaixo da rede e o Smith and Wesson sempre ao alcance da mão, para sossegar os desordeiros dos marretas.”
“Iche Maria, é um arsenal.”
“Arsenal, que nada, é preciso. Se o tal do Romão vier, de novo, com abuso pra minhas bandas, encho-lhe as fuças de balas, com o tenente ou sem o tenente. Não tem nem talvez...”
“Dizem que ele chegou de Ibiapina, disposto a encostar os bigodes com o tenente.”
“D...u...v...i...d...o”, diz ela soletrando as letras...
“É o que os marretas andam espalhando lá no Taco de Ouro.”
“Hoje cedo se formou um grupo no Itatiaya, dizendo que desse domingo não passa. O Romão tira a foba do tenente e lhe dá um ensino.”
“Que nada, Florêncio! Ele anda murcho que até me admiro. Votou nos candidatos dele e não aprontou nenhuma arruaça quando perderam, embora tenha feito poucas e boas lá pros pastos dele.”
“É, mas é em Ibiapina. O delegado é outro. Não sei, não, dona Olímpia. É um zum-zum que tenho ouvido. Mas não quero ser portador de má notícia. É que, quem avisa, amigo é.”
“Prá má notícia, seu Florêncio, tou muito bem servida. A cidade, também. Temos o Ataliba Teixeira. Jamais vi coxo tão ligeiro pra trazer e levar fuxico.”
Numa mesa de honra de quatro lugares, separada da outra maior ocupada pelos hóspedes comuns, estão sentados o tenente Benedito Sampaio, o doutor Gastão, muito gordo, de barba negra, roupa escura, colete escuro, um riso largo que lhe descobre os dentes grandes e muito brancos. O advogado Antônio Gomes de Moura, pálido, magrinho, chupado, elegante, chochinho, de pouca conversa, tira do bolso da calça uma caixinha de metal contendo os vários remédios que vai tomar. Não tem nenhum apetite.
A Chaga chega, com a panela do peixe fervendo, recomendando: “Cuidado!” O tenente esfrega as mãos, feliz como um menino. A empregada traz ainda a tigela com o pirão bem fumegante, o prato de arroz e numa latinha usada de manteiga, com o molho com pimenta, não sem antes recomendar: “A pimenta está braba. Vão com calma!”
Há aquele instante de indecisão diante do peixe. O tenente olha para o médico. Este hesita. Ambos se voltam, sem maior interesse para o doutor Mourinha, até que Olímpia, de pé escorada no espaldar da cadeira, dá ordem de comando:
“Mãos à obra!”
“A senhora não se senta?”
“Não, doutor Gastão, fique à vontade.”
O tenente, rápido, puxa a panela do peixe para perto de si e sorve o cheiro da comida, com gosto, com cara de muito apetite.
Arrepende-se da sofreguidão. Pede a doutor Moura que seja o primeiro a se servir:
“Comece, doutor.”
“A vez é sua, tenente.”
“Ora, doutor, tenha a bondade.”
Olímpia atalha a troca de gentilezas:
“Vamos acabar com requififes, senão o peixe esfria.”
O tenente, que já puxou a panela e é louco por cabeça de peixe, inicia os trabalhos.
Sampaio coloca duas cabeças do peixe e começa a comer.
“Como é, doutor Moura, vai uma Bock-ale?” pergunta dona Olímpia, dando uma baforada de cigarro na direção do advogado, aparentemente sem intenção de fazê-lo. O Moura sacode a fumaça com a mão, tosse assustado e, depois, coloca o lenço sobre o nariz:
“Não, obrigado, dona Olímpia, muito obrigado. É o fígado... É meu maior inimigo.” E apalpa o fígado, trazendo, no rosto, uma imensa pena de sim mesmo.
“Como é, doutor Gastão, o senhor também bota a cerveja como inimiga ou não tem essa ziquizira?”
“Tenho nada, comadre”. Digo, agora, como vocês aqui do Norte: “triste do bicho que outro engole!” Quero tudo a que tenho direito.”
Gastão serve-se de várias postas de peixe, de pirão, arroz e vai pingando o molho sobre a comida, com cuidado. O doutor Mourinha escolhe, escolhe e termina ficando com o menor pedaço e um pouquinho de arroz. E ainda olha os outros como que para criar vontade de começar a refeição.
O tenente, com o guardanapo preso no colarinho da farda, tenta primeiro comer o olho do peixe com o garfo, acompanhado pelo doutor Gastão que se diverte com seus apuros. Até que não resiste e degola o curimatã com a mão. Chupa os olhos do peixe e depois introduz a língua em seu interior para capturar suas nervuras, suas gorduras, seus sabores bem entranhados pela natureza e tão aguçados pelos temperos da Chaga. O guardanapo cai-lhe do pescoço. Ele o recoloca no lugar. Concentrado em comer, nem fala. Transpira muito na operação a que se entrega, com capricho, ante o olhar divertido do doutor Gastão.
“Isso é que é gostar de peixe. Taí, um hóspede desses dá gosto preparar o de comer...”, comenta, entusiasmada dona Olímpia.
Brincalhão, o doutor Gastão se serve de um gole de cerveja que lhe deixa os bigodes brancos, como neve. O tenente coloca ainda na boca um pedaço da cabeça do peixe para ver o que dela ainda resta, o que ainda lhe pode extrair. Quase nada. Findara o bom combate. Pede licença ao doutor Gastão e ao doutor Mourinha. Vai lá fora. Pede à outra empregada, a Gilberta, um caneco d água e sabão para lavar as mãos.
“Já acabou, tenente?” pergunta Chaga, desconfiada.
“Acabou? Que nada! Mal comecei! Chupei a cabeça do curimatã. Agora, vou ao corpo. Primeiro, quero lavar as mãos.”
“Suado como o senhor está, deve ter sido um trabalhão!” Diz Chaga derramando água nas mão do tenente. Ela não deixa a colega atender ao cliente, os olhos trocados, mais zarolha que nunca, no enternecimento de servir ao herói da pensão.
O tenente volta à mesa, onde o doutor Gastão come seu peixe, com muita disposição. De repente, ouve-se ao longe uma tremenda barulheira: “Morte! Só matando! Viva o coronel Franco Rabelo!” O tenente ergue a cabeça na direção de Olímpia. As sobrancelhas se alteiam na testa. Revela preocupação e tristeza, pressentindo as dificuldades que se aproximam. Que serão só duas.
De repente, as quatro janelas da sala de visitas do hotel e a porta ficam cheias de rostos e bustos de pessoas que gritam, angustiadas, por Olímpia.
O viajante, com a mulher e o filho, recua para o fundo da sala, em direção ao primeiro quarto de dormir. À porta, chapéu na mão, sujo de poeira, suor e sangue, a aflição escrita no rosto, um correligionário, o democrata Raimundo Marreiro. O tenente, que começara a amontoar mais postas de curimatã no prato, olha-as, antecipadamente saudoso, cheio de desolação. O doutor Gastão mete a cara na caneca de alumínio onde sorve, devagar, a cerveja fresca, como se fosse aquele o último gole de sua vida e na tranqüilidade do forasteiro, que nada tem a ver com aquela briga, comenta:
“Dona Olímpia, nem na Alemanha se bebe cerveja igual!” A dona da pensão não ouve o elogio, atraída pelos populares. Deixa a cadeira em que se apóia e vai para a entrada do hotel, a fim de receber os visitantes que gritam:
“Viva o coronel Franco Rabelo! Viva o doutor Castanho! Viva o tenente Benedito Sampaio! Viva Olímpia Catingueira! Morra o doutor Jordão! Morra o doutor Aristeu! Cadeia para o Romão Patriolino!”
Que fuzuê é esse?” indaga Olímpia, as mãos nos quadris, o cigarro pendurado no canto da boca, se aproximando da porta de entrada do hotel.
“Foi o Romão Patriolino”, respondem muitas vozes.
“Fala um de cada vez. O que foi que houve, seu Marreiro?”
“Ora, dona Olímpia, nem lhe conto. Eu num tava fazendo nada.”
“Então, como é que ficou assim, todo suado, rasgado, sujo de sangue?”
Vexado, segurando, na mão, o chapéu de palhinha, Marreiro explica:
“Estava tomando minha cerveja lá no Itatiaya com uns amigos, quando o Romão, sabendo que sou democrata, deu para implicar comigo...”
Impaciente, Olímpia pergunta:
“Sim, é o que ele faz quase sempre, arruaça, desordem.”
“Veio para minha mesa dizendo que todo rabelista era corno.”
Olímpia contém o riso e ouve, com atenção, a narrativa.
“Os colegas, que estavam comigo, ficaram calados, metendo a cara em suas canecas de cerveja. Só eu caí na besteira de falar que ele não repetisse aquilo, que não podia fazer aquela acusação a todos os marretas. Porque, afinal, tanto há rabelista quanto há marreta corno.”
“Bem-feito”, diz dona olímpia, sorrindo, “chifre é o que não falta lado de lá”, completa.
“Bem-feito, que nada. Foi quando ele se exasperou e disse. “Pois eu não sou corno e você vai dizer isso bem alto”. Corri para a rua para ver se me livrava e ele foi atrás. Desesperado, entrei no café da Maria Felismina, naquele alvoroço, derrubando mesas e cadeiras, para escapar do excomungado. Esbarrei no balcão. Ele, então, me enfiou a faca aqui atrás...” Ele hesita e termina dizendo : “Aqui na bunda” e ainda disse: “Taqui o que tenho pros rabelistas como você, ponta de faca na bunda. Pro tenente Sampaio, o Pirão Gordo, para a patroa dele, e aquela perua da Olímpia”.
“Que desaforo! Isto não vai ficar assim! Vou falar com o tenente.”
Ela vai para a mesa onde o oficial, de cabeça baixa, como tentado a ficar fora dos acontecimentos que o puxam, o convocam, o reclamam, encara o peixe.
“O senhor, ouviu, não ouviu, tenente Sampaio?” pergunta a dona da pensão.
“Ouvi, sim, dona Olímpia. É lamentável.”
Com as mãos nos quadris, um olhar de espanto, ela comenta:
“Lamentável?” E, pela primeira vez, levanta a voz para seu hóspede preferido que, meio sem jeito, tenta corrigir a tibieza:
“É um abuso intolerável.”
“Ora, tenente, o que o senhor tem de fazer é restabelecer a ordem pública. Para isso, o senhor é pago. Tem de prender aquele desordeiro e deixá-lo na cadeia a pão e água pelo menos uma noite pra se emendar. Baixar a crista, quebrar a castanha dele!”
Contrafeito, contrariado, o tenente se levanta da mesa, tirando o guardanapo que trazia pendurado ao pescoço e endereça olhar tristonho, antecipadamente saudoso na direção do peixe amontoado no prato. E diz, apenas:
“Vou ver o que posso fazer.”
Sai, irritado. Os curiosos, que se aglomeram à porta da pensão, o seguem. Ele vê a pequena multidão. Pergunta, aos berros:
“Morreu galego? Nunca me viram, não?”
O grupo se dispersa e ele, exasperado, adverte:
“Não quero essa procissão atrás de mim, não. Vão pra suas casas. Não têm mais o que fazer, não?”
Meia hora depois, volta. Quando avista Olímpia, à janela do hotel, sua primeira reação é no sentido de voltar. Sabe o que espera. Não há saída, porém. Quando se aproxima da pensão, ainda da janela, ela dispara a pergunta:
“Como é, prendeu o homem, tenente?”
Ele murmura qualquer cousa, mais ou menos como “já lhe explico, dona Olímpia” e vai entrando na sala de visitas, onde ainda se encontra o casal com a criança, todos prontos para partir, o caixeiro viajante Jamil Mansur e três outros amigos da casa, que folheiam revistas e jornais, colocados sobre uma mesa redonda de tampo de mármore.
“Pois é, dona Olímpia, fui à casa do delegado civil, o doutor Aprígio, lá na praça do Menino Deus, para ele decretar a ordem de prisão do Romão Patriolino.”
“Ordem de prisão?” indaga Olímpia, espantada.
“Sim, senhora, são as instruções que tenho. Andar dentro dos trilhos. Não sair da lei.”
“Ah, seu tenente, então a lei só funciona contra nós, rabelistas? É nossa inimiga, mesmo quando estamos de cima???”
“A lei tem de ser cumprida, em qualquer circunstância”, diz ele, em tom tão convicto, que deixa Olímpia furiosa.
“Tenente, não me leve a mal, mas isso não é conversa de homem.”
O tenente se ruboriza. É um homem alto, corpulento, vermelho, vestido na farda de gala diante daquela mulher baixinha, gordota, cabelo à la homme, lábios finos, em que se dependura, permanentemente, um cigarro aceso ou apagado. A impressão que se tem é de que ele vai agredi-la fisicamente.
“Dona Olímpia, não fosse a senhora mulher, sapecava-lhe a mão na cara. Não fugi dos cangaceiros do Lampião, lá no Cariri, iria correr de um Romão Patriolino qualquer?”
Ela não se perturba, em sua altivez:
“Não tive a intenção de ofender o senhor. Mas, não agüento mais. O senhor veio para manter a ordem e evitar as provocações dos marretas. O Romão desacata todo o mundo e não lhe acontece nada. Vive dizendo que o governo pode ter acabado para seu chefe, o doutor Jordão. Para ele, não. Governo mesmo, é uma faca afiada nos cós. E o senhor me vem falar de leis. Pra lei, não preciso do senhor, da Polícia. Recorro ao doutor Moura”. E olha na direção do advogado que, muito sem graça, sem interesse, folheia uma velha revista.
O tenente se encaminha para a mesa, doido para recomeçar a refeição interrompida. Mal acaba de sentar, enquanto Olímpia resmunga lá na sala de visita, ouve um alarido na rua. Mais gente chegando. É o botador d água da pensão que chega. Ele se queixa de que Romão o botou para correr com sua peixeira. E, ao lhe dar um pontapé no traseiro, dissera:
“Vá dizer ao tenente que quem bateu em você foi Romão Patriolino!”
Olímpia indaga do oficial:
“Como é, tenente, o senhor vai continuar aí parado?” Sem jeito na cadeira, o policial tenta esquivar-se.
“Tenho de esperar que o delegado volte da fazenda. Só ele pode ordenar a prisão. É o que manda a lei.”
Aquilo é demais para a dona da pensão. Olímpia se enfurece. Fica vermelha, puxa uma baforada funda do seu cigarro e, como que cresce, se agiganta num desafio ao militar:
“Tenente, se o senhor não é homem, me empreste sua farda e vista minha saia que vou prender o homem!”
* * *
No relógio da parede da sala de visitas do hotel, soam onze badaladas. O tenente Benedito Sampaio, colhido pelo desafio de Olímpia, avança em sua direção. Parece que vai esbofeteá-la diante dos presentes, que ficam estatelados, esperando sua reação. A dona da pensão, firme, não recua, forte, alteada em sua provocação. O policial vai ao quarto. Pega a faca e esconde na perneira. Coloca seis balas no bolso da túnica. E, batendo a porta da sala de visitas, sai para a rua, espumando de humilhação e de raiva.
O sol está a pino. Ele se esgueira das poças d água que podem enlamear-lhe as botas e a calça da farda. E pensa consigo mesmo no desaforo que aquela atrevida da Olímpia lhe fizera. Afinal, seus agrados, o bom trato eram para que fosse um pau-mandado nas mãos dela, dos rabelistas. Ao mesmo tempo, lembra que, de fato, veio para Sobral para conter Romão Patriolino. É o que, afinal, tinha de fazer. Já gozara muita a vida nos piqueniques na Serra ou do outro lado do rio, no namoro com a filha do cordeador da Prefeitura durante o trajeto do bonde da Estação da Estrada de Ferro à Cruz das Almas, nas festas, nas quermesses, até em canoas, durante as últimas enchentes. Agora, era hora de prender o homem. No Bar ou na Praça do Mercado, na frente de todo o mundo. Assim, lhe desmanchava a valentia. Leva-lo-ia preso até o alto da cadeia, para lhe dar um ensino. Voltaria, triunfante, à pensão para que Olímpia nunca pudesse pensar que ele estava com medo, acovardado. O que não queria, mesmo, era imitar os outros governos, agir fora da lei. Poderia, depois, até fazer uma exceção e ir ao Itatiaya beber um gole de Macieira, para saborear o triunfo. E, à noite, durante a bênção do Santíssimo na Catedral, talvez, até, conseguisse carinhos mais generosos da filha do cordeador da Prefeitura, no escurinho detrás da igreja. Estava tão enlevado ao pensar na namorada, que se descuidou e deu uma topada que o fez erguer o pé para friccioná-lo:
“Porra! Hoje não é mesmo o meu dia de sorte.”
Continuou a marcha, caxingando um pouco até que endireitou o passo na Praça do Mercado. Era o fim de feira. Ainda havia vendedores de galinha com varas no ombro, em que estavam penduradas pelos pés as aves a serem negociadas. Alguns merceeiros começavam a dar o balanço nas vendas para cerrar as portas da suas bodegas. Nos mourões pegados ao pavilhão de aço, instalado pelo prefeito, encontravam-se dezenas de jumentos, os caçuás vazios, pendendo das cangalhas, relinchando de sede, fome e, às vezes, de cio. O tenente percebe que é aguardado, porque um grande silêncio se vai formando, até tomar conta de toda a praça. Portas de lojas e de casas de família vão se fechando, discretamente, na iminência do duelo, enquanto os mais assustadiços e as mulheres espiam, por detrás das suas venezianas.
Romão Patriolino, de roupa clara, chapéu, de costas, conversa com amigos, à sombra do ficus de benjamim. É advertido da aproximação do tenente, porque se volta, devagar, com calma, para vê-lo. E passa para trás da árvore. Ele vai em frente, a mão no revólver, o olho no adversário, enquanto mais lojas e mercearias vão encostando as portas. Nisso, um jumento, amarrado de corda preso ao mourão, começa a relinchar alto, fazendo força para se libertar do cabresto de corda preso ao mourão. O tenente, porém, não tira o olhar de Romão Patriolino, que o espera, as pernas bem abertas, as mãos soltas ao lado das pernas, como se tivesse toda a coragem do mundo.
“Romão Patriolino, você está preso. Me entregue sua arma!” ele grita.
Romão responde, durante, sem qualquer tremor na voz:
“Um homem não se prende, se mata. Venha me prender, seu tenentinho de merda!”
E, deixando a proteção de um ficus de benjamim, avança no rumo do oficial que atira justo em seu peito. Romão cambaleia, põe as mãos no tórax e logo o sangue lhe jorra sobre a camisa, o paletó. Ele cai, devagar, a cabeça escondida entre os joelhos. O tenente ainda dá alguns em direção ao morto, pensando consigo mesmo que o adversário foi mais fácil de bater do que o esperado. Estava ali, caído de joelhos, o peito varado por uma só bala, desfechada, provavelmente, já prestando contas com Deus. O tenente se aproxima, o revólver na nuca de Romão e vai atirar, é surpreendido. É o morto que, num arranque desesperado, se levanta, punhal na mão. E, naquele mesmo impulso, desfere uma facada na direção horizontal que lhe rasga todo o baixo-ventre.
“Matou-me, filho da puta. Mas vai morrer também”. O tenente atira, mas, já sem firmeza na pontaria, porque precisa segurar as vísceras com a mão. Apoiado, praticamente abraçado ao ficus de benjamim, o policial atira, mais uma vez, em Romão, que corre em direção à Praça da Sé. A bala o atinge no quarto. Romão tropeça, o sangue encharcando-lhe a calça. Mesmo assim, prossegue na corrida.
O tenente Benedito Sampaio descarrega as cinco balas de seu revólver, na direção do fugitivo. Os tiros se perdem. Joga a arma no chão, ciente de que ela não lhe serviria, nunca mais. Aquele homem alto, forte, corpulento, quase gordo, marcha cambaleante, as mãos tentando conter os intestinos que se evadem, de volta ao hotel, para uma agonia penosa de três dias e três noites sem dormir, em que atroava o quarteirão com seus patéticos e desesperados gemidos.
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