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Contos-->Ode ao trabalho -- 24/04/2002 - 21:46 (tarsila gama) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
ODE AO TRABALHO




Acordou de manhã e decidiu que não ia trabalhar. Puxou as cobertas novamente , ajeitou o travesseiro e voltou a roncar. Menos de cinco minutos depois Noêmia entrou no quarto.
-Joãozinho, não ouviu o despertador?
Ele nem se moveu.
-Acorda, homem! Você tem que deixar a Lucinha na escola , passar na casa do Juvenal e pegar as promissórias para pagar no banco.
-Não vou trabalhar, mulher.
-Olhe, Joãozinho… Hoje acordei com a ciática e não estou para brincadeira.
Mas ele parecia decidido.Sentou-se na cama e bufou:
-Nô, não adianta insistir. Acabei de me aposentar. Não vou hoje nem nunca mais.
-Homem, você foi mandado embora? Por que não me avisou?
-Trabalho desde os 15 anos.Tenho 48 e há anos não tenho férias. Pego aquele ônibus todos os dias no Largo Treze, troco de condução no centro, caminho 1 quilômetro . Chego na repartição, abro minha gaveta e só vou parar às seis horas. Aguento a Lili e o Seu Afonso no meu pé o dia inteiro. Pensa que é fácil?
- Deixe de graça! Vou preparar o café e já volto.
Noêmia saiu e voltou.Desta vez estava realmente perdendo a paciência. Bateu a porta, endireitou-se e começou a bater as solas do sapato,em sinal de protesto.
-Joãozinho, não existe nada pior do que marido atazanando dentro de casa. Quer fazer o favor de parar já com isso?
-Será que não estou sendo claro? Hoje não vou trabalhar. Nem amanhã, nem depois de amanhã.
-Por que você está me provocando ? Retrucou a mulher. E começou a chorar. Noêmia era daquele tipo de mulher incansável. Não se lembrava de um único dia em sua vida sem acordar cedo, arrumar a casa , arrastar os móveis. Tinha, na verdade, um certo orgulho deste jeito de ser, que considerava de gente de bem. Era isso que fazia com que tolerasse seu casamento de 17 anos com Joãozinho. Frequentemente ainda se recordava do caixeiro do seu bairro, um homem grande, altivo, dançava divinamente, irresistível para as mulheres. Mas tinha que admitir que Joãozinho era um homem trabalhador. Nesse ponto o homem era um primor. Trabalhava religiosamente e nos finais de semana ainda encontrava tempo para fazer os reparos domésticos. Pequenos consertos, pinturas .Este era seu único atrativo . De resto ele não tinha nenhum ponto forte. Era um homem feio, entrevado. Por isso mesmo este novo comportamento estava chocando demais. Não era admissível.
Sentou-se na cama , colocou as mãos na cabeça e passou a soluçar:
-Joãozinho, não faça isso comigo. Aquele dinheirinho que eu ganho com o aluguel da João Ramalho não nos sustenta ! Além disso aquilo é herança da minha mãe, ouviu? É tudo muito meu.
-Acontece que eu sempre sustentei essa família. Está resolvido e pronto.
-Pronto o que? Não tem nada pronto. Vou chamar a sua mãe se você continuar com isso.
-Pode chamar.Chame também o bispo.
Noêmia abominava Dona Zuleica, a sogra, mas essa era uma típica situação em que seria necessário unir os esforços para um bem comum. Além disso Joãozinho mandava religiosamente um dinheirinho para os gostos da mãe, o que seria um argumento infalível. Chamou a sogra. Neste momento Joãozinho deitou-se e armou uma barricada com os travesseiros, como que preparando-se para a guerra.
Logo depois chegou Dona Zuleica, arfando. Foi chamada pela vizinha e veio correndo. Era uma dessas velhinhas sacodidas, empertigada mesmo.
-Joãozinho, meu querido, você está doente, meu amor? O que você tem?
-Nada, mãe. Acho que nunca me senti melhor . Acordei com uma lucidez incrível, não sei para quê passei todos esses anos levando essa vida. De repente tudo faz sentido .
-Olhe,filhinho. Será que você está com febre? Talvez alguma coisa da cabeça. Está com alguma dor?
-Não, mãe. Nada mesmo. Agora me deixem em paz, porque eu quero dormir. Tenho muito sono atrasado pela vida afora.
Disse isso , virou-se de lado e começou a roncar, fingindo que dormia. As duas saíram do quarto transtornadas e pela primeira vez na vida concordaram em algum assunto.
-A senhora viu, Dona Zuleica? Ele endoidou mesmo.
-Pois é, Noêmia. Estou preocupadíssima! Deve ser alguma virose ou coisa que o valha. Vamos chamar o doutor Teixeira agora mesmo.
As duas saíram correndo pela rua, para chamar o clínico que morava na vizinhança. Lucinha, a filha , foi a única que divertiu-se com a situação. Fez melhor do que isso: torceu veladamente pelo pai. Pegou a mochila, aproveitou a saída das duas para dar um beijo em Joãozinho e saiu de casa rindo sozinha. Logo depois chegou o doutor:
-Salve, Joãozinho. Não acordou bem hoje?
Os dois eram conhecidos de longa data , moravam no bairro desde o tempo das ruas de terra.
-Estou ótimo, Teixeira. Pode examinar.
O médico fez um exame completo, muito minucioso, como era de seu temperamento. Deu o veredito:
-Não é que você está bem mesmo? Olhe, me desculpe mas eu não vou poder fazer um atestado para justificar a falta no trabalho. Sinto muito.
-Mas quem falou nisso? Eu não vou mais trabalhar.
-Deixe disso, meu amigo. Eu até te compreendo, sabe? Também já tive estas vontades. Mas a vida e as obrigações não permitem esses arroubos de liberdade. Bom, estou indo que já estou atrasado para o consultório. Um abraço para vocês.
Mal acabou de falar e já virou para deixar o quarto. As duas saíram correndo atrás dele pela casa e depois pela rua.
-Mas doutor, é grave o que ele tem?
-Olhe, Dona Noêmia, o homem está ótimo. Aliás, talvez esteja melhor do que nós. E encerrou a conversa.
As duas voltaram cabisbaixas para casa. Dona Zuleica entrou no quarto e postou-se ao lado do filho, montando guarda. Só saiu na hora do almoço, porque tinha encomendado à sua empregada que lhe fizesse uns bolinhos de batata, que adorava. Achou o motivo nobre. Noêmia aproveitou a oportunidade para ter uma conversa séria com o marido:
-Joãozinho, vamos conversar. Eu não mereço isso de jeito nenhum. Depois de tudo o que eu fiz por você durante todos esses anos!
-Opa! Acho que você está distorcendo os fatos. Quem foi que sustentou a família durante todo o tempo? Quem foi que aceitou casar-se com você já grávida do caixeiro viajante? Pois eu não criei a menina como minha filha legítima? A gratidão é o mais pesado dos fardos não é, Noêmia? Você não me tolera por isso.
Noêmia não compreendeu completamente o significado daquelas palavras. Mas ficou indignada. Ele nunca havia voltado a tocar nesse assunto depois do casamento.
Saiu do quarto sentindo um ódio desmesurado. Bufava pelos cantos, jogou a cristaleira no chão e saiu de casa sem rumo. Andou pelas ruas do bairro durante horas . Quando os pés começaram a doer sentou-se num bar e pediu uma média. Pensou bem e substituiu o pedido. A situação pedia mesmo um rabo de galo.
Chorou muito, mas depois de algum tempo uma idéia foi surgindo bem devagar. Como uma escultura tomando forma, a idéia foi se ajeitando, os contornos ficaram cada vez mais claros. E o choro foi substituído primeiro por uma feição séria e depois por um sorriso de canto de boca, uma expressão de escárnio.
Saiu rapidamente do bar. Só lembrou-se de pagar a conta quando o menino veio atrás. Entrou em um supermercado e dirigiu-se ao setor de utilidades domésticas. Sentiu um frisson e uma euforia difícil de explicar . A respiração estava rápida e o coração disparado. As mãos suavam enquanto percorria mentalmennte as prateleiras. Até que viu uma embalagem prateada, linda mesmo, com letras garrafais: “ratoff”. E o nome ficou se repetindo incessantemente: ratoff,ratoff, ratoff…Pegou a embalagem, passou no caixa e saiu lendo as instruções:”Veneno para ratos. Perigo: não deixe o produto ou a embalagem ao alcance de crianças". Enfiou o frasco na bolsa e voltou rapidamente para casa.
Entrou na cozinha e começou a preparar o almoço: arroz de forno com costeletas.O prato predileto dele. Pegou um punhado do pó e cheirou para certificar-se de que o cheiro não estava desagradável. Colocou uma pitada na língua e cuspiu rapidamente para ver se o gosto era forte. Lavou a boca várias vezes. E a euforia ia crescendo. Imaginou-se livre da convivência e o coração voltou a bater mais rápido. A boca estava seca. Cozinhou com o maior capricho possível. Colocou na bandeja , enfeitou com um ramo de salsa, encheu um bom copo de cerveja e levou para o quarto do casal. Acordou Joãozinho docemente dizendo:
- João,pensei bem sobre o que você disse. Acho que consigo te entender. Vamos ver se tiramos umas férias, vamos viajar um pouco. Ah, fiz uma comida para você.
João sentou-se na cama, aquela conversa lhe pareceu um pouco estranha. Não acreditou em uma palavra. Mesmo assim pegou a bandeja, ajeitou-se,deu a primeira garfada. E a segunda e a a terceira. Não fez nenhum comentário. Noêmia suspirou e disse:
-Bem,vou dar uma saidinha, um pulinho ali no banco para pagar as contas e pegar um dinheiro. Já volto, tá?
Pegou a bolsa, ajeitou o cabelo e saiu. Pensou que nunca, em toda a sua vida, tinha se sentido tão bem.


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