E por que bolinha? Todos o chamavam assim... mas ele tinha um nome! Marcos, ou Marquinho. Mas todos o chamavam de bolinha. Pai, mãe, tia. O irmão mais velho, Tonico, era só gozação. Tudo bem. Bolinha... digo... Marquinho era um pouco gordinho. Tinha um corpo um tanto quanto redondo, cabelos lisos e curtos, rosto rechonchudo e rosado. Mas não precisavam por apelido!
Também tem uma grande fama de covarde. Não pode ver galinhas, acredita nisso? Isso porque um dia quando ele era criança (já é gente grande, pois sabe ler e escrever) ele estava no galinheiro, e tentou roubar um ovo escondido de sua mãe, para fazer um furinho e tomar. Sorrateiro, bem quietinho, chegou de mansinho, viu o ovo, esticou a mão para pegá-lo e... Ouviu muito cocoricó, e uma galinha zangada (de certo a mãe do ovo) correu frenética em sua direção!
Ele, amedrontado, correu também, o mais rápido que o seu corpo grandinho podia permitir. Mas a galinha lhe bicou o traseiro, forte, doído. Marquinho, tadinho, chegou chorando alto, para sua mãe. Inventou uma estória sobre a bicada (oras... ele estava andando quieto, e a galinha maluca o atacou!) e com medo que a agressiva ave não estivesse satisfeita com o ataque, pediu para a mãe fazer uma canja com ela. E, lógico, ela cumpriu seu desejo... e ele saboreou vitorioso o prato, que um dia, foi uma galinha muito cruel.
E nunca mais pôde chegar perto de outra galinha. Tonico vive fazendo ameaças do tipo “se você não me der uma bala, te jogo no meio das galinhas!”. Isso tudo era horrível para Marquinho, pois, agora ele é gente. Sua professora disse que só seria gente se aprendesse a ler e escrever, e aprendeu tudo direitinho, tanto que sempre tira notas altas nas redações da escola. E gente não pode ser medrosa, não é verdade?
Principalmente para um menino que morava numa pequena fazenda, que vendia leite, ovos e legumes para o mercadinho do Seu Agostinho. Muito menos, sendo essa fazenda no meio do mato, onde, volta e meia aparecia onças e lobos.
Tinham algumas muitas vacas, e alguns poucos bois. Precisava ter muito cuidado quando um bezerro nascia, pois os lobos e as onças não conseguiriam arrastar um uma vaca adulta para o mato, mas um filhote sim.
E um novo bezerrinho tinha nasci há duas semanas. Marquinho adorava quando isso acontecia. Pois podia cuidar do bezerro, e isso sua mãe deixava. Precisava aprender a tratar dos bichos para quando for do tamanho do pai, cuidar da fazenda. Sempre diziam isso a ele.
Num final de tarde, que estava fria por sinal, o menininho estava jogando bolinhas de gude, olhando a nova cria de longe, depois de terminar o trabalho na terra, e novamente uma coisa ruim aconteceu. Uma cobra rastejou pela mata, e estava passeando tranqüila pela fazenda. Muito tranqüila, por sinal. Mas Marquinho a viu, e ficou apavorado! Conhecia estórias de cobras que podiam engolir um homem inteiro... imagine o que não faria a um garotinho do seu tamanho? Chamou a mãe num berro desesperado, e correu na direção exatamente oposta à cobra... que o levava para a mata.
Ele correu. Correu muito, por sinal. Aos berros, com as mãos para cima. Se tivesse corrido assim da galinha, talvez tivesse escapado. E de tanto correr, entrou desapercebido na mata, e viu-se perdido. Nunca entrara lá, pois seus pais o proibiam. Olhou por todos os lados, só mato e árvores que se via. Gritou ainda mais alto, com a esperança de que alguém o ouvisse. Só que Marquinho correu tanto, que imaginava estar no meio da floresta. Nunca mais ninguém o acharia, e ficaria perdido para todo o sempre. Ou então viraria comida de algum bicho. Esses pensamentos lhe corroíam a mente e faziam seu sangue tremer nas veias.
Olhou para o céu, onde o sol caía, e a lua cheia aparecia. Uma lua grande e redonda, como jamais havia visto. E ouviu algo que lhe gelou o corpo inteiro, como se uma rajada de vento forte o apanhasse, algo que começava baixo, aumentava o volume rápido e gradualmente num grito arrepiante, até abaixar de tom novamente. Ouviu um uivo. Um uivo alto e forte, como somente uma criatura poderia emitir. Um lobo. Um lobo estava pela sertania, e justo quando ele se perdera naquele lugar, que parecia assombrado.
Marquinho ficou paralisado, com os olhos arregalados, o corpo inteiro tremendo. De repente, viu um vulto que pulou do meio dos arbustos e árvores, e gritou inconsciente, como jamais gritara na vida.
Viu a visão borrada de seu pai. Estava deitado em um lugar quente e iluminado. Parecia que as imagens giravam em sua vista. Notou então que estava no quarto de sua casa.
Levantou-se depressa, assustado. O gemido que ouviu voltou em seu pensamento. Sua mãe, preocupada, o pai sério, e Tonico, segurando a gargalhada com a mão na boca. Seu pai disse tudo o que aconteceu. Ouviram um grito, e viram o garoto ao longe, entrando no mato. Tonico tinha achado uma cobra do milho, que só pega ratos, miúda, e deduziu que Marquinho tinha a visto, e correu de medo. Foram os dois no mato procurá-lo, e quando o acharam, ele gritou e desmaiou.
Marquinho notou que seu pai estava desapontado com filho covarde que tinha. Baixou a cabeça, envergonhado. Sentia o olhar do irmão, que iria ter muito que rir depois que os pais fossem dormir. A mãe do menino lhe preparou um chá, e foi deitar, assim como seu pai.
Tonico explodiu em gargalhadas. Chamava-o de diversos nomes, apontava o dedo, dizia que iria contar para todo mundo. “Tem medo de uma cobrinha daquela, imagina quando ver uma de verdade! Mas certamente não pode nem com uma lagartixa”. Marquinho virou-se de costas para o irmão, e fingiu dormir. “O pessoal da escola vai adorar essa estória”.
O peste riu e falou muito, antes de deitar e cair no sono. O menino não conseguia dormir. Ficava pensando no uivo, na galinha, na cobra, em todas as covardias de sua vida. Sentiu-se fraco, imprestável. Gente não pode ser covarde! E ele era gente! Sua professora disse que era, e ela era sabida... era professora, oras! Não podia mais tomar nenhuma atitude de covarde. Teria que mostrar seu valor.
A primeira oportunidade para isso surgiu quase que imediatamente, com um uivo sombrio no meio da madrugada. Marquinho apavorou-se novamente. Não por si, mas pelo novo bezerro. O uivo esta próximo, certamente o lobo ia comer a nova cria.
Gente!
Levantou-se decidido. Colocou a sandália e o casaco. No meio da escuridão da noite, tateou pelas paredes de madeira até a porta para a sala. Na mesinha, acendeu um lampião com uma caixa de fósforos que estava ao lado. Em cima do armário, bem no alto, encontrou a espingarda do seu pai. Pegou uma cadeira, e silenciosamente posicionou-a para alcançar a arma.
Gente!
Marquinho abriu a porta de saída da casa, e olhou o véu prateado da lua cobrindo o terreno, os animais dormindo, e o lobo, saindo da mata, caminhando calmo e quieto em direção ao bezerro.
Segurou firme a arma, pois é assim que gente faz. Apontou na direção do lobo e caminhou com passos firmes e pesados em direção ao bicho. Em sua cabeça, apenas uma frase: “Eu sou gente!”.
Logo o lobo o viu, mudou um pouco o caminho que seguia, e começou a caminhar em direção ao menino. Marquinho apertou os olhos, para mostrar que não sentia medo, que era corajoso, e manteve o passo.
Um caminhando em direção ao outro. Até que, bem perto ficaram. Marquinho pensou que seria atacado.
Porém, o lobo sentou-se. Simplesmente sentou-se. O garoto ficou surpreso. Via o grande animal, com pêlos cinza, aparentemente forte, sentado. Mas lembrou-se das estórias que ouvia quando era criança, que os lobos eram muito traiçoeiros, e não vacilou. Apontou firme a arma para o bicho, que parecia muito calmo, olhando o pequeno. Essa cena durou cerca de um minuto.
O pai orgulhoso do filho que matou o lobo. A mãe prepararia um delicioso bolo de chocolate. Tonico iria ter que morder a língua.
Puxou o gatilho, e ouviu apenas um “click”. A arma estava descarregada. Por um instante Marquinho pensou que estava tudo perdido. O lobo tinha notado que o garoto tentou matá-lo, e certamente o devoraria inteiro, como uma vez já fez com a vovozinha. Baixou lentamente a arma, e viu que o lobo não tinha se mexido.
Começou então a olhar a fera, que já não era tão fera. Viu que a pele estava grudada em suas costelas, o rosto muito sujo. Nada parecido com a foto do livro do colégio. Devia estar faminto e cansado. Mas mesmo assim, não o tinha atacado. O olhar do lobo parecia carente.
O menino apiedou-se. O lobo era um ser vivo que passava fome. Entendia tudo perfeitamente, como se o lobo explicasse a situação para ele. Marquinho estava indefeso, e o lobo faminto. De qualquer forma, alguma coisa iria comer, e a escolha era do menino.
Já tinha decidido. Pela fome do bicho, galinha não bastaria. O bezerro ainda era muito novo, e não sabia nem como era ser gente.
Marquinho passou a mão na cabeça do lobo, e começou a andar em direção a floresta com ele.
Eis que ouve barulho de rápidos passos, e os gemidos do bezerro que havia chegado. O lobo conscientizado abandonou o menino e correu em direção ao mato. Os dois animais desapareceram de vista, pois eram rápidos. Mas, à orla da mata, voltou a fera, que lhe deu um sorriso.
No dia seguinte, o menino acordou feliz, espreguiçando-se, sob a luz quente do sol, e o cantar dos galos. Com muito sono, viu os passos marcados por terra que deixou na outra noite. A arma guardadinha direitinho onde achou. Mas ninguém dentro da casa.
“Deve ter fugido...”, disse o pai do guri. “Onde foi parar o bezerro?”.
“Deve ter fugido mesmo, pai. Deveríamos ter amarrado ele, afinal, o Bolinha estava tomando conta”. Tonico, que estava junto, olhou com desdém para o irmão.
Marquinho escondeu um sorriso de quem ouvira uma tremenda burrice. Não ligaria mais para quem lhe chamasse de Bolinha. Nem iria mais se importar com as ofensas do irmão. Afinal de contas, Tonico já era gente, mas tadinho... é tão imaturo por fazer essas coisas... não sabia ainda o que era ser um adulto.