O ano era 1933. Havia grande fome da União Soviética, provocada pela política agrária de Stalin. Todos os pequenos proprietários de terras estavam condenados a participar de programas qüinqüenais de produção, metas a serem alcançadas independentemente do esforço ou possibilidade de cada um. As populações rurais eram transferidas compulsoriamente para os futuros centros de produção industrial, nas proximidades dos montes Urais. Era o início da industrialização soviética, que custaria trinta milhões de vidas.
O desmantelamento do milenar sistema feudal de produção literalmente destruiu a geração de grãos, tornando inoperante a antiga forma de distribuição dos produtos agrícolas. O efeito foi à fome em todo o país, só suportada pelo medo da repressão estatal, o único sistema eficiente no Estado Soviético, desde o início.
Em meio a tal situação não foram poucos os que tentaram deixar a Rússia e suas províncias, cinicamente denominadas de "repúblicas"; nada mais que estados satélites, dela dependentes em tudo e por tudo. Nossa história inicia-se na Lituânia, uma das mais resistentes à assunção do comunismo como "religião oficial".
Era a terra natal de George Levi, que tinha vários motivos para desejar deixar o país. Além de estar sofrendo os efeitos da fome generalizada, era judeu. Ainda que a situação viesse a melhorar, o que todos admitiam como certo, ao menos sob os olhos atentos da polícia política, para ele nada mudaria. Naquela terra nada mudava para os Judeus há centenas de anos. Não seria daquela vez a exceção.
Resolveu, então, juntamente com um pequeno grupo de jovens, das mais diversas origens: judeus, anticomunistas, aventureiros e outros, alistar-se na Marinha Mercante, e, juntamente com seus companheiros de empresa, tentar vida nova nos países nos quais ancoraria a embarcação. A mais pura e simples migração ilegal.
O navio chamava-se 1905, alusão à primeira tentativa de revolução levada a cabo na Rússia Czarista. Não deixava de ser uma ironia. O barco tinha como destino vários países das Américas, do Norte e do Sul, onde encheria seus silos de cereais para minimizar a fome reinante na pátria.
O plano era simples: em cada porto distante um dos desertores desembarcaria, levando consigo uma parte das economias levantadas pelo grupo. Eram seis ao todo. A única forma de esperar êxito era "socializar" os prejuízos, em prol de minorar os riscos. Outra ironia.
O desembarcado verificaria as condições do local quanto ao acolhimento de imigrantes, nível de vida, eventual existência de compatriotas a contatar, etc... . Se as condições recomendassem, ele ficaria, senão, voltaria a bordo e aguardaria nova chance, em novo porto. Se ficasse, o restante do grupo se encarregaria de tentar ao máximo ocultar a ausência do companheiro, contando com uma certa cumplicidade muda por parte do restante da tripulação. Nem todos podiam partir e deixar suas famílias para trás. Mas certamente todos invejavam os que ostentavam tão grande ousadia.
Nem sempre a coragem era a mola propulsora dos desertores. Para alguns certamente o era, é verdade. Outros eram movidos pelo medo, esperança, ou simples aventura. Qualquer que fosse o combustível da empreitada, todos conheciam suas conseqüências; o exílio eterno. Não mais poderiam voltar. Para os que tinham família sempre havia a esperança de que seus entes queridos também escapassem algum dia.
Os dois primeiros meses da viagem transcorreram com o plano em ação. Três já tinham encontrado paradeiro. Um em Nova York, outro no Panamá e o terceiro em São Domingos. Já há três meses no mar, a próxima parada seria no Rio de Janeiro, faltavam ainda mais três para desembarcar. Era a vez do judeu George, consoante a sorte acertara. As oportunidades de cada um eram lançadas em sorteio.
Logo ao aproximarem-se da Baía da Guanabara, o jovem impressionou-se com a beleza natural da região. Era um lindo dia de Sol, no qual se podia divisar perfeitamente o Corcovado, o Pão de Açúcar, e as praias das redondezas, àquela época quase virgens.
Assim que aportaram na praça Mauá, o imigrante veio a terra. Tentaria fazer o "reconhecimento" planejado, a fim de descobrir se essa seria a "terra prometida". Alguns outros haviam desembarcado em portos anteriores e voltaram ao navio desapontados. Dificuldade com o idioma, somado à má-vontade dos nativos, ásperos no trato com estrangeiros, constituía-se nas maiores motivações para o retorno a bordo.
Ao desembarcar, com parcos tostões no bolso, George lembrou-se da fama do café brasileiro. Aliaria à curiosidade a fome, numa forma original de teste. Dirigiu-se ao que parecia ser uma lanchonete para os seus padrões Lituanos, para nós um simples botequim, e com sinais e algumas expressões em espanhol, fez-se entender no seu desiderato.
O comerciante ao atendê-lo, também imigrante, colocou um copo sobre o balcão, e ao seu lado um grande objeto de estranho formato, cheio de algo branco, que o Lituano intuiu ser açúcar, iguaria rara, e, portanto, caríssima em sua terra.
George ficou paralisado. Não sabia o que fazer para coadunar a utilidade daqueles objetos ligados ao simples prazer de tomar um café.
Notando o português a dificuldade, mostrou por sinais o que deveria fazer o freguês; imitou para ele os movimentos necessários para por o açúcar na xícara, já com café, posto pelo comerciante antes do adoçante, para facilitar.
Timidamente o Lituano apanhou o açucareiro e despejou generosa quantidade de açúcar na xícara, mas não sem antes experimentar uma certa apreensão; talvez não tivesse dinheiro suficiente para pagar a iguaria. Sequer utilizou-se da colher para misturar os dois ingredientes. Passou imediatamente a tomar o café impregnado de açúcar.
Terminada a manobra e o conteúdo da xícara, uma vez que já havia pago pelo café, perguntou, por sinais, quanto custava o açúcar. Era grátis, fê-lo compreender o comerciante, também por sinais. A expressão de surpresa de George não comportaria descrição literal.
Naquele momento decidiu de forma indefectível e inabalável, que o Brasil era o país dos seus sonhos. Que lugar seria mais ditoso do que aquele onde o açúcar, servido à vontade, é grátis junto com o café? A generosidade e a fartura da terra saltavam aos olhos do imigrante, incitando-o aos mais imaginosos sonhos de prosperidade.
A história é verdadeira. Hoje a família de George é das mais respeitáveis no Rio de Janeiro; graças ao cafezinho do seu Manuel da praça Mauá.