Naquela tarde de outono a atenção de todos foi despertada por um barulho típico, já ouvida várias vezes, e que jamais dava sinal de boas novas. Um helicóptero da FAB, daqueles antigos, enormes, possivelmente refugo americano da Guerra do Vietnã, pousava no pátio interno do complexo penitenciário da Ilha Grande. A aeronave, por tantas vezes vista e ouvida pelos presos, ganhara o apelido de “sapão”, por ter uma certa semelhança de formas com o anfíbio.
A simples aproximação do “sapão” provocava eletricidade entre os presos, principalmente os políticos. Corria entre eles uma sensação ambígua de excitação e medo. Algum companheiro chegava ou um deles seria levado, por algum motivo e para algum lugar. O motivo é que gerava apreensão, já que determinava o lugar. Mas a excitação desta vez não atacava apenas os detentos. O pessoal da administração encontrava-se igualmente agitado. Todos intuíam alguma novidade.
O helicóptero trazia como equipagem apenas dois pilotos e um passageiro. Da janela dos grandes galpões, improvisados em celas coletivas, os presos políticos identificaram imediatamente o passageiro. Era um integrante do CENIMAR, órgão de combate à subversão da armada, conhecido como Sargento Roldão, certamente nome de guerra. Tinha participado da prisão de alguns e do interrogatório de outros. Para eles seria inesquecível pelo resto de suas vidas.
Roldão, homem calado, semblante cismado, um mulato de estatura mediana, mas corpulento, com aparência bruta, era a imagem do serviço que fazia. Logo que a aeronave pousou o passageiro dela saiu, dirigindo-se ao edifício da administração do complexo penitenciário.
A conclusão óbvia era a de que alguém seria levado. Quem e porquê não se mostravam questões assim tão simples. Informações de fora eram proibidas e de difícil acesso, as cartas aos presos eram censuradas, e deles para o continente, nem pensar. Alguns mais importantes recebiam visitas. Nelas alguma informação era conseguida, ainda que codificada na maioria das vezes. Notícias do mundo exterior eram objetos de tráfico; valiam ouro, negociadas entre as várias facções de esquerda representadas no presídio.
Em poucos minutos um nome surgiu trazido pelos guardas, já sem a preocupação do segredo. Cristóvão seria levado pelo “sapão”. O preso, repórter de profissão e guerrilheiro urbano por ideologia, tinha fama de ser bom profissional. Na guerrilha fora parar na cadeia em pouco tempo de militância, apesar de ter acrescentado ao seu “currículo militar” uma arriscada e bem sucedida operação de seqüestro de embaixador estrangeiro.
Pois bem, ele seria o “levado para algum lugar”. Em minutos os boatos começaram a tilintar. Não eram poucos os que diziam que a viajem seria sem volta, possivelmente acabaria atirado ao mar em algum ponto entre a ilha e a costa. A idéia não alegrava nem um pouco Cristóvão, porém, seus instintos levavam-no a crer na pouca probabilidade de tanto trabalho para dar-lhe cabo da vida, o que já poderiam ter feito em várias oportunidades anteriores. Outra era a razão da viajem. Não devia ser coisa tão ruim, mas nem tão boa.
O “guerrilheiro” foi algemado com as mãos às costas e entregue ao Sargento Roldão, já na porta do “sapão”. Trajava calça de brim e uma camiseta com a inscrição; “Brasil, ame-o ou deixe-o”, ironia do pessoal do presídio. Estava mais magro do que o de costume, mas os principais sinais da tortura já se tinham ido. Roldão colocou-o dentro da aeronave, meio sem jeito pela falta de equilíbrio do preso em razão das mãos amarradas às costas. Imediatamente sentou-o em um banco e prendeu as algemas numa espécie de argola, costumeiramente utilizada para fixar material transportado.
A posição era muito desconfortável e a camiseta o deixaria congelado durante o trajeto, normalmente feito com a porta lateral aberta. Roldão bem sabia das mazelas, mas e daí? Era só um “comunista safado”. Desde que as ordens fossem cumpridas, qualquer sofrimento adicional não era problema dele, mas do subversivo.
E estas, as ordens, eram bem simples; Cristóvão deveria ser entregue no Aeroporto do Galeão, onde se juntaria ao grupo a ser trocado por um embaixador estrangeiro seqüestrado. O grupo tomaria um avião para Cuba e deixaria de ser problema para as autoridades brasileiras. O comando tomara todo o cuidado para que o transporte de Cristóvão ocorresse sem qualquer incidente. Ele ganhara uma certa notoriedade entre o pessoal que combatia diretamente a subversão, graças ao senso de organização e uma certa valentia que demonstrara possuir no episódio do seqüestro do qual participara.
A notoriedade significava gana de matar. Os chefes militares da operação de reunião dos presos temiam reações despropositadas dos seus comandados. O grupo de subversivos contido na carta de exigência dos seqüestradores teria de ser reunido. O que menos se desejava àquela altura era um incidente. Alguma provocação, alguma mágoa anterior ou simplesmente antipatia gratuita, poderia levar um dos agentes a “esquecer das ordens”, simular uma tentativa de fuga e dar cabo do preso, isto na pior das hipóteses. No mínimo poderiam simplesmente surrá-lo até o limite da resistência, ou além. Os ânimos estavam efetivamente acirrados entre os combatentes diretos da subversão. A súbita impotência diante dos seqüestros de embaixadores estrangeiros mexeu com os brios do pessoal, que andava mais violento do que o desejável ultimamente, até mesmo para a maioria dos Generais.
Como garantia resolveram mandar para a missão um único homem, que igualmente alcançara notoriedade entre os militares; a de obedecer a ordens cegamente. Era o Sargento Roldão. Com aquele não havia perigo. Fosse provocado pelo preso, sentisse ódio, rancor ou o que quer que pudesse incitá-lo a um ato impensado, falaria mais alto a ordem superior, obedecida até as últimas conseqüências. Uma beleza de militar diziam os oficiais superiores.
Assim juntou o destino aqueles dois homens, tão diferentes na forma e na essência.
O helicóptero decolou no final da tarde, o sol já se punha no horizonte, dando formas multicoloridas ao oceano. O vento era frio e incomodava bastante o preso, sem qualquer agasalho. Pensou em pedir ao militar para fechar a porta lateral. A resposta poderia ser um soco ou um tapa.
Cristóvão mediu atentamente o Sargento por alguns minutos. Roldão fitava o colorido do mar sem dar uma palavra, o rosto monolítico, isento de qualquer expressão definida. Parecia, contudo, evitar o olhar do preso. Foi isto que o animou a perguntar, além disso, o frio cortava. Tinha que falar quase gritando, em razão do estridente e irritantemente contínuo barulho do motor.
- Aí companheiro. Dava para fechar a porta?
A resposta foi o silêncio. Nada foi respondido, como se nada houvesse sido perguntado. Cristóvão entendeu que a porta da aeronave não seria fechada. Mas uma outra poderia ser aberta, afinal, qualquer silêncio é permissivo.
- Já que vou ficar com frio mesmo, dava para pelo menos dizer para onde eu vou?
Mais uma vez o silêncio. Mas não era um silêncio qualquer, era daqueles que só fluem nos indivíduos que efetivamente foram treinados para não ouvir em certas circunstâncias. Cristóvão sabia que ele ouvia, por mais que fosse treinado ouvia, no entanto, se ele fora ensinado a não ouvir, Cristóvão o fora para convencer.
- Vocês devem estar me levando para um passeio turístico. Talvez para mergulhar em alguma das ilhas de Angra, disse com certo sarcasmo, esperando alguma reação que denotasse qualquer pista fisionômica.
- Sabe como é, nós incomodamos muito. Eu sei bem o que devem dizer para homens como você a nosso respeito. O perigo comunista, terroristas, bombas matando criancinhas, mas não é nada disso.
Roldão continuava exatamente com a mesma expressão facial pétrea. Fez um movimento apertando o casaco contra o corpo, numa alusão explícita ao prazer do aquecimento.
Cristóvão continuou:
- Você deve ter uns trinta anos. É casado, vejo a aliança.
Neste momento houve uma pequena reação, notada por Cristóvão, um pequeno tremor, quase imperceptível. Roldão esquecera de tirar a aliança. O subversivo agora sabia que ele era casado. Que bom se morresse.
- Deve ter filhos. Um, dois, três, não importa o número. O destino deles será o mesmo. Já pensou nisso? Você chegou a Sargento, e é o máximo que pode alcançar sem ser oficial. Não deve ter tido a educação necessária para chegar lá. Eles nem pensam que poderia chegar. Você já deve ter várias vezes pensado que é melhor do que muitos deles, e deve ser mesmo. Eles dão as ordens; você cumpre. Você é a mola sem a qual o mecanismo não funciona, apesar disso, jamais sairá de onde está.
Fez-se uma pausa. O preso esperava algum abalo desta vez. Sabia que tinha ido longe, talvez longe demais. Nem um piscar de olhos recebeu em resposta. Dava para continuar.
- É contra isso que nós lutamos. Os oficiais representam as forças que mantêm homens como você eternamente condenados a lugares inferiores. Eu estou preso a oito meses. Você já nasceu preso a um destino imutável. Ainda que não ligue para si mesmo, pense um minuto nos seus filhos, e nos filhos deles. Também já estão prisioneiros, é só uma questão de tempo e cairão na mesma armadilha social. Nenhum deles irá à faculdade. Se tiver uma filha, terá sorte se casá-la com um sargento como você. E você ainda luta contra nós.
A menção à filha efetivamente mexeu com as entranhas do militar. Que vontade de dar uma porrada naquele imbecil.
- Daqui a trinta anos, quando você lembrar de mim, não se esqueça do que eu disse sobre o destino social da sua família. Você vai sentir remorsos, não pela minha morte, mas por não me ter escutado, e se mantido ao lado dos seus verdadeiros e históricos inimigos.
A viajem durava aproximadamente uma hora entre a Ilha Grande e o Aeroporto. No resto do percurso o silêncio foi total. Conforme o tempo passava Cristóvão esquecia do frio, e lembrava da morte.
Quando o aeroporto surgiu no horizonte, o preso finalmente respirou aliviado. Ao menos não seria jogado ao mar, talvez mais uma sessão de porradas e perguntas. Ainda era ruim, mas nem tanto. Com a aproximação viu um grupo de uns cinqüenta elementos mal vestidos, magros, com aparência doentia, reunidos perto de um avião de linha internacional. Só podiam ser companheiros. Compreendeu então que seu nome deveria estar na lista de resgate de algum embaixador. Começou a chorar. Este foi o único momento em que Roldão lhe deu um olhar, cheio de superioridade.
O Sargento sabia da angústia do preso até aquele momento, que poderia ter evitado com duas palavras. Há mais de uma maneira de se torturar um homem.
II
O ano é 1998, estamos em plena copa do mundo. Não faz muito calor em Vila Valqueire, subúrbio do município de São João de Meriti, na Baixada Fluminense do Rio de Janeiro. A copa acontece em junho, se fosse no verão a casa cheia daquele jeito ia matar de calor.
Seu Roldão comprou umas cervejas para tomar com os familiares. Mais uma vez, ainda bem que não estava calor, senão o número de cervejas teria de triplicar, e o dinheiro andava curto. Vão assistir ao jogo do Brasil os de casa; sua esposa, uma filha, mãe solteira, que com ele vive, um filho militar e o outro, torneiro mecânico, com a mulher e dois filhos, moradores de uma “meia água” construída na parte de trás do terreno da residência. Provavelmente algum agregado apareceria para filar a televisão colorida, novinha, comprada há um ano, exatamente em homenagem ao evento, e ainda sendo paga em prestações.
Naquele dia o militar reformado ficara meio estranho. Foi na hora da propaganda eleitoral gratuita na televisão. Sempre que um certo político aparecia, ele mudava. Podia ser na propaganda eleitoral ou no noticiário, não importava, ficava carrancudo e de poucas palavras.
Roldão era muito discreto acerca do seu tempo de militar da ativa. Raramente fazia algum comentário sobre o que chamava de vez em quando de “bons tempos”. Apesar da discrição, sua filha chegou a comentar com a mãe tê-lo ouvido murmurar certa vez ao ver um certo Deputado na TV; “Eu devia ter jogado esse filho da puta no mar.”