“Prefiro uma picada de cobra
que a risada da minha sogra”
( David Lee Roth )
Março de 1998 _ carnaval. A família Moreira, como sempre, tá curtindo a festa na praia: seu Ladislau e dona Dinorah (os anciãos da família), 3 filhas, 2 filhos, seis netos, dois genros, uma nora, uma empregada, um cara que fica com a Jane (neta) e uma amiga da mesma, duas namoradas dos netos, o namorado do Glaílson (outro neto), uma comadre da dona Dinorah, e o Goela Aberta (um traficantezinho bicho-solto e cara-de-pau, idolatrado pela garotada).
O apartamento é pequeno pra tanta gente, mas isso não chega a ser problema, porque o fogo no cu supera tudo nessas ocasiões, e além disso os Moreira formam um time unido, ou quase isto. Na hora de dormir, cada um que trate de arranjar um canto e é ali mesmo. E assim, descontando as cagadas do Goela Aberta, a temporada transcorre aprazível, do jeito que deve ser. O único desconforto que poderíamos apontar nesse ambiente saudável e festivo é uma certa incompatibilidade existente entre a dona Dinorah e o Euclides, o Kidinho, seu genro: uma antipatia que começou de estalo, assim que um olhou pra cara do outro pela primeira vez. Uma desconfiança e um desprezo mútuo sem qualquer motivo. Um negócio assim meio paranormal, talvez. Inconciliável! Agravado ainda mais pelos pequenos atropelos do dia-a-dia, onde a coisa evolui rapidamente pro asco profundo, passando pelo nojo abissal, pra chegar então ao ódio tenebroso e à cólera negra! Na verdade, o que um sente pelo outro é algo demasiado feio pra ser descrito com meras palavras. Euclides acalenta o sonho secreto de jogar sua sogra do trigésimo-oitavo andar e vê-la se estatelar no concreto feito um saco de bosta. Já dona Dinorah deseja pro Euclides nada menos do que a morte mais pavorosa possível... Como dizia aquela canção do Vinícius, certas paixões são como o rio, que começa num fiozinho de água fresca e límpida pra, mais adiante, transformar-se em corredeiras bravias e lamacentas. Mas não podemos deixar de louvar aqui a civilidade de ambos, a boa vontade em compartilharem o mesmo teto, sem arranca-rabos nem intrigas pelos cantos. O que prova que a falsidade às vezes pode ser uma belíssima coisa.
Outras famílias conhecidas, da pequena Campo Mimoso-MG, terra dos Moreira, também se encontram ali, curtindo o eletrizante carnaval de Cabo Frio. Não só famílias, mas também muitas turmas de amigos. Os mais exclusivistas reclamam: “Assim não dá! Com essa cambada de mimosense que cismou de frequentá o pedaço, não dá! Já tá virando bagunça!”
Seu Ladislau foi ao mercado comprar batata-palha pra misturar no estrogonofe da patroa. Na fila do caixa, encontrou o Ginsselmo, antigo colega de serviço na Johann Faber. Este havia alugado uma bela casa com piscina, perto do Corpo de Bombeiros, e tava louco de satisfação. “Pinta lá hoje à noite que nóis vamo soltá os bicho! Vai rolá uma festa... sabe o que é festa? Festa mermo, meu chapa! Pode levá quem tu quisé... Eu encontrei o Brito, o Brito da Facit!.. ele vai tá lá também, pra gente lembrá um mucado daquelas época... das pescada, das farra, da zona da Sotero Lima... Vamo bebê até cair hoje... vamo pulá de roupa dentro da piscina, vumitá no chão, falá merda, chorá, fazê paiaçada até o raiar do dia... Vai ser festa, entendeu?!.. auê a noite inteira!.. Amanhã nóis se arrasta até a praia pra rebater a ressaca...”
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Ê domingão bão, sô! Diversão, descompromisso, uma multidão inacreditável de mulheres lindas e peladinhas, a gozação, a boa camaradagem, a risada gostosa... E pra fechar o dia, a festa do Ginsselmo... Tá todo mundo lá. Seu Ladislau e dona Dinorah parecem dois adolescentes, cheios de agito... Ela, que não tá nem um pouco acostumada com bebida, engata na cerveja e não larga mais. Normalmente azeda e ressentida (quando dentro de casa), em sociedade gosta de se apresentar como uma coroa “pra-frentex” e animadinha. Ela tem esse lado que, apesar de fingido, é até simpático. Mas outra faceta marcante desta senhora, quando em sociedade, é a mania insistente e ferina de jogar na cara das amigas as suas vantagens materiais, desde a televisão de 300 polegadas até o descaroçador automático de azeitonas; dos terrenos e imóveis alugados até as viagens que as amigas nunca poderão fazer... A festa tá comendo solta; todo mundo a fim de ficar bêbado. E lá tá a praga com seu corpanzil brilhando de insolação, esfuziante como uma foca brejeira.
O Ginsselmo é mesmo uma grande figura. Faz uns 10 anos, ele botou na cabeça que, mais dia menos dia, ainda dava uma festa dessas _ uma festa no sentido pleno da palavra. Em meio ao alvoroço, ele se delicia com o vai-e-vem das garçonetes peitudas, apreciando a eficiência logística de seu evento. Bem que valeu a espera: no decorrer desses anos todos _ enquanto juntava dinheiro, e sonhava, matutava, calculava, inventava, corrigia um detalhe aqui, outro ali _ seu projeto por fim atingiu aquele ponto de madureza em que a fruta cai do pé por si mesma, sem nenhum esforço. Um capricho? Sim! Babaquice efêmera? Que seja! Porém, rematada com um rigor quase que científico. Podemos tirar como prova o escoamento da cerveja, centenas de garrafas e latinhas, cheias e vazias, indo e vindo sem parar; ninguém sofrendo com bico seco. Os quitutes, idem. As garçonetes _ bonitas, gostosas e sorridentes _ foram escolhidas a dedo. Já a arrumação do ambiente foi feita segundo uma técnica japonesa desenvolvida pra facilitar a evacuação de ambientes fechados em caso de terremoto (pequenos terremotos ambulantes, os carnavalescos eufóricos agradecem)... As instalações foram adaptadas pra toda e qualquer situação passível de ocorrer numa festa. Baco na era da Qualidade Total!.. Quer mais? _ Intão toma: a equipe de filmagem é de um aparato quase hollywoodiano, o som comandado nada mais nada menos que pelo DJ Cocada! a noite é fresca e estrelada, e o ânimo dos foliões, o melhor possível.
“Realmente, o pensamento é uma forca mágica.” _ raciocina Ginsselmo, imaginando que nenhuma dessas pessoas estaria aqui, neste momento, não fosse um belo dia ele ter encucado com essa idéia. Taí! _ uma festaça que há de ser memorável! Os amigos todos reunidos a centenas de quilômetros de casa... O pensamento é uma força mágica, sem dúvida, camarada Ginsselmo! pois numa só noite ele haverá de transformar dez anos de economia em fumaça sem que ninguém perceba... Mas ele logo se desfaz dessas e doutras cogitações, porque a realidade é toda sua esta noite. A música tá perfeita, a maldade do mundo já não existe, tem gente bonita de monte, e até os feios hoje estão maravilhosos!
D. Dinorah tá em todas, botando pra quebrar... O copo sempre cheio, os braços sempre erguidos em celebração, ela tá viajando numas de provar a todos que, apesar da idade, da gordura e da pelancada, é capaz de colocar essa moçada toda no chinelo em matéria de jovialidade e alegria de viver. “Puxa, olha só a Dinorah! Que vitalidade! Isso é que é saber curtir a vida!..” _ Lorota! A puta véia só tá querendo tirar onda. Debaixo daquela farra toda, da bocona arreganhada em regozijo, dos fraudulentos passinhos de samba, o que existe é uma cascavel da mais feroz! Quem não te conhece é que te compra... De fato, sua única e calculada satisfação nesse momento é pensar que tá fazendo bem o seu markenting pessoal pro greminho de Campo Mimoso.
Euclides, seu genro adorado, também tá enchendo o escórnio! Só que em vez de ficar legal, o cara tá ficando é bodadão, se escorando pelas paredes, todo torto, com aquele olhar lamentável de quem teve a alma dramaticamente revirada pelo álcool... o copinho querido grudado na mão, como um amuleto maldito... Ele já não consegue concatenar o sentido de qualquer frase com mais de uma palavra. Dirigir-se a ele em português ou aramaico dá no mesmo agora. “Vai dormir ali naquele quartinho, Euclides... vai lá, vai! tira uma palhinha, depois você volta, tá bom? estamos combinados?!..” Ele apenas ri, sem entender nada, murmurando frases incompreensíveis... “Quando chegou, agorinha mesmo, parecia um sujeito tão distinto... Cumé que são as coisas, hem!” _ filosofa Jorginete, nora do seu Valentim do posto de gasolina. E com razão: ele chegou sorrindo, cheiroso, inteiraço e senhor de si e de seu destino sobre a terra. Logo de cara demonstrou saber o nome do atual presidente do conselho administrativo da C.S.N. e do diretor de logística da Odebrecht (como se comesse churrasco todos os domingos em casa de pessoas tão finas). Numa rodinha de altivos empresários da roça, expôs com argúcia todos os artifícios legais de que a Tekla Tecelagem lançou mão pra quitar sua dívida de 200 milhões de dólares com o INSS, oferecendo em troca algumas escrituras falsas de ilhas submersas na costa do Pará, pra serem usadas no projeto da Reforma Agrária. Revelou, com fino humor, detalhes pitorescos de como a fábrica de temperos Marisco encampou a gigante Estrela do Mar Temperos Ltda., do Espírito Santo; além de deslindar com fatos, números e argumentos toda a gincana de patifarias que envolveu a privatização da Vale do Rio Doce... Mas eis que, depois de algumas cervejas e caipirinhas, o cara foi perdendo o toque de bola...
“O vinho transforma a topeira em águia.” Esta frase romântica está no maravilhoso Poema do Vinho, de Baudelaire. “Vinho” foi o termo literário usado pelo autor pra referir-se elegantemente a qualquer tipo de birita. Não me lembro se ele menciona também os inconvenientes do excesso, quando a metamorfose começa a se dar no sentido inverso... Pois bem. Aqui nesta noite podemos acompanhar ao vivo este fenômeno: a águia sendo depenada pelo goró; sendo desarticulada, rebaixada a um nível muito abaixo ao da topeira... Com efeito, uma criança mais sensível, ainda virgem dessas manifestações escandalosas do mundo adulto, vendo o Euclides nesse estado, vai ter pesadelos pro resto da vida.
O cara tá pior que mendigo, todo transformado, chamando urubu de meu louro. Em seus delírios evoca a imagem de sua primeira namorada. E põe-se a repetir, suplicante, prestes a cair na piscina: “Nndnh! Nnnndnh! Nnnnnndnhaaaa!!” _ Traduzindo: “Inaraí! Inaraí, meu amor!” Dois fios de lágrima passeiam pelas faces do zuadão... mas ele não está triste, e sim emocionado: sabedor de belezas e sublimidades inimagináveis a uma pessoa sóbria. As tristes aparências, o olhar zarolho, a pastosidade verbal, a deformidade que se apossou de sua pessoa _ isso tudo é lá pros outros! Ele tá bêbado demais pra ser coagido por débeis escrúpulos de decência. Nesse momento, a grande verdade é que, no fundo, Euclides tá mesmo é vibrando! se deliciando com mil dramas de amor, romance e filosofia que borbulham em seu íntimo... Ele cambaleia como um perdido, mas e daí? _ pra ele tudo é magia agora!..
E não é que, do mundo encantado da birita, Kidinho vê surgir uma mocréia esvoaçante a flutuar a sua volta?.. É Inaraí, seu ex-amor _ translúcida e aureolada! Ela saltita em câmera lenta, como uma gazela assanhada, a sorrir, a rebolar, a esvoaçar a linda cabeleira, arrebatadora. E então vem enxugar com os lábios as lágrimas embriagadas de seu apaixonado... E assim, reconfortado, Euclides vai bodar no tal quartinho do jardim, na esperança de que sua alucinação permaneça suficientemente forte pra que possa fazer amor com ela.
Dona Dinorah também já perdeu as estribeiras! Bêbada, acabou se convencendo de que é realmente uma coroa divertidézima e muito doidona (“fogo-na-roupa”, como se dizia antigamente). Seu Ladislau tá lá com a turma dele, falando de pescaria e querendo mais é que a patroa tome um porre infernal pra ver o que é bom pra tosse! Quanto mais palhaçada ela fizer, menos moral vai ter pra continuar implicando com suas idas e vindas ao boteco do Rumbiço, e com sua mania de interpretar os velhos sucessos do Nélson Gonçalves (gritando de estufar as veias do pescoço!) sempre que chega em casa mais molhado, após a décima, décima-segunda incursão à esquina.
A irmã da Dinorah tá adorando a cena, sentindo-se deliciosamente vingada do fato desta possuir mais eletrodomésticos que ela, além de ter no armarinho do banheiro um arsenal de cosméticos deslumbrantes, que é uma verdadeira armadilha pra humilhar curiosos mexelões. Imagine o sorriso sádico da jararaca, irmã da cascavel... “Quem mandou fazer pouco caso dos meus cristais?.. Mar-mo-ta!!”
Até agora o papelão da matrona fora marcado pelo excesso: excesso de entusiasmo, excesso de exclamações, de alto astral, de gestos, de gritos, excesso de exagero em demasia. Só que o corpo acaba pedindo arrego, apesar da teimosia da mente. E assim, da incontida extroversão vai-se gradativamente a um estado de estupor apoplético. É como se encontra a Dinorah. Bebona... paradona... sandalinhas na mão... Já desprovida do mínimo de suas habilidades motoras, ela ainda tenta sambar... Com o olhar vidrado, ela fita o além, ao mesmo tempo em que marca o compasso do pagode, batendo os pezinhos com a esperteza e o vigor de uma tartaruga. Um-dois, um-dois... O vestido tá encharcado de cerveja, pois tornou-se impossível acertar o copo no buraco certo; e dá-lhe gelada pelo nariz, testa, queixo, olho!.. (Nas raras vezes que acerta a boca, ela se esquece de abri-la). De vez em quando dá uma cambaleada feia, distribuindo trombadas. E o pior é o sorriso despropositado e idiota que permanece, estagnado na cara, a despeito da total ruína física e psíquica. “Ô, mãe, aquela dona ali é maluca ou será que ela é ruim da cabeça? Manda ela parar com isso, manda mãe!”
Seu Ladislau já gastou dois filmes inteiros tirando fotos da mulher. A maioria das chapas vai sair tremida, porque ele ria descontroladamente enquanto documentava o espetáculo. Soltou uma boa gorjeta pra um dos caras da filmagem, que a cada 10 minutos dá uns closes reveladores no showzinho da dona encrenca.
Beth, uma das garçonetes, já trepou duas vezes durante a festa. Por enquanto. Ela é daqui de Cabo Frio _ talvez por isso mesmo, boa entendedora da psicologia do bebum... do bebum de balneário. Olhando pra Dinorah, ela vê que a dona já entrou em órbita e só tá “sambando” devido a uma espécie de automatismo primitivo que persiste, apesar do apagão mental. Ela precisa apenas de alguém que a pegue pelo braço e a leve prum canto onde possa cair, vomitar e até se cagar em paz.
Ela, a Betizinha deliciosa e caridosa, dadivosa e sestrosa _ musa da foda fácil e redenção dos desconsolados _ se dispõe então a prestar auxílio à vacona dopada. Como grande parte das piranhas (com P maiúsculo), ela tem um coração de ouro. É o tipo de santa que nasceu pra dar e que, com certeza, jamais vai transmitir doença a ninguém, pois como eu disse, ela é uma santa. Uma santa do sexo! Linda e adorável, ela nasceu com a missão divina de fazer a alegria de todos, sem distinção... “Vamo lá, dona... Tem dois quartinho ali nos fundo, no jeito pra senhora dar uma bodada esperta. Eu mesma já usei um deles hoje mais cedo... aaai, posso nem leembrá!..”_ ela revira os olhos, com aquele tremeliquezinho de menina gulosa... “Ô Guto, dá um güenta aí queu já volto... Ou então, se tu quisé me ajudá aqui, eu agradeço...” Eles entram num dos quartinhos, a Beth escorando a Dinorah, e o Guto bolinando a Beth. É o quarto do caseiro. Jogam o trambolho na cama e começam a trepar ali mesmo, na frente dos dois bebuns adormecidos. Sim: dois. Porque o Euclides também tá ali, na mesma cama, babando. Descontrolados, Guto e Beth jogaram a Dinorah praticamente em cima do genro. Tão lá, um soprando na cara do outro, disputando pra ver quem ronca mais bonito. Hálito de bueiro contra bafão de Belzebu!
Uma hora depois, um pouco mais descansado, Euclides já está apto a detectar um outro corpo grudado ao seu, ali na cama _ e, ao que tudo indica, um corpo do sexo feminino. Em seu torpor delirante e lascivo, pra ele é Fernanda, sua colega de trabalho, quem tá ali... Ele conhece bem aquele corpo macio, mas nunca o havia sentido assim tão... tão... digamos... fascinante! E se achega gostosamente ao pavoroso Tiranossaurus rex que ronca ao seu lado e que não pára de empestiar o ambiente com uns peidões rotundos de contralto... Mas tudo isso faz parte! Tudo é lance quando a coisa pinta.
Todo molinho e desmantelado, delirando ainda, Euclides já tá pelado, e também já tratou de abrir o vestido da comadre, que trajava uma “sumária” calcinha vermelha. Depois de alguns beijinhos e encoxadas, Euclides dá uma cuspida na mão e enfia o dedo no botão da sogra. Sem querer, o danadinho acertou justamente o ponto fraco da véia...
Dinorah Felisberto da Motta Moreira _ batizada, crismada, matriculada na sociedade sob a carteira de identidade número x e CPF número y, com firma reconhecida em cartório, involuntariamente cadastrada nos bancos de dados de diversas empresas que a cobiçam como cliente potencial, usuária de nosso avançado sistema de crédito comercial e bancário, detentora de todos os registros civis atinentes a sua condição de cidadã, assinante da revista Cláudia, inconcussa contribuinte com sua cota de filantropia social etc etc. _ Esta entidade que todos conhecem e respeitam (a odiosa fortaleza de dignidade) no momento se encontra à deriva em algum ponto do espaço sideral. A peidorreira safada que tá na cama agora é outra mulher _ é a legítima Cadela Cósmica com muito gosto obrigado... “Quem sou eu? Onde estou? O quê que tá pegando? Qual o destino de minha alma imortal? Quais serão minhas atuais prioridades enquanto ser humano? Estarei eu fazendo de minha vida uma coisa bela?” _ Estas são questões infinitamente remotas pro espírito de cachorrona libidinosa que se apossou da supracitada dama. Como diz a velha quadrinha: “O que separa uma mulher honrada de uma meretriz/ é um fiozinho à toa / um tiquinho de nada / um risquinho de giz.” Pois é! Com o dedinho matreiro do genro enterrado no rabo, dona Dinorah vai se acendendo e remexendo o bundão com progressiva desenvoltura, já doidinha pra fazer saliença. Faz muito tempo que ela não sabe o que é sentir um tesão ‘de acordo’.
Euclides começa agora a diversificar seus métodos. Com a habilidade de um dom juan, ele vai envolvendo a parceira, lentamente, enquanto cantarola um pagodinho romântico ao pé do ouvido, cheio de sussurros de menino-moreno-melado: “É puro êichtase, yeah/ Louca sedução/ É luar/ Eichte corpo goichtoso, suado, faceiro/ Maneiro no jeito de amar// Seu veneno é cruel/ Feito mel ichcorrendo da boca/ Chocolate que adoça o meu sexo/ Cafuné que alucina o meu nexo// Menina-neném, menina-mulher, menina-ioiô/ Chamego manhoso, gatinha vadia / Metamorfoseada em cartaich de tarô// Quero te fazer goishtoso/ Te fazer perdida/ Te fazer mulher/ Coração bandoleiro pulsando no peito/ Eichplodindo o desejo/ Levantando o astral// Sou sua locomotiva do amor/ Ichto é pura energia/ Seduz/ Delírio tropical, overdose de luz!..” (E o dedinho lá!). Pela letra, dá pra ver que é sambinha de paulista, né? O sotaque carioca é só pra ficar mais ‘dilícia’.
O moço tá inspirado mesmo. Cheio de manha. Um verdadeiro mestre na arte da sacanagem!.. E mexe daqui, mexe dali, lá tão os dois, fodendo medonhamente, com requintes da mais deslavada sem-vergonhice. “Vai fundo Dudu! Acelera! distrói! isgüela! arregaça! cavuuuca! istóra! arranca! tóla! chapuléta! arrebéiça!”... “Arregaaaanha, disgraçaaadaa!”... O coro tá comendo. Criatividade total em matéria de depravação... Isto sim é uma foda, puta que los páril!.. Eles chegam ao clímax, com acessos e uivos de danação... Calmaria... Suspiros de contentamento erótico... Dona Dinorah: “Você foi TUDO, Dudu! Lua, mar e estrela! Tigre, pássaro e flor!” Euclides: “Que tal, hem, boneca? Da última vez, tu me deu nota sete e meio. E agora?” Ela: “Nota cem, nota mil, Duduzinho!..” E caem no sono novamente, agarradinhos e realizados. Dudu e Fernanda.
Segunda-feira de carnaval. Alvorece o dia sobre o marzão do abaeté de oxalá. “Quem bebe tudo num dia, no outro mia!” Kidinho rola na cama, sentindo-se aniquilado pela bebedeira. Mais uma vez ele jura a si mesmo que foi este o último porre de sua vida. “Ih, rapaiz, eu trepei com essa mulhé aí ontem, rapaiz!” _ ele reúne umas poucas reminicências da trepada; surpreso, pois pensava estar em seu colchonete, no apartamento do sogro. “Quem será?.. Fortinha ela, hem? puta-merda!.. Vô insebá as canela, antes que esse tribufu acorde...”
Dona Dinorah tá de costas. Imensa! com a cara meio enterrada no travesseiro. Euclides, sentado na cama, encara a parede, desolado, tentando criar alento pra vencer a tenebrosa letargia que persiste, apesar do sobressalto. Ele ainda não desconfia do pior.
No momento em que ele se prepara pra abandonar a cena do crime, a mulher começa a se virar, alavancando a gordurada, em câmera lenta, dobra por dobra, prega por prega, remexendo na boca o mingau das almas com aquele barulhinho enervante de gosma mascada...
“Do-na Di-no-raaaaah!!!!!!” _ ele berra, estupefato... Ver um cadáver sorrir ou um cachorro falar seria menos chocante pra ele. Corre pro banheiro e se debruça na privada _ a velha, boa e acolhedora privada, nossa mãe generosa, deusa irreconhecida das súplicas humanas... Tá literalmente em transe, o incauto, soluçando descontroladamente enquanto bota pela boca um esmegma espumoso. Agora a segunda etapa. O que saiu primeiro foi a inhaca, os miasmas do naufrágio noturno, os catarros espirituais. Partimos então pra parte mais pujante, pro vômito propriamente dito, os jorros intercalados com gritinhos indecorosos, os engasgos e estertores, os “pelo-amor-de-deus”, os clamores de misericórdia...
“O vômito é o orgasmo do nojo”, diziam os indios dakota da Carolina do Norte. Mas pro Kidinho vomitar não basta; esviscerar-se pela boca é pouco. É preciso vomitar até os ossos se possível...
“Ah, cascavel filha-da-puta! sarna! traia! intanha! cacumbu dos inferno!!!” _ ele pragueja. Dona Dinorah, por sua vez, mantém o sangue frio, veste-se e se esgueira até a rua com a ligeireza dum gatuno e aquele arzinho recomposto de quem não perde a pose à toa. Ela precisa encontrar um lugar mais apropriado pra perder o controle. Seu drama é diferente do de seu genro. Euclides, castigado pelo ‘mal do fígueiredo’, sente-se emporcalhado de tal forma, que pensa que jamais vai conseguir limpar-se completamente. Já pra dona Dinorah o que importa são as virtuais conseqüências: a estrepada que vai ser se alguém ficar sabendo do seu duplo crime de adultério e incesto (triplo, se contarmos também a embriaguez sórdida). Se o segredo não vazar, sua bebedeira vai passar por coisa divertida, e todos vão vibrar com o arrojo da vovó; caso contrário, será tão divertido quanto jogar merda no ventilador. E o tititi, a alegre murmuração nos portões e nas esquinas da cidade?!.. Em qualquer caso, genro e sogra serão obrigados a passar uma cara-grande mortificante toda vez que se toparem.
Passam-se os meses. Tudo correndo direitinho até agora, graças a Deus. A ferida do Euclides vai cicatrizando aos poucos. Já sua sogra... pra ela o incidente foi pouco mais que nada. Em seu pragmatismo instintivo de praga parasita, ela sabe que são as aparências que governam o mundo e ponto final! Sua alma ligeira bóia lepidamente à superfície das coisas, sem maiores traumas. No banzeiro ou na borrasca, isopor nunca vai ao fundo. Se tiver, por exemplo, que chorar um acontecimento trágico, pra ela tudo se resumirá ao show, aos gritos e faniquitos de praxe (pois as pessoas fúteis são invariavelmente grandes artistas melodramáticos!). Quanto a essas balelas de honradez e decência... vamos contar mais um caso.
Certa vez, quando ainda jovenzinha, recém-casada, ela passava o fim de semana no sítio de seu avô. Era gostosinha a danada nessa época! viçosa e suculenta como uma fruta implorando pra ser colhida (e chupada até o caroço). Seu Ladislau, que então trabalhava como representante comercial da Johann Faber, percorria o sul de Minas, a serviço. Era manhã de domingo, dia de verão, e ela em traje de banho brincava sozinha no lago, à entrada do sítio. Já se sentia até incomodada pelo excesso de saúde que vibrava em seu corpinho tesudo, pedindo ação, gritando por ação, enlouquecendo por um pouquinho de ação!.. Foi quando passou por ali um doente mental bonitinho, pedindo água. Ela ficou encantada com os traços do rapaz, que devia ter uns 18 anos e ressumava inocência. Disse então a si mesma: “Vou fazer uma boa ação hoje; este pobre rapaz bem que merece um pouco de calor humano!” Na verdade, o que lhe fascinava era a constatação de que seria muito fácil manipular sexualmente o dócil palermão, realizando impunemente seus sonhos mais loucos de libertinagem. “Você gosta de chocolate? Então vem cá que eu vou te mostrar um lugar cheio de chocolate.”
Esse lugar cheio de chocolate era um velho engenho desativado, entre o riacho, o bambuzal e a mata... O menino saiu dali cevado: água fresca, lanchinho, boquete, cunilíngua, sodomia, papai-mamãe, mais água, e cachorrinho acrobata, lagartixa endiabrada, tamanduá desconjuntado, capivara libidinosa, boi-lambão e por aí vai...
Foi dessa lambuzeira toda que nasceu o Júnior, primeiro filho de seu Ladislau. Por sinal, um belo e vivaz menino. O chifrudo homenageou a si mesmo, batizando com o próprio nome uma criança feita com o piru alheio; coisa que por sinal não é nem um pouco rara, em qualquer lugar do mundo _ mesmo nos países islâmicos. Existem estatísticas sérias sobre o assunto, números chocantes. Digamos assim que, de cada cinco pessoas que você conhece, pelo menos duas são juninhos falsos ou similar. Segundo dados da ONU, são centenas de milhões de ludibriados, democraticamente pelo planeta... se matando pra encher barriga de bastardinho. Vinte por cento desses, por ironia da vaidade e da cornice, dão ao bastardo o status de JÚNIOR. Nada mais merecido! Na maioria das vezes o pássaro-preto, saído da ninhada de tico-tico, acaba se mostrando o elemento mais proveitoso da prole, já que se livrou de ter nas veias o sangue do chifrudo. O Juninho Moreira, por exemplo, engenheiro formado pela Universidade Federal de Pinote do Aragão, é o único filho que hoje não pesa aos pais. O resto tá botando abaixo a empresa que seu Ladislau ergueu com 30 anos de suor: a conceituada “Império das Canetas”, um dos mais prestigiosos atacadistas em papelaria e aviamentos da Zona da Mata.
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Mais alguns meses se passaram. Já tá quase chegando o carnaval de 99... E o Kidinho? _ O bicho ficou safado mesmo! Toda vez que bebe, acaba sentido saudades daquela noitada de travessuras... Estamos no Campo Mimoso Várzea Clube, sede campestre, manhã de sábado _ dia em que dona Dinorah passou a freqüentar pra evitar encontrar-se com o genro, que sempre vem aos domingos. Só que hoje ele resolveu aparecer... Já chegou meio turbinado, no Opalão cor de abóbora, com a mulher, a filha e o vagabundo do Margoso, seu parceiro de copo e de sinuca. Foram jogar, os dois, valendo cerveja e tira-gosto.
Depois de muitas rodadas o Euclides já tá bem tocadão. Falando merda, cantando e rindo alto. Como já não cabe mais cerveja na barriga, ele engata na branquinha soviética. E todos sabemos da calamidade que a tal da vodca pode causar quando o caboco entorna demais. Misturada, então!.. o bicho pega. Facetas insuspeitadas da personalidade afloram sem o menor entrave!.. E não deu outra: pintou o diabo na casa do terço!
“Dona Dinorah! EU TE AMO, EU TE AMO, véia safada!!!” _ gritava o Euclides com o calção arriado, sacudindo o piru pra sogra. Instalou-se a confusão. Ninguém conseguia segurar o Euclides, que estava simplesmente possesso, proclamando aos berros o seu amor escandaloso. Foi consternante ver aquelas boas famílias expostas a um espetáculo de tão degradante bestialidade. Pessoas de linha, que apenas pretendiam desfrutar o lazer, o desporto, o convívio seleto e aprazível, exibir educadamente seus respectivos encantos e atrativos... obrigadas a ver suas crianças traumatizadas por um débil mental sacudindo as vergonha, chorando e gritando que tinha tesão pela sogra! Foi preciso meia dúzia de valentões pra calar a boca do Euclides.
Mas não fiquemos tristes: o Carnaval tá quase aí de novo. Vamos ver o quê que vai pegar este ano...