Cal e Flores Para o Doutor ABC ( II )
(continuação)
... Quando todos se preparavam pra deixar o local, um som estranho começa a brotar do túmulo. Barulhos abafados de baques e arranhões... e a lápide de concreto se levanta lentamente, respingando cimento fresco. É o doutor Aparício, ressurgindo do mundo dos mortos. O discurso de seu nobre sobrinho foi tão pungente que ele, já desencarnado, sentiu-se na obrigação de retornar a seu invólucro carnal a fim de agradecê-lo, e a todos os que hoje vieram prestigiá-lo. Ele se põe de pé sobre a catacumba. Os ossos a estalar repulsivamente. A voz rouca e gorgolejante. A baba escorrendo, espessa.
“Meus senhores, minhas senhoras. É com a alma jubilosa e o coração fremente de prazer que venho agradecer-vos pela torrente de aclamações com que fui saudado! Faltaria ao mais elementar princípio da civilidade se não retribuísse o brinde tão calorosamente erguido por este meu excelente sobrinho. É somente por isto que retorno momentaneamente ao calor de vosso convívio, em carne, osso... e ectoplasma.
Meu dileto e tenebroso pupilo! Caboclo torunguenga das venta furada! É profundamente sensibilizado que vos agradeço tantas deferências. O dia de hoje jamais me sairá do coração! Cativou-me a vossa bondade. Sinto-me irresistivelmente atraído pela vossa bela personalidade! Tantas e tão espontâneas têm sido as provas de vossa lealdade, que tenho a certeza de que sem homens como vós, nada poderíamos esperar de belo e glorioso para a nossa pátria estremecida! Encontro-me de tal maneira emocionado, que receio não saiba corresponder a tanta gentileza...
Fostes, de fato, muito feliz ao mencionar com a devida ênfase os meus predicados de pedagogo e difusor do saber científico; entretanto gostaria de salientar _ na qualidade de empresário, escritor, filósofo, filantropo e hierofante da Igreja Positivista do Brasil _ que, se fiz o que fiz, e se cheguei onde cheguei, nada mais fiz do que cumprir com o meu dever!”
[ Logicamente, a essa altura já não há viva alma por ali. Até o atrevido mendigo se juntou à debandada geral que se deu, logo que o defunto apontou a cabeça. Começa a chover, e o morto-vivo dá prosseguimento ao certame. O rosto assimetricamente inchado; o braço direito à frente, retesado num gesto de saudação paralítica. Flores macegadas lhe escorrem pelos cabelos lambidos sobre a testa. Como os olhos estão inutilizados (o direito revirado pra cima e o esquerdo, saltado da órbita) ele não pode constatar que todos se foram. A tarde vai caindo, e chove cada vez mais. Sua asquerosa voz se mistura ao som dos trovões. ]
“Oh, senhores, minh’alma clama por logo deixar esta grosseira vestimenta carnal e ascender enfim ao reino da pura idealidade! Mas as observações lisonjeiras que a amizade ditou ao meu ilustre e saudável sobrinho forçaram-me a tomar a palavra, embora ciente de minha pouca eloqüência para manifestar tanto sentimento!
Tenho absoluta certeza de que todos os louvores que hoje me foram dirigidos ficarão perpetuados num substrato bem mais loquaz do que as meras palavras e bem mais sólido que o bronze ou o granito dos monumentos cívicos que possam ser erguidos em minha memória: o coração dos filhos desta gleba generosa e altiva _ Jacupiaçu do Sul! Com efeito, é no batuque sistólico e diastólico do músculo cardíaco dessa minha boa gente que se encontra a minha verdadeira apologia, em forma de samba-enredo!
Confesso que cheguei a ter vertigens, lá nos píncaros do Olimpo a que fui alçado pelos disparatados elogios, pelas preces e reverências de todos os aqui presentes! Senti-me encabulado e cabreiro... vexado até! Não obstante, alegrou-me deveras ver meu sobrinho Francisco _ vulgo Chiquinho Cata-Ovo _ no exercício de uma eloqüência que faria inveja a um Cícero e a um Demóstenes! Como é gratificante ver que aquele menino rebelde dos velhos tempos deixou para trás as substâncias ilegais e as más companhias e se tornou um homem sério! e, ainda mais que isto, um exímio esgrimista da palavra, cuja dicção escorreita mostrou-se isenta de todo e qualquer plebeísmo ou bestialismo sintático!
Amigos! Quem dentre vós poderá ignorar este admirável mistério que é a Predestinação? Sim!.. pois só nos mais recônditos e insondáveis desígnios do Mestre Universal posso eu entrever o dínamo secreto de minha vida e minha obra! Com efeito, sempre que me indagavam sobre como pude não sucumbir, esmagado sob o peso de minhas tremendas responsabilidades, eu respondia simplesmente: ‘Assim está escrito!’ Sim, irmãos, confesso que nada mais fui que um resignado servo do Verbo Divino!
Em meus temerários e verdolengos anos, quando aqui cheguei, trazendo comigo os ideais helênicos do bem-falar, do bem-pensar e do bem-agir, encontrei não mais que um arraial de jecas desgrenhados e boquiabertos, atolados até as orelhas no brejo da promiscuidade animalesca. Ainda não conheciam a luz da verdade, aqueles bugres arredios, assolados por lombrigas e doenças infecto-contagiosas das mais desmoralizantes! Imediatamente encetei uma luta sem tréguas pela iluminação da mentalidade nativa e, sem jamais esmorecer em minhas convicções, digladiei-me num combate ciclópico contra o dragão da ignorância e a serpente da libertinagem!.. Hoje, poucas décadas depois _ e sem devermos favores a ninguém! _ somos conhecidos como a Atenas do Vale do Birigüi, vanguarda absoluta nas lides parnasianas regionais!
Guerreiros e guerreiras desta terra suntuosa! A despeito de tudo o que realizei, exorto-vos a que não baixeis a guarda, pois eis que a Ignorância novamente ergue sua face catarrenta e despudorada em nossa direção! Meia-dúzia de ciganos pernósticos _ membros da insolente piolharia que assola nossos quadros políticos atuais _ conspiram para desmantelar as bases éticas e institucionais que com tanto desprendimento consolidamos em nossa Lei Orgânica Municipal, naqueles tempos sublimes da Aliança Renovadora Nacional _ a saudosa ARENA!.. A gana das facções desalmadas já não conhece limites para sua desfaçatez! É hora de colocarmos rédea e cabresto nesses malfeitores! É hora de varrermos com braços de Hércules as estrebarias de Áugias que ameaçam profanar os jardins de Castália! Uma lenda não se destrói num só dia, irmãos! Morrer, sim, mas afrouxar, jamais!!! A flama permanece acesa! Continuai minha obra! Meu vulto vigilante vos contempla da Eternidade! Alçai o lábaro do Energismo, soldados! Zelai pelo fogo sagrado de Vesta!”
[ A chuva continua firme. A cada duas ou três frases do orador, o clarão dos relâmpagos banha o cemitério com um fulgor lívido, de pesadelo. ]
“Adeus Dolores, minha perdição!.. eu te perdôo, malvada! Adeus!.. Adeus amados condiscípulos! Adeus conspícuos e vigilantes confrades da Irmandade Águias do Oriente! Proeminentes companheiros e correligionários, adeus! Adeus flores, adeus pássaros! Rios e montanhas de minha terra, adeus! Adeus doutor Anfilóphio, nosso aguerrido prefeito, causídico benemérito, mestre da nova processualística sodomítico-orçamentária esteatopígica e embasadíssimo especialista em subtração argentária! Adeus, insignes apedeutas e sardanapalos do Judiciário local!.. E de resto, não nos esquecendo de nossa plebe adorada: adeus turba obtusa! Adeus a todos vós, irredentos cropófagos da boçalidade! Estultos babaquaras desta Jacupiaçu fagueira, adeus! Adeus, pois é chegada a hora!.. Este guerreiro retorna enfim à sua mórbida morada, deixando livre a tribuna a quem nos queira ensejar algumas considerações finais... E pela última e derradeira vez vos conclamo: O Amor por princípio! a Ordem por base! o Progresso por fim!!!”
[ Num movimento marcial, o morto-vivo faz o sinal do Positivismo, depois o do Energismo, depois o do Filatelismo Hermético... dá duas golfadas e, como uma marionete largada no ar, desmorona-se pra dentro do féretro. A tampa cai violentamente, como que golpeada por uma mão invisível, e a lápide se assenta magicamente.
Os céus rendem sua última homenagem ao professor ABC, enviando à terra alguns fotogênicos fachos de luz mortiça, que escapam por entre umas nuvens ao longe... ]