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Contos-->ODE AO TRABALHO II -- 30/04/2002 - 23:54 (tarsila gama) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
ODE AO TRABALHO II


O Doutor Afonso de Queiroz Bastos teve uma carreira acadêmica brilhante. Formou-se em uma das primeiras turmas da Faculdade de Medicina em 1930 e ganhou praticamente todas as medalhas de excelência durante o curso. Nunca teve um grande pendor para o atendimento de pacientes, o que o fez seguir naturalmente para a carreira de patologia. Escreveu uma brilhante tese sobre aspectos macro e microscópicos na cirrose hepática e logo foi convidado para atuar como professor. Prestou concurso e foi aprovado co méritos.
Casou-se logo depois da formatura e teve três filhos. Os três tornaram-se médicos, para o orgulho de Dona Almerinda, a esposa. Mas nenhum deles seguiu a carreira acadêmica do pai, o que foi motivo de algum desgosto para o Professor Bastos, como ficou conhecido.
A vida do professor foi exclusivamente ligada ao trabalho.A esposa nunca sentiu-se feliz no casamento, mas adaptou-se. Considerava a profissão do marido de grande importância e não o importunava com nenhum aspecto da criação dos filhos. Achava que isso podia atrapalhá-lo no trabalho e sentia-se bem como a esposa de um pesquisador tão renomado. Iam a congressos duas vezes por ano e essas viagens tornaram-se sua escapatória para uma vida extremamente monótona.
Com tanta dedicação o professor tornou-se o catedrático da disciplina de patologia após longo e penoso concurso. A preparação durou quase um ano e a família empenhou-se muito para criar um ambiente sem a menor interferência ou problemas domésticos. Comemoraram a vitória como quem comemora uma competição já ganha, pois todos tinham certeza de sua competência.
Foi ganhando fama de bom professor, mas muito temido pelos alunos. No primeiro ano todos já eram avisados sobre as noites em claro que teriam que passar estudando o compêndio de patologia para saber tudo na ponta da língua. Qualquer coisa anterior à perfeição significaria reprovação no curso Mas o regulamento da faculdade estabelecia limites muito rígidos e o professor foi obrigado a aposentar-se aos 65 anos.É preciso dizer que gozava de uma saúde excelente naquele momento e tinha uma disposição inabalável na época. Mas as regras e a disciplina da faculdade não permitiam nenhum acordo.
Assim sendo, o Professor Bastos seguiu obediente as orientações. Afastou-se do cargo na data acertada e recebeu uma grande homenagem dos alunos e colegas. A missa de afastamento foi inesquecível .Teve a participaçao de um coral da faculdade de medicina e enfermagem, com obras escolhidads por ele mesmo: incluindo as cantatas de Bach, suas obras preferidas.
A chegada em casa teve um efeito brutal. No dia seguinte não conseguia sair da cama. Sentia dores terríveis pelo corpo, febre alta. Foram imediatamente ao hospital escola e todos os exames possíveis foram realizados, sem que nada fosse detectado. Esse estado durou duas semanas e ele foi recuperando-se lentamente.
Depois de um mês resolveu voltar à faculdade como professsor convidado do departamento. Chegando lá não encontrou seus livros no local combinado. Tinha acertado que deixaria a sala da cátedra livre para o próximo professor eleito para a posição. Colocou seus livros em caixotes e combinou que seriam colocados em uma pequena sala no final do corredor da patologia.
Chegando lá não encontrou os seus caixotes. Os funcionários, que antes pareciam obedecê-lo cegamente, agora pareciam não ouvi-lo. Falou com sua ex secretária, com o chefe do almoxarifado, com a chefe da biblioteca e nada. Foi encontrar seus pertences somente no final da tarde, jogados em um canto do quartinho de depósito dos funcionários: sua tese de doutorado, seus muitos volumes de patologia, umas tantas fotos e muitos artigos. Encontrou também um quadro seu pintado a óleo, com a tela rasgada provavelmente no transporte. Saiu da sala muito irritado, como era seu costume, mas as pessoas pareciam nao temê-lo. Algumas até responderam grosseiramaente .
Foi até a sala de seu colega que assumiu a cátedra, um aluno seu por sinal. Foi bem recebido, cumprimentado efusivamente, mas o professor pediu desculpas pois teve que ceder a sala para um outro colega professor, por absoluta falta de espaço. Mostrou-se solícito, mas não lhe devolveu a sala . Ofereceu uma mesa na sala coletiva dos professores ,disse que sua participação como professor convidado seria muito importante e se prontificou para recebê-lo sempre que necessário.
Dr. Afonso retornou para casa naquele dia com um enorme cansaço. Sua esposa estranhou seu acanhamento, justamente ele que sempre teve um comportamento tão altivo…serviu-lhe o jantar, mas ele pouco comeu . Resmungou de cansaço e levantou-se para ir ao quarto muito antes do horário que seguiu religiosamente durante tantos anos.
No dia seguinte chegou à faculdade e encontrou a sala de professores vazia. Esperou uma hora sentado, pensando que fosse ainda um pouco cedo. Leu um artigo, tomou um café e quando certificou-se de que havia algo errado dirigiu-se à secretária da cátedra perguntando sobre as pessoas. Ela olhou espantada e disse que estavam todos na reunião do departamento . Fez uma cara de espanto e perguntou se ele não havia recebido a carta de aviso. Não, ele não havia recebido nada. Voltou para sua mesa na sala dos professores e duas horas depois os colegas retornaram. Nenhum deles fez algum comentário sobre a reunião.
Mesmo assim o Dr. Afonso permaneceu o dia inteiro estudando em sua mesa, aguardando ansiosamente que algum aluno ou professor o procurasse para esclarecer alguma dúvida ou dar alguma aula. Saiu pontualmente às seis, mas nada aconteceu. Ninguém dirigiu-se à sua mesa. Nem mesmo um telefonema. O mesmo aconteceu nos quinze dias subsequentes. Absolutamente nada.
Dr. Afonso retornava à sua casa cada dia mais quieto. A esposa, preocupada, procurava ajudá-lo de alguma forma. Convidava-o para dar uma volta, puxava algum assunto, mas preocupava-se porque sabia que durante todos aqueles anos ele não desenvolveu nenhum outro interesse além da patologia.
No dia da reunião geral não foi convocado novamente. Naquele dia sentiu que as forças lhe faltaram. Sentou-se na mesa, abriu seu livro, mas não conseguiu ler nada. Teve vontade de chorar pela primeira vez em muitos anos. Nem na morte de seu pai entregou-se aos sentimentos dessa forma. Não levantou-se também na hora do almoço. Permaneceu sentado, inerte, até as seis horas da tarde.Tentou levantar-se para ir embora no horário habitual, mas não conseguiu. Pensou em telefonar,mas lembrou-se que pela primeira vez em muitos anos sua esposa estava ausente, visitando sua tia adoentada no interior. Permaneceu sentado, inerte, até a hora do fechamento das salas. Alguém finalmente conseguiu vê-lo. O faxineiro do segundo turno entrou na sala, perguntou se ele precisava de alguma coisa. Como não houve resposta o faxineiro deu boa noite e encostou a porta. Dr. Afonso permaneceu na mesma posição. Não conseguia mover-se nem pensava em nada. Somente sentia um enorme cansaço, a boca muito seca, mas não uma secura de sede. Os olhos foram ficando pesados, o peso das pálpebras acabou encerrando tudo na escuridão . Passou a ouvir apenas sua respiração e os batimentos do coração. Foi então que percebeu tudo claramante. Sentiu o coração falhar, mas não havia sinal de dor física. Pensou em tudo aquilo sem pavor e de repente uma sensação de alívio o invadiu. Só teve tempo ainda de pensar que melhor seria se tivesse morrido no dia da aposentadoria.

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