A vida passa, e os anos levam quase todas as lembranças. Às vezes parece que nada de nada existiu, até que de repente alguma coisa vem e traz algo que parecia inexistente . É quando
um arquivo perdido no disco rígido de nossa mente é recuperado, e de repente o passado volta com toda a sua cor e nitidez, trazendo alegrias ou tristezas.
Mas antes de contar o que aconteceu preciso falar que em minha família sempre tivemos um hábito engraçado. Quando uma coisa nos soava cômica, ou trágica, habitualmente e de uma forma perfeitamente natural, incorporávamos ao nosso vocabulário alguma expressão ligada ao fato e que só a nós era compreensível.
Os demais, pobres mortais, simplesmente "voavam", enquanto que nós, ou ríamos interiormente, ou nos entristecíamos.
Na grande maioria das vezes, ríamos, ou chorávamos de rir, melhor falando.
Hoje, conversando com uma amiga, ela me dizia que tinha sido convidada para uma festa, à qual deveria comparecer muito elegantemente vestida.
Pronto, foi a conta, porque me veio à cabeça a expressão "habitual elegância", e minha amiga que me perdoe, mas chorei de rir.
Mas vamos aos fatos.
Num passado prá lá de remoto eu trabalhava numa firma muito grande. Tão grande que nunca consegui conheci todos os empregados. Nem todos os fornecedores, nem todos os clientes. E acho que não perdi nada com isso.
Mesmo o patrão, nunca o vi pessoalmente, parêntesis, perdi menos ainda....
E em toda firma grande há mais chefes que índios. Tem o vice chefe do chefe, tem o chefe do chefe, e assim por diante. Quem não é chefe de algum setor, tem que ser assessor, ou qualquer porqueira que o valha.
Quem não é qualquer tipo de chefe baba-se de inveja de quem é.
E quem é, não ganha nada sendo, mas quer sê-lo. Entenderam?
Nem eu. Assim era esta firma, e muitas por aí.
Mas a empresa toda estava alvoroçada, o grumete empoleirado no mastro já tinha divisado nuvens negras no horizonte. Todo mundo sabe que a melhor comunicação numa firma vem através daqueles funcionários que circulam de setor em setor, levando papéis. Se algum deles diz que algo foi, é ou será, pode apostar.
E vários deles coçavam a cabeça, dizendo, Vem chumbo grosso...
Meu chefe, que vinha acima do vice chefe, coçou também a cabeça, e pensou...
Anos havia que o setor apenas produzia, e como ! e não dava prejuízo nenhum, até muito lucro, mas não aparecia. E é muito importante aparecer. Mostra ao chefe do chefe maior que o setor funciona, que o chefe está fazendo alguma coisa. Apenas seguir como sempre foi, isto está descartado. Uma secretária sabe que mudar uma mesa de lugar, ou colocar umas flores no canto da sala podem ter um efeito colossal.
Qualquer funcionariozinho mequetrefe sabe que uma boa arrumação na mesa e no arquivo ajudam muito.
O chefe tem que fazer alguma coisa nova, nem que seja para piorar, mas precisa fazer. Tem que marcar sua presença. Mudar o dia da reunião semanal, estabelecer novas regras, aumentar o número de formulários, até a forma de se relacionar com os funcionários.
Se ele não fizer nada, estará concordando em que tudo estava bem com o antigo chefe, e assim, porque deveria haver um novo chefe?
E meu chefe estava andando nervoso. Andou fuçando outros setores para descobrir o que eles andavam fazendo, andava para baixo e para cima, porque sabia que cada chefe equivalente a ele estava planejando um acontecimento.
E eis que um dia ele chega com a grande idéia.
Vamos fazer um simpósio !
Simpósio ? Meu Deus, que coisa mais boba !
Faz simpósio quem tem algo novo a apresentar. O que nós fazíamos ali era apenas rotina, quem éramos nós para criar algo de novo? Perguntado sobre o que seria levado ao simpósio, ele nem se apertou. Ora, vamos convidar gente do norte ao sul, e alguns de fora do país. Eles trarão idéias, nós mostraremos o que fazemos, sai na imprensa, e aí está a importância da coisa, aparecemos !
Tentamos fazer corpo mole, mostrar que não podíamos interromper nossa rotina, mas uma vez decidido, decidido está. Chefes não gostam de voltar atrás.
Aí o homem virou uma máquina. Eu só o ouvia chamando a secretária, coitada, que nem bem se sentava já era chamada de novo. E é lógico, começou a delegar poderes e assinar papéis. Nomeou pessoas para a organização, o que fez com que tivéssemos mais e mais chefes. Chefes e vice chefes para comissões. Chefes para tomar conta dos chefes.
Até que, como era inevitável, sobrou para mim.
A senhora vai ser a anfitriã chefe do simpósio.
Ai, ai, pensei... O que faz uma anfitriã chefe?
E ele prontamente explicava. Aliás, antes de dizer o que ele explicava, devo comentar, como este homem mudou nestes dias que antecederam o simpósio...Estava tratando a todos com luvas de pelica...Bom, voltando à explicação...Uma anfitriã chefe interage com os hotéis da cidade buscando o melhor preço pela melhor hospedagem, determina quem vai ao aeroporto receber os convidados e levá-los aos hotéis, deve estar circulando no coquetel de abertura e apresentando uns aos outros, uma espécie de relações públicas.
Coquetel de abertura? Com que dinheiro? Nossa verba mal dava para o cafezinho e o papel higiênico !
Fiz uma cara de enfado...Nunca fui boa nisso, aliás, em termos sociais, sou o próprio bicho do mato...E ele, assinando minha "nomeação".
Muito bem, disse ele, e agora, devo pedir-lhe um favor muito especial, dona Leninha. Eu nem precisaria dizer, mas quero que saiba que neste simpósio conto com a sua habitual elegância.
Céus! Se vergonha matasse eu não estaria aqui escrevendo isto.
Corri para o banheiro e me olhei no espelho. Por que cargas d água eu não estava me cuidando melhor?
Andava tão cansada, tanto trabalho, e este senhor querendo "aparecer" para o chefe do chefe do chefe-mor, e gastando minha paciência.
Na verdade, eu jamais tinha me preocupado muito com elegância, ou com andar bem vestida. Não tinha a menor idéia do que andava pelo mundo da moda, e para ser honesta, a firma não merecia isto, pelo que me pagava, e pela amolação que me dava.
Eu era ainda tão jovem, que achava que a juventude me bastava, além da competência.
A partir deste momento cruel, dentro do banheiro, comecei a me sentir a mais infeliz das criaturas.
Comecei a observar todas as mulheres pelas quais passava, acho que até nem estava pegando muito bem, pelo jeito com que uma delas me olhou, acho que pensou qualquer coisa errada a meu respeito.
Faltavam dez dias, e eu ainda não tinha idéia do que seria aquilo que ele esperava de mim.
E depois, seriam só três dias. Terminada a festa a rotina iria ser a mesma, que tal se eu arrumasse um atestado médico e faltasse ao serviço três dias?
Uma diarréia seria bem adequado. Leva-se mais de três dias para uma boa re-hidratação. Ou torcer o tornozelo. O médico da empresa teria de ver alguma coisa física, real, para dar o famigerado atestado.
Lembrei de um amigo militar , que me contara uma vez o que os soldados faziam quando não queriam desfilar no Sete de Setembro.
Um dente de alho como supositório, e era uma febre de quarenta graus garantida.
Mas este truque era velho, e só poderia ser usado momentos antes do evento, depois também eu poderia ser descoberta, além do mais, como evitar o cheiro do alho? Isto poderia dar uma demissão por justa causa ! Já pensou o vexame? Supositório de alho é razão de justa causa...
Os convidados começariam a chegar como gatos pingados. Eu precisava quebrar um braço. Esgotamento nervoso estava fora de cogitação.
Revi minhas reservas cambiais. Ia ser um rombo, se eu saísse comprando coisas. Fazia um tempão que não comprava nada de novo, tinha meu querido sapato vermelho, ao qual a minha filha apelidara "sapato do sentimento", já que não o dava a ninguém.
Hoje em dia eu diria apenas : Dr. Gerson, isto tudo está fora de cogitação ! e encerraria o caso.
Mas quanto não se tem certa idade, borra-se de medo do chefe.
Três dias, manhã, tarde e noite. Isto significava um monte de roupa adequada, nada dentro da minha habitual elegância...
Aquilo não era para mim. Feita gente grande quando a geração hippie estrondou o mundo,eu não conseguia ver o que era mais bonito que um jeans desbotadocom uma camisa xadrês amarrada na cintura, ou pouco mais alto, deixando um pedaço da barriga de fora e um tamanco ou mocassim, ou um vestido feito de tecido parecendo saco alvejado, cheio de bordados, mais uma flor no cabelo?
O que precisava ser melhor que uma sandália com tiras amarrada nas pernas, e colares de missangas?
O que havia de errado com meu vestido bordado de espelhinhos? O que eu chamava de vestido de índio? Nada ! Mas se o chefe queria, ia ter.
E o pior foi que eu fiquei tão ofendida pela forma com que ele disse "habitual elegância", que fiz uma profissão de fé. Jurei que aquele homem não iria nem me reconhecer.
Comecei pelas roupas. Conjuntos mais esportivos para a manhã, conjuntos mais sociais para a tarde, vestidos finos para a noite.
Um vestido branco que comprei foi motivo para que minha filha adolescente me olhasse com uns olhos de que aquilo parecia mais com ela que comigo. Acho que ela se irritou, como pode uma mãe usar um vestido parecendo vestido de princesa?
Sapatos de saltos médios e altos, meias finas, bijouterias de classe.
Porque não jóias?
Lá pelos trajes o dinheiro acabou. E ainda faltava tanta coisa !
Senti que meus dias de liberdade haviam acabado. Talvez eu os pudesse retomar na minha velhice, quando me aposentasse.
O cheque especial...Minha nossa... Foi todinho.
E comprei jóias, cujas prestações pareciam ir até o outro milênio. E ainda nem falei que teve também um perfume francês, e mais uma colônia leve para o dia.
Mas enfim, estava pronta. Gastara o suficiente para comprar um bom carro usado, ou até novo, quem sabe, e o pior era que
estava me sentindo como alguém que não era eu mesma, noutras palavras, perfeitamente fantasiada, estreei minha fase elegante.
Não sei dizer quem chegou naquela tarde ao coquetel de abertura. Uma atriz, eu creio. E sempre procurando o olhar do chefe, em busca de aprovação. E ele me olhava tão estranhamente...
E assim, três dias se passaram, a cada momento uma roupa nova, a maquilagem sempre impecável, o salto alto me fazendo desejar morrer.
Estranhei muito que nenhum de meus colegas tinha sequer uma gravata nova. E o chefe nada lhes dizia.
O simpósio foi um sucesso. O chefe se promoveu, o setor se promoveu, e no dia seguinte tudo voltou ao normal.
E ele me chama à sua sala. Eu, vaidosíssima, certa de que iria comentar a elegância solicitada e atendida, sento-me e aguardo.
Dona Leninha , devo dizer que a senhora confundiu tudo, um simpósio não é uma festa. Mas excetuando-se o fato de que a senhora não se vestiu adequadamente, tudo foi perfeito, e quero parabenizá-la.
Meu chão desapareceu debaixo de meus pés. O que?
Não resisti. Com lágrimas nos olhos, perguntei...
Dr. Gerson, agora sou obrigada a perguntar-lhe o que o senhor entende por elegância.
E ele, que nem mais se lembrava de nada, quis saber o porquê da pergunta.
Levei-o até uns dias atrás, e lembrei-lhe a expressão "habitual elegância".
Ele riu, até chorar, literalmente.
Dona Leninha , disse ele, entre as gargalhadas, Eu me referia à sua Habitual Elegância Profissional" !
O evento acabou,o chefe e eu ficamos amigos.
Mas ficou entre nós, na família a expressão, e quando estamos nos sentindo mal ajambrados, sempre tem alguém para dizer,
Ei, você hoje está em sua habitual elegãncia?
É, tudo na vida passa. Mas as jóias ficaram, o gosto pela maquilagem ficou, sei o que é uma roupa de classe, mas graças a Deus posso agora vestir meus jeans velhos, meus vestidos de índio, e morrer de saudade do vestido branco de princesa e do único chefe de quem verdadeiramente gostei.