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Contos-->Um gato chamado Pascoal -- 25/05/2000 - 23:11 (Marcia Lee-Smith) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos




Ele era um siamês zarolho, aliás muito siameses o são, todos tem olhos azuis, e a maioria tem uma certa expressão idiota na cara. Tudo isto Pascoal tinha . Em particular tinha a ponta do rabo quebrada, o que lhe conferia uma característica toda especial. Normalmente ao nos referirmos a ele, o comum era dizer, "Cadê o idiota do gato Pascoal?"
Mas era meu gato favorito. Quantas vezes quando começava a chover o infeliz do gato simplesmente parava onde estava e ficava se molhando com cara de pobre coitado, esperando que alguém tomasse a providência de buscá-lo.
Acho que tudo o que ele fazia era premeditado. Gatos são uns animais bem safados.
Pascoal tinha muitas manias. Uma delas, a que causou toda a polêmica e o assunto desta história, era a de ficar na calçada em frente de casa , todas as tardes, junto ao poste, ou à árvore, ou mesmo junto ao gradil ,apreciando o movimento.
Naqueles tempos gatos siameses valiam algum dinheiro, não muito, mas alguma coisa, e estavam em moda.
Um dia, por azar do Pascoal, um garoto que passava todos os dias pela rua resolveu surrupiá-lo, enfiando-o num saco, o que aliás deve ter sido para o gato uma grande aventura.
Bom, eu só dei falta do abençoado quando ele não entrou para jantar, o que por si só era um absurdo. Começa então o festival de gritos desesperados pela rua, à procura do felino, deixando muita gente pensando que Pascoal era um menino sumido.
O pior foi a noite. Foi uma noite de cão, ou melhor, de gato. Ninguém dormiu naquela casa, toda hora alguém se lamentando eu me sentindo a última das criaturas. Assumi todas as culpas do mundo. "EU" tinha deixado o Pascoal sumir.
Bom, ainda restava a hipótese de que alguma gata nas redondezas o houvesse escolhido como príncipe encantado.
Mas no outro dia, todo mundo chorando, e me cobrando uma posição, algo precisava acontecer. E aconteceu !
Certo, vamos fazer um monte de cartazes e espalhar pelo bairro, e um cartaz maior na frente de casa, logicamente com a expressão "Gratifica-se" em negrito e caixa alta.
Mas nada do gato. A sensação de que o Pascoal já havia sido saboreado com macarrão no domingo me atormentava. Comecei a enlouquecer. Eu estava perdendo o juízo.
Dois dias depois, meus olhos estavam fundos e os nervos destroçados, quando o menino de uma casa vizinha me grita lá da rua :
"Sei quem roubou seu gato, dona !"

Oh, Deus existe !
"Quem foi ?", perguntei, sentindo as esperanças renascidas.
"Um colega meu, de sala . Ele é bem pobre, acho que ele ia vender .... mas o amigo dele, o que trouxe o saco dentro da mochila é até bem de vida. Dona, quem sabe eles ainda não venderam?"
Comecei a sentir que nem tudo estava perdido. Não tendo sido almoço de domingo, a pessoa que o comprara podia entrar num acordo comigo, eu o compraria, ou daria a ela outro gato. Jeito tinha....
"E você sabe onde é que eles moram?"
O menino olhou ressabiado...
"Sei, mas se a senhora disser que fui eu quem contou, eles me pegam de couro...."
"Tá bom, não vou dizer, e se achar meu gato te dou o dinheiro da gratificação, mas me ajuda agora ?
Feliz da vida, ou pelo menos aliviada, com dificuldade de controlar a adrenalina, entrei no carro e chispei para o lugar informado.
Era um terreno baldio, no mesmo bairro, que alguém tinha invadido e feito um barracão de madeira coberto de zinco. Além da cerca de bambu e papelão umas oito crianças pequenas, mal vestidas e subnutridas faziam alvoroço, e congelaram quando me viram parar o carro. Fui chegando e me sentindo todo o esquadrão da SWAT....
"Cadê o Álvaro?"
Nenhum deles respondeu.
"Está bem, vocês não querem dizer, então eu vou voltar aqui com a polícia"
A menção da polícia surtiu efeito, pois imediatamente todos apontaram para o maior deles, um fedelho de uns nove anos.
"Menino, cadê meu gato?"
"Sei de gato nenhum, dona! Me deixa em paz"
"Onde está sua mãe?" perguntei.
"Trabalhando".
Por um destes desatinos que só Deus ou o Diabo explicam, meu sangue ferveu, peguei o pobre do Álvaro pelas orelhas, torci-as bem torcidas e enfiei-o no carro. Por que naquele dia meu carro não enguiçou, como fizera em tantas ocasiões? Por que eu não pude lembrar o Estatuto da Criança e do Adolescente? Eu não queria machucar o menino, juro que não. Mas a mentira esborrachada ali na minha cara estava pondo meu corpo a nível de ebulição, eu perdi de vez o senso do ridículo, esqueci minha idade, esqueci todos os princípios de cidadania. Eu queria o raio do gato, e queria agora !
"Me diz onde mora o outro pilantrinha."
"Só sei que o pai dele é Pastor", gemeu o garoto.
Na minha cabeça passou uma nuvem vermelha. Podia ser o Papa, que desse mais educação ao filho, onde já se viu roubar gato?
Quatro quadras adiante, e três andares que subi renegando o dia em que aprendera a fumar, e lá estava a porta do Pastor.
"Bom dia,( tentei ainda ser educada) me desculpe, mas soube que seu filho e mais este menino aqui roubaram meu gato!"
Ai, meu Deus ! O que ouvi do senhor Pastor foi algo que me fez desejar que um grande buraco se abrisse a meus pés, mas nada disso aconteceu, eu continuava lá, em pé em frente a um homem mais baixo que eu, com a voz controlada , observando uma mulher doida que invadira sua casa. Se seu filho tivesse roubado algum gato, nem que fosse um desses gatos vadios, ele iria se ver com ele mais tarde, mas, ter a casa invadida por uma desconhecida, segurando a gola da camisa de outro garoto, e acusando seu filho de ser ladrão, era demais.
"Posso ver seu filho? ainda tive a coragem de perguntar.
"A senhora devia mais era se retirar daqui imediatamente", ele disse, enquanto uma pestinha de aproximadamente dez anos espiava pela fresta da porta do quarto.
Desalentada eu fiz a coisa mais idiota que alguém neste mundo já fez. Sentei-me no sofá, e perguntei como se fosse a coisa mais natural do mundo:
" Dá para me arrumar um cafezinho?"
Meu Deus, não sei como cheguei ao térreo, mas cheguei, disso eu tenho certeza, e ainda arrastando o Álvaro pela gola.
A taquicardia começou, sentia uma espécie de tum-tum-tum na cabeça, e nem sei como cheguei até o barraco do garoto.
Deixei o menino escafeder-se do carro, enquanto gritava desatinada:
"Vou à delegacia , agora, dar queixa!"

E fui. Eu poderia ter ido para casa. Ter tomado um banho, uma roupa macia e limpa, tomado um calmante ou um uísque. Isso tudo eu "podia" e "devia" ter feito. Mas não fiz. Já disse, tem coisas que só Deus e o Diabo explicam. E o pior eu já tinha feito.
Fui sim, e contei tudo. Omiti naturalmente, as orelhas torcidas. Notei o escrivão me olhando com um ar de quem pensa, que mulherzinha idiota, a gente com tanta coisa séria para fazer...Assinei a queixa, e fui embora para casa.
Eram cinco da tarde, aproximadamente, quando alguém me liga do distrito policial.
"A senhora me faça o favor de vir buscar a peste do seu gato, que nós o colocamos no banheiro, e não agüentamos mais o barulho que ele está fazendo."
Eu me senti vitoriosa...
"Então o gato tinha mesmo sido roubado, eu sabia !", eu ainda disse, como se isso pudesse justificar a série de desatinos.
" E a senhora pode tratar de arrumar um advogado, disse o policial, a mãe do garoto levou-o ao Instituto de Medicina Legal, de acordo com a lei. A senhora provocou lesões graves em um menor, além de tê-lo seqüestrado e mantido em cárcere privado."
Como, cárcere privado? Meu carro? E meu gato? Não conta?
O policial desligou.
Meu mundo desabou de uma vez. Fui buscar o gato, que remédio? Não sei dizer do sorriso que dei quando vi aquela cara redonda, ordinária e aqueles olhos azuis me pedindo socorro. Tive de assinar uns papéis que nem sei o que eram. Mas que alívio, cá estava o Pascoal, e o resto era o resto.
Chego em casa com o Pascoal assumindo ares de rei da cocada preta, e minha euforia acaba ...eu me via numa cela, por muitos anos, talvez até morresse na prisão...
Começou o desespero para achar um advogado. O meu, escusou-se polidamente, alegando não estar na cidade nos próximos dias. Mas recomendou um amigo, rapaz novo, estava começando a carreira, gostava de gatos.

E me pediu que eu me acalmasse. No máximo, como ré primária que eu era, teria de prestar serviços à coletividade por um ano, se tanto...Senti que ele estava rindo do outro lado da linha.

Em três dias , audiência com o delegado. Os pais dos dois meninos, eu, naturalmente, e meu advogado, parecendo um colegial vestindo terno e tentando não estourar numa gargalhada.
Não sei qual foi o santo que fez o milagre, se soubesse iria acender-lhe uma vela do tamanho do gato, com o formato de gato, mas o delegado convenceu os pais dos garotos que, desde que não havia qualquer marca nas orelhas do Álvaro, e eu bendisse a pouca força que usei, ou a recuperação incrível das crianças, e em sendo eu uma pessoa com um passado ilibado, "quem sabe" não seria melhor esquecer tudo?
Tudo foi esquecido, exceto os altíssimos honorários do advogado, e a gratificação que o garoto de perto de casa exigiu.
E o pior de tudo foi chegar em casa e encarar o herói da história, que por alguns dias me fez ser uma seqüestradora, uma mulher que agride criancinhas indefesas, e que ficou um bocado mais pobre naquele mês, fazendo aquela incrível cara de inocência, como só os gatos sabem fazer, e me fazendo sentir uma completa idiota, só como os que adoram seu gatos conseguem ser feitos.










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